segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O Morto Adiado


Está no caixão, no meio da sala, confortável depois do banho, vestido com um fato que há décadas lhe não servia, de camisa branca e com aquela gravata preta para aos funerais dos outros. Puseram-lhe entre os dedos um terço de plástico, mesmo sabendo-se que só ia à igreja nos rituais e que mal sabia recitar um Padre-nosso.
Configura um pequeno presépio, “como manda o figurino”. Um menino Jesus, em grande, rodeado de flores. Aos pés, um pequeno painel com o seu nome e uma fotografia dos tempos em que era alguém. A família em redor, os amigos dispersos pela capela mortuária misturados com “conhecidos”, que ali foram por não terem mais que fazer, que o tempo da reforma também serve para isso.
Está morto há mais de vinte e quatro horas. Para ser preciso, e depois de analisados todos os registos hospitalares, poder-se-ia dizer que esteve ausente deste mundo dois anos, quatro meses e cinco dias, depois de um acidente vascular cerebral lhe ter baralhado todos os sentidos e o ter deixado a aguardar que aquele corpo ficasse sem força para lhe prender a alma.
Desse tempo, onde todos os sons lhe pareceram iguais e em que não entendia os porquês daquele mal-estar que a tempos se exacerbava, não tem memória precisa. Só depois do último suspiro e de ter visto o médico a preencher a sua certidão de óbito, é que começou a organizar-se de novo. Quer sair em paz deste mundo, pelo que decidiu ficar até ao final do seu enterro para saber o que se passou. Tivesse morrido na hora do AVC e tinha o problema resolvido, mas tanto tempo depois, sem ter consciência de si, fá-lo questionar da “utilidade” de lhe terem prolongado esta pseudo-vida.
Pairou pela capela e aproximou-se das conversas ao lado do seu caixão. Percebeu que esteve sempre internado em hospitais, em Unidades de Cuidados Continuados e num Lar, porque a sua família não tinha condições para lhe garantir os cuidados que o corpo exigia. Ouviu falar de médicos, de enfermeiros, de inúmeros exames, das sondas, das fraldas e das algaliações, e da falta de lugar para tamanha Esperança e quase concluiu que ele não passou de uma “área de negócio” para os prestadores de cuidados de saúde, que multiplicaram análises, exames, observações, remédios e internamentos, para o manterem todo esse tempo a respirar. Depois olhou para os olhos chorosos da sua companheira e sentiu-lhe o desamparo agravado pela perda da sua reforma que tanto a ajudava nas coisas do dia-a-dia – tanto dinheiro gasto inutilmente consigo, que poderia ter sido aplicado no bem-estar da sua ex-família -, ao menos essa prolongou-se.
Ouviu da boca do padre as palavras da circunstância e um texto de S. Paulo sobre a ressurreição e a vida eterna, lido com tal alegria, que deve ter causado a algum dos assistentes uma estranha vontade de morrer, não por desânimo com a vida, mas por entusiasmo com a morte.
Ouviu os sinos, assistiu ao descer da sua urna e acompanhou os últimos assistentes à porta do cemitério. Depois, voltou à campa e pasmou com a pequena flor despercebidamente deixada pela sua primeira namorada e preparou-se para subir às pastagens celestiais, onde os cálices transbordam, os jugos são suaves e os fardos muito leves.

Atrasado, mas com o sentimento de ter cumprido uma missão, deu três piruetas no ar e apontou, definitivo, à constelação de Centauro, que era aí que lhe estava reservada a Eternidade.
E ... nunca mais se ouviu falar dele.

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