A Fernandinha era uma solteirona bem-disposta. Nessa altura andaria pelos setenta, mas ainda tratava de tudo.
Desde a morte dos seus pais que vivia sozinha, no centro histórico da cidade. Herdara aquele prédio de três pisos, com uma frente de 10 metros, encaixado na rua e confinando, nas traseiras, com um palacete devoluto, à espera de um louco disponível para enterrar lá o dinheiro de uma vida.
Professora primária reformada, mantinha-se activa. Cantava no coro da Matriz e dava explicações na Casa dos Rapazes. Somava horários e pressas ao peso dos anos, das maleitas e ao cuidado da casa, presa às memórias e à insegurança daquele mundo que desabava em seu redor, plasmado no pequeno comércio agonizante e no eterno papagaio que resistia embalsamado à porta da mercearia, para gaudio dos passantes menos distraídos.
Um dia, estranhando a falta dos chinelos aos pés da cama, decidiu percorrer toda a casa. Subiu e desceu escadas. Abriu e fechou portas daqueles quartos há anos fechados de inutilidade para, num pasmo, encontrar num deles, os chinelos desarrumados e logo a seguir uma cama desfeita com um sem-abrigo enrolado num velho cobertor.
Mal refeita do susto, perguntou-lhe decidida: - O que é que o senhor está aqui a fazer?, e ouviu a voz sumida do pobre homem responder-lhe, temeroso: - Eu … vivo aqui, ... há uns dias!, enquanto se arrumava para sair pelas traseiras, por onde entrava sorrateiro ao fim do dia.
Dizem que o coração da Fernandinha a impeliu a deixá-lo lá ficar, que mais não fosse, aquela noite, mas que o medo de um homem tão perto, e a lembrança dos yogourts e da fruta que vinham faltando no frigorífico, mais as pratas de que desconhecia o destino, não deram sorte àquela aparição, e nem considerou a hipótese do príncipe, da bruxa má e do encantamento, que um terno beijo pudesse vir a quebrar.