terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (24)


Há duas semanas que Hipólito não tinha qualquer contacto com o sobrenatural e isso deixava-o inquieto. O que se passava em redor tresandava a terreno. Os dias rotineiros faziam parceria com as notícias que enchiam os meios de comunicação, nacionais e internacionais, onde pontuava a vida mundana de Hollywood, do futebol ou da moda. Quem casava, quem se divorciava ou morria, sem qualquer toque daqueles que os deuses põem nas coisas banais para as transformar em guias para os mortais. Até os doentes morriam previsivelmente de doenças crónicas e tinha-se por garantida a presença diária do presidente da república, na televisão, à procura de “consensos”, ao mais pequeno desequilíbrio social. O Natal enchia as lojas de gente e o “All I want for Christmas is you!” tocava repetidas vezes em todas as ruas.

Hipólito afastou-se do bulício da cidade. Foi até à margem do rio admirar a elegância das taínhas a lutar contra a força da maré, a pensar se esta acalmia não seria aquela que precede os estranhos fenómenos ou as espetaculares intervenções divinas que alteram o curso da História do Homem na Terra, quando Zeus se sentou a seu lado. O médico levantou-se, agradado com a sua presença.
- Oh! Que bom é ver-te! Pensava que te tinhas esquecido de nós!
Zeus, pousou o raio e abraçou-o. -Também folgo em saber que estás bem! Tinha planeado só vir no verão, por causa da gripe, mas o Papa Francisco convidou-me para um Concílio de Deuses e eu não tive coragem de lhe dar uma nega!

- Então, estás a planear um regresso!, sorriu Hipólito, manifestamente feliz.
- Não!, respondeu o deus. – Vim só para não dizerem que sou um ressabiado e que não colaboro, quando é já evidente que a humanidade estar a dar cabo do planeta. O Tema também era apelativo: “Princípios Básicos para as Religiões que formatam o estar da Humanidade - Um novo paradigma”, e achei que a minha experiência podia servir aos deuses mais novos.
- E que tal está a correr esse Congresso, digo ... Concílio?, emendou Hipólito. Zeus não considerou a gafe e continuou:
- Nada bem! Logo nas primeiras sessões começaram as dissidências. O assunto era a "individualidade” e quando alguém defendeu que o homem deveria ser visto como uma abelha de um enxame, com um comportamento essencialmente determinado pelo grupo a que pertence, foi uma salgalhada das antigas!
Depois, como era Natal, o Papa Francisco, mostrou um presépio como símbolo da família. Havias de ver o sururu que se levantou. Que o presépio era só um pedacito da família, que deviam estar ali os irmãos, os tios, os avós, os antepassados e até os vizinhos próximos. O Francisco ainda tentou uma deriva dizendo que ele retratava o fruto do amor entre duas pessoas e que isso era a coisa mais linda que havia, mas já ninguém o ouviu.
À tarde, depois de umas generalidades, decidiu-se que o melhor era entrevistar os CEO das mais importantes instituições da Humanidade e começar pela cultura Ocidental. Ir ao Japão para falar com o Akihito, a Nova York falar com o Guterres e com o Trump, a Londres com a Rainha Elisabeth, a Berlim com a Angela Merkel, à Califórnia com o Bill Gates e a Moscovo com o Putin.
Mas quando se tentou distribuir estas tarefas pelos presentes, um grupo barulhento, desatou a gritar: “O Allahu é que vai!, O Allahu é que vai!”. Estás a ver! Quem queria ir começou a ficar irritado por só falarem naquele. Aos poucos, os deuses, foram saindo “à formiga”, até que o Francisco adiou a sessão alegando que tinha de ir comprar sapatos!

Hipólito estava surpreendido. Sabia que grande parte dos conflitos humanos tinham origem nos deuses, mas nunca pensara que as diferentes interpretações sobre o que é um homem poderia levar à sua exaltação. Zeus cingira a túnica ao corpo como a proteger-se do nevoeiro que entretanto se instalara e Hipólito sugeriu que fossem tomar um chocolate quente a um café que não tinha clientes, àquela hora. - Vais ver como te passa o frio num instante!, e, para estimular a conversa perguntou: - Tu achas que todos os deuses estão a par da evolução tecnológica da Humanidade?
Zeus sorriu. - Claro que estão! O problema não é esse. O problema está na estrutura que têm no terreno. Os Cristãos aceitaram reduzir o número de mosteiros e a passagem de algumas das suas funções para o poder temporal, mas o Islão não quer passar essa influência para um Estado Laico. As madrassas estão instaladas e asseguram emprego a milhares de pessoas. Eles não têm possibilidade de lhes fazer um "upgrade" e torná-los professores de Liceu ou de Universidades. Ia haver muita instabilidade social.

- Mas hás-de convir que, no mundo actual, as histórias dos heróis já não são veiculadas pelo clero. Quem agora dá referências aos miúdos, são os desenhos animados, o cinema e a TV. Soubeste que o Darth Vader foi a figura escolhida para representar o Mal numa das gárgulas da Washington National Cathedral, nos States? Não foi o Diabo! E isso só significa que a catequese foi vencida por Hollywood, pelo menos no Ocidente!
- É um facto!, concordou Zeus. Os personagens religiosos, para uma criança, são menos carismáticos que o Homem-Aranha ou o Skywalker e poucos se interessam pela vida do S. Vicente de Saragoça, mesmo sendo ele o padroeiro de Lisboa. Isto para falar da religião dominante no teu país. Daí que haja quem resista à globalização. Nós gregos, preocupávamo-nos em estimular a imaginação do nosso povo até ao limite. Mas há para aí religiões que funcionam em direcção oposta, porque lidam com populações com muito fraco desenvolvimento intelectual.

- Não tinha pensado nisso!, disse Hipólito, enquanto escorropichava o fundo da taça. - Mas se os fundamentalistas acreditam que conseguem fugir à globalização, estão muito enganados! Ela está para ficar! O melhor é colaborarem no estabelecimento de novas regras, com benefício para todo o planeta e não só para o Homem! Mas mudemos de assunto., sugeriu o médico. - a tua mulher dá-se bem, lá por onde vocês andam?

Zeus sorriu, ajeitou-se na cadeira e chegou-se mais próximo do médico para lhe confidenciar: - Deixou de tomar a pílula! Agora quer engravidar! Adaptou-se completamente àquele estar. Os 14 protões do silício ajudam mais os seres vivos daquele planeta que os 6 de carbono que a vida na Terra usa. Torna-os menos conflituais e sabes como são as mulheres, olham em primeiro lugar para a estabilidade. E por falar nisso!, deitou a mão à cabeça, a lembrar-se de um compromisso. - Fiquei de ir com ela visitar um rio de azoto líquido que existe nas montanhas. E já estou atrasado. Desculpa ter de ir assim tão de repente. Um abraço! , disse e, no mesmo instante, esfumou-se no nevoeiro que assumiu um leve tom azulado.

À porta do Café o empregado perguntou. - Você não estava acompanhado?. Hipólito pagou e respondeu: -Nunca estamos sós. Mesmo que os não vejamos, os deuses estão sempre connosco!.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Diagnóstico de Diabetes Gestacional



SP: Quem inventou esta Prova de Tolerância à Glicose, devia ser decapitado!
HG: É à base de quê, essa Prova? Se for sob a forma de mousse de chocolate, eu ganho!
SP: Basicamente, bebes açúcar puro, em jejum, e ficas duas horas a ver se não cais para o lado!
HG: Estão a testar-te para o Natal! Podias propor ao colégio da Especialidade de Endocrinologia uma Prova Modificada e mais divertida, à base de tarte de chocolate e natas, pudim Abade de Priscos, fatias douradas, baba de camelo ... . Assim se avaliaria a capacidade das pessoas enfrentarem a vida!
SP: Concordo! E ficávamos duas horas a comer e não a esperar!
HG: Entretanto, como só nos lembrámos disto agora, vais mesmo que terminar essa prova em difíceis condições. Lembra-te que a tua família confia nas tuas capacidades lambonas!
SP: Põe difícil nisso! Neste momento só tento não vomitar para não ter de começar tudo de novo! Obrigada pelo incentivo! No Natal quero prioridade!
HG: Não dá para pedires uma fatia de pão de ló, para molhares na calda?
SP: Não me tortures! O que eu dava agora por qualquer coisa para comer!
HG: Diz à senhora enfermeira: Isto parece o Natal dos Pobres! Trazem a calda e esquecem-se do pão de ló! Mas tens de dizer bem alto, como quem está a falar com alguém que está no fundo da sala!. Em que hospital é que estás? Tanto médico na família e não arranjas uma cunha para te darem um pão?
SP: Estou num Laboratório!!!! Ninguém me safa! Já só falta uma hora e ainda estou de pé!
HG: Força! Não desanimes! Se fosse no Hospital Veterinário, de certeza, que já tinhas uma tigela de ração! Eu trabalhei num e nunca vi tais ofensas aos direitos humanos!

Conversa roubada de um whatsapp

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (23)



Uma lareira, um sofá aconchegante, um bom livro e um copo de vinho tinto “para senhoras”, faziam-lhe as delícias nas noites de inverno. Este mais parecia um Outono adocicado pelos ventos de África mas, à noite, bem dentro de Dezembro, manda a tradição que haja recolhimento e que as práticas divirjam das de outras estações.

Hipólito lia um livro de História que lhe apresentava os factos sob uma nova perspectiva e, surpreendia-se por não se ter apercebido de outras narrativas possíveis. A História deve ser lida à luz dos valores e conhecimentos da época, mas sendo ela sempre escrita pelos vencedores, há que manter distância, evitando embarcar na deificação dos lideres, que lhes omite os erros, lhes empola as virtudes e lhes fixa os objectivos em função dos resultados obtidos, a que o Acaso nunca é estranho.

Olhou para o copo. Aquela garrafa de Carbernet Sauvignon da Casa Ermelinda Freitas valia bem os nove Euros.
Pôs uma acha na lareira e voltou ao sofá. De repente, lembrou-se que tinha agendado uma consulta com Jó, para essa noite.
Olhou o relógio. Estava quase na hora. Fechou o livro e aguardou.

Minutos depois, a campainha tocou. Era Jó. Vinha diferente. A túnica nova e a barba aparada, tiravam-lhe o ar miserável do primeiro encontro. A pele já não tinha crostas embora se notassem múltiplas manchas cicatriciais descoradas. Nos pés trazia umas sandálias de couro, amarradas em torno do tornozelo.

- Entra, entra! Que não estás vestido para uma noite como esta. Nem umas meias calçaste!, preocupou-se o médico ao vê-lo naqueles preparos, como se estivesse em pleno verão, nas margens do Eufrates.

-Não te preocupes!, respondeu Jó. - Estou habituado ao sofrimento. O Purgatório é uma provação diária!. O frio é o menos. O pior é a humidade! Então quando há nevoeiro …, entranha-se-me nos ossos e fico tolhidinho de todo!
Hipólito conhecia de cor essas histórias do reumatismo e ainda se tentou a explicar-lhe que um ambiente saturado de água dificulta o aquecimento, mas lembrou-se que Jó não possuía conhecimentos básicos de física e conteve-se. Foi ao móvel onde tinha os copos e trouxe-lhe um que encheu de vinho, enquanto o empurrava em direcção à lareira.
- Aquece-te aqui um pouco, que estás com as mãos geladas! Depois diz-me como tens passado!. convidou o médico.
- Melhorzinho!, respondeu Jó. - Principalmente da pele. Ainda futuro muito, mas nada como dantes! Mas o ambiente também não tem ajudado à minha recuperação psicológica!
- Como assim?, perguntou o médico.

Jó olhou-o suspenso na indecisão de contar histórias do Purgatório a um mortal, ainda vivo, e, por fim, desabafou:
- É que há umas três semanas, mudaram-se para o pé de mim os três pastorinhos! Como deves calcular não são a melhor vizinhança. O Francisco e a Jacinta, ainda se suportam. São crianças e fora o barulho que fazem, pouco chateiam! Agora a irmã Lúcia!... , abanou no ar, repetidas vezes, os dedos da mão direita. - É um cromo de alto lá com ele!. … Anda cheia de vaidades a dizer "Eu é que sou santa! Eu é que faço milagres! Eu é que ponho o sol a dar voltas!"... É um espancamento!!!!!. Passa a vida a dizer que, se não fosse ela, o centro do país só era conhecido pela pêra rocha!
O médico confirmou. - Lá isso é verdade! Ela é figura central no turismo religioso! Mas não contava com ela no Purgatório!? Isso é possível??, pasmou Hipólito.

Jó, meteu a mão cabelos adentro e respondeu com enfado: - O Purgatório está cheio de santos. Muitos deles, se aparecessem hoje, eram rapidamente encaminhados para hospitais psiquiátricos. Olha o S. Simeão "estilita"! Esse também anda por lá meio ganzado!
- Dizes que há santos no Purgatório!, insistiu o médico, a tentar tirar nabos da púcara.
- Ui!, respondeu Jó. – São “paletes” deles! Sempre houve muitas pressões sobre o Vaticano para a atribuição do grau de santo a um paisano excêntrico que, por uma qualquer razão, mais ou menos lógica, conseguiu chamar a atenção da populaça e gerar um movimento tal, que a Cúria não tem alternativa senão a de cavalgar a onda, antes que outros o façam. Uns estão identificados como “santos populares”, como o S. Roque, mas nem sempre assim é. A mitologia cristã é muito complexa. Eu sou de outro campeonato. Pertenço ao Velho Testamento. Infelizmente, a minha história de vida foi alterada, para se tornar exemplo de fidelidade, quando, de facto, ela é exemplo do que se não deve fazer quando nos deparamos com dificuldades, que é entrar em pânico e desatar a implorar a ajuda divina. Os árabes têm um ditado que diz “Deus ajuda quem se ajuda!” e os brasileiros dizem que “Pão de pobre quando cai, é com a manteiga para baixo!”. Naquele tempo não se dizia nada disto! Implorava-se a Deus na desgraça. E foi nesse barco que embarquei!

-Vejo que fizeste um esforço para interpretar os erros da tua vida!, confirmou Hipólito. – Apesar de tudo, tiveste sorte, porque Deus deu-te novo gado e novos filhos! Mas, já que me abriste a curiosidade, ao falares do Purgatório, eu gostava de saber se viste lá santos portugueses? O S. Teotónio? O D. Nuno Alvares Pereira? E os mártires de Viana do Castelo – a Revocata, o Teófilo e o Saturnino?
Jó deixou a cadeira e sentou-se no tapete. Hipólito acompanhou-o.
- Temos este hábito de nos sentarmos no chão!, justificou-se. E depois, enquanto passava a mão pelo tecido, anotou. - Belo tapete! É bem macio! É português?
- Sim! respondeu o médico. – É de Beiriz. Cem por cento lã. Em Portugal só se fazem tapetes em dois locais. Em Beiriz e Portalegre. Embora chamem tapete ao que se faz em Arraiolos, aquilo, na verdadeira acepção da palavra, é um “bordado”.

- É engraçado como as palavras perdem significância, quando se divulgam para fora das camadas mais eruditas da população. Um tapete tem uma urdidura muito diferente da de um bordado. Mas, respondendo à tua pergunta sobre os santos portugueses, também aqui as palavras ganharam diferente significância e a população começou a chamar santo a todos os que, de algum modo, se identificaram com o seu sofrimento, sem qualquer aval da cúria romana. É assim que aparecem os “santos” mártires, os “santos” bispos (também chamados doutores da igreja), e santos como o Nuno Álvares Pereira, que de “estratega e génio militar”, aos 64 anos, depois de enviuvar e ter perdido os filhos, se tornou “humilde monge”, no imponente Convento do Carmo, por si mandado construir, em 1389. Só foi reconhecido beato em 1918 e santo em 2009, depois da sua suposta intervenção na recuperação «milagrosa» de uma úlcera de córnea provocada por óleo de fritar, que deveria ter demorado um ano a sarar e que sarou em apenas três meses.

- Como é que sabes isso tudo?, inquiriu Hipólito. – Podes ser de outro campeonato, mas estás bem actualizado!
Jó sorriu. – Foi um acaso!, explicou. – Como a Lúcia, no meio das suas vaidades se comparou com o Santo Condestável, dizendo que ele quase não tinha devotos, eu fui ver quem era o personagem. Depois, como tu vives em Viana do Castelo, procurei os santos dessa região e só encontrei o São Teotónio. Quanto aos mártires por que perguntaste, devem ser uma invenção. Uma coisa como as antigas relíquias.

Agora era a vez de Hipólito sorrir. – Fiquemos por aqui, senão ainda acabamos a falar dos 14 prepúcios de Jesus que circulavam pela Europa na Idade Média! Se estás melhor, vais manter o tratamento e aguardar a consulta de psiquiatria, que eu agendei para o início do ano!
Levantaram-se. Hipólito foi à cozinha e trouxe um pequeno embrulho que lhe meteu entre as mãos. – Tens aqui uns sidónios, da Confeitaria Flôr, para a viagem de regresso. Vais ver que são dos melhores que aqui se fazem! Não comas tudo de uma vez, que eles também são bons no dia seguinte.
Jó agradeceu. – Deixas-me sem jeito! Não pago a consulta e ainda por cima, me dás prendas!
- Quando ficares bom, se te lembrares de passar por cá, traz umas costeletas de carneiro, para degustarmos em conjunto e fazermos as honras a uma pomada que eu ali tenho para as circunstâncias especiais.

Abraçaram-se. A noite estava fria e aceleraram as despedidas.
- Até uma próxima!, respondeu Jó, desfazendo-se em fumo.
- Vai com calma, que o mundo não acaba amanhã!, disse Hipólito, enquanto pensava: A eternidade é uma chatice!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Certidões de Óbito Electrónicas


Todos gostamos de ser bem tratados.
No local de trabalho, onde passamos mais de metade dos nossos dias, tal adquire grande significado.

Para a minha actividade profissional, no Hospital, abro diariamente o SClínico e sou recebido com indiferença!

Só quando me ligo à capital, para passar uma Certidão de Óbito, é que me dão as boas-vindas!
Obrigado Lisboa!

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (22)


Acendeu a televisão. Anunciava-se a morte de Fidel de Castro e o médico anotou o corropio de comentadores e as frases de circunstância - que só a História o julgará, que era uma figura controversa, singular, que tinha um sonho, que … . Desligou ao quinto, sem esperar pela análise de Marcelo que, a julgar pelas fotos da sua visita, um mês antes, o deve ter surpreendido com uma qualquer “bavaroise”.
Pegou no smartphone e ligou para a mulher. Que não demorava! Que adiantasse o jantar! Que havia sopa no frigorífico, mas que fizesse um arroz e uma omeleta ou então que fosse à churrascaria buscar qualquer coisa já confeccionada!
Foi à cozinha, pegou numa tábua de queijos, numa garrafa de vinho e num pão tradicional do Alentejo. Foi para a sala, pôs a tocar, no leitor, o Álbum de Chopin de Lang Lang e sentou-se a petiscar.

Foi nessa altura que tocaram à porta. Um homem escanzelado, com múltiplas crostas na face, apareceu no intercomunicador.
Hipólito, perguntou: - Quem és, e o que pretendes?
-Tem calma! Eu necessito de ajuda! Já deves ter ouvido falar de mim. Sou Jó!
- Jó????, exclamou o médico. - O da Bíblia?
- Sim! Esse mesmo!

Foi à porta. Olhou-o de alto a baixo. A tez escura, a longa barba, a túnica rota, por onde saíam dois braços com inúmeras pústulas, o sotaque e a linguagem corporal, davam coerência à sua afirmação e Hipólito não hesitou e convidou-o a entrar.
- Tens uma história de vida do mais bizarro que há!, disse-lhe enquanto empurrava a porta. - Em que te posso ajudar? Pensei que estavas na maior e não nesse estado lastimoso. Ao fim e ao cabo voltaste a ter património, família e saúde, depois de Deus te ter tirado tudo, naquela aposta descabelada com o Diabo!

Jó, fez-lhe um salamaleque e entrou, enquanto explicava:
- O que se escreveu sobre mim não corresponde ao que se passou. Já nessa altura os narradores confabulavam para tornarem as histórias apelativas. A verdade é que foi quando adoeci que tudo começou a correr mal.

O médico, ofereceu-lhe uma cadeira em frente à sua e foi à cozinha buscar outro copo, na esperança de que aquele Quinta da Bacalhoa fosse fermento para pormenores que dessem maior credibilidade às suas afirmações. 
- Estás então a dizer que foi a doença que levou a tua casa à desgraça?
- É a pura verdade! Já rebobinei o filme da minha vida vezes sem conta e, depois de ter lido muita coisa, cheguei à conclusão de que sofro de uma Perturbação da Ansiedade Generalizada!, respondeu Jó, contristado. Depois, bebeu dois goles de vinho, deu um estalo com a língua em sinal de aprovação, e continuou: - Como sabes, nasci numa família rica, na terra de Uz, que hoje faz parte da Jordânia. Herdei um património enorme e, nos primeiros tempos, até o acrescentei! suspirou, fez uma pausa como a relembrar o sofrimento passado, e continuou: - Grande nau, grande tormenta! Todos os dias havia problemas! A certa altura, dei por mim a "empreender" neles, sem lhes achar solução e a passar noites em claro. Em desespero, virei-me para Deus a pedir piedade, na esperança de uma ajuda, mas quanto mais orava, mais desgraças atraía e, em pouco tempo, eu, que era um dos homens mais ricos do oriente, perdi o gado, a gente que estava ao meu serviço e até os filhos. Por fim surgiu-me a doença da pele e fiquei com este aspecto desgraçado.

Hipólito mediu o pobre homem. Aquela história bíblica, por mais que as exegetas se esforçassem por lhe dar um significado actual, não tinha pés nem cabeça. Um Deus a apostar com um Diabo a fidelidade de um crente, a ponto de permitir que este lhe desse cabo da vida, era mau demais para um ser misericordioso. A interpretação que Jó dava, a de um homem atormentado por crises de pânico, que o tornam num farrapo, era uma explicação muito mais razoável para aquela situação.

- Jó!, interrompeu o médico, quando lhe chegava a cesta do pão. - Então não são “inverdades”, como agora se diz, as tuas constantes preces a Deus e a tua exemplar fidelidade?!
- Foi o desespero! Nessa altura, eu acreditava no poder da oração e que, se eu apelasse a Deus, ele realizaria maravilhas e ajudar-me-ia a superar todas aquelas dificuldades. Só mais tarde é que entendi que elas não eram reais, mas resultantes do meu problema de saúde.
- Mas uma vez que já morreste, o teu tormento devia ter acabado. No Céu é suposto haver um gozo pleno e eterno, ouvindo música celestial e bebendo o leite e o mel da contemplação divina.
- Não, Hipólito!, respondeu célere Jó. - Eu vivo no Purgatório! Ali, é como na Terra. Mesmo quando lá estamos há séculos, como eu, e temos direito a recreios prolongados e licenças precárias, há tribulações frequentes!

- É curioso! Eu pensei que o Papa João Paulo II tinha fechado o Purgatório em 1999!, lembrou o médico.
- Como é que podia!, exclamou Jó, com alguma impaciência. - São biliões de almas que lá estão! Para lhes arranjar um outro destino, é preciso tempo. Há muita burocracia a cumprir. Lembras-te quando surgiram os movimentos que criticavam o atendimento dispensado nos Hospitais Psiquiátricos, acusando-os de promoverem isolamento, reclusão, abandono, estigmatização e tratamentos inadequados? Já analisaste os resultados do que se fez para que esses doentes passassem para o ambulatório? Lá ia ser pior! Uma coisa são as intenções e outra é pôr a obra no terreno!

Hipólito pasmou com a actualização de Jó.
- Vejo que estás a par do que se passa na psiquiatria portuguesa. Mas conta que a demografia e a crise também não nos têm ajudado. As famílias estão cada vez mais pulverizadas e sem capacidade para tratar dependentes.
- Entendo! Respondeu Jó. – Mas apesar de tudo há respostas! No Purgatório só há produtos “naturais” e não há apoios sociais.!
- E permitem entrada de medicamentos, vindos do exterior?, sondou Hipólito.
- Quanto a isso, não há problema! Até droga se pode levar! Na admissão há quem anote, para o "deve e haver" do Juízo Final! Mas não há limites!


Jó ajeitou-se na cadeira, puxou de um caco de louça e começou a raspar uma das crostas do antebraço.
- Está quieto e não agraves essas lesões!, levantou-se o médico, para lhe retirar o fragmento da mão. - Tens uma neurodermite infectada e ainda te pões para aí a escarafunchar!? Confirmo o teu diagnóstico. Vou ver se tens alguma outra doença concomitante, mas depois vou ter de te orientar para psiquiatria! e, a talho de foice, ainda intrigado com aquela aparição, perguntou: - Quem é que te aconselhou a vir ter comigo?

- Foi o Hércules. Encontrei-o em Petra, numa das minhas saídas precárias. Procurava dois cavalos que se tinham tresmalhado. Ficámos um tempo à conversa e ele falou que andava muito melhor desde que tu lhe mudaste a medicação. Então, dispus-me a vir até aqui na expectativa de me ver livre desta dor existencial que me faz amaldiçoar o dia em que nasci!
- Ainda bem que não entraste em depressão e mantiveste essa Fé, senão a coisa ainda era pior. A filha do Onassis também tinha tudo, como tu, e suicidou-se aos 37 anos!
- Ouvi falar!, respondeu Jó. – Talvez por temor a Deus, sei lá, recusei sempre o suicídio, mesmo quando a minha mulher me incentivava a fazê-lo. Mas cheguei a pedir a Deus que soltasse a sua mão protectora e me eliminasse.
- Ok!, já percebi as tuas angústias! Acaba o vinho e vamos ali para baixo, para eu te fazer o exame físico, não vá teres hipertensão ou outra qualquer maleita, que possa interferir com a medicação que te quero propor!

Hipólito deu-lhe a mão para que não tropeçasse nos dois degraus, que distavam da sala de estar. Depois, mediu-lhe os sinais vitais, viu-lhe a orofaringe, auscultou-o, palpou-lhe as cadeias ganglionares, deitou-o para uma palpação abdominal e fez-lhe um toque rectal. No fim concluiu. -Vais ter de fazer umas análises, uma radiografia ao tórax e um electrocardiograma. Entretanto inicias um antidepressivo em doses baixas associado a um ansiolítico, mais um antibiótico para essa estafilococia que tens na pele. Quero ver-te daqui por uma semana e, nessa altura, espero já ter um agendamento para um psiquiatra! Queres outro copo de vinho ou preferes que te faça uma sandes para a viagem?

Jó recusou ambos. Estava feliz na expectativa de tão bons resultados como aqueles que Hércules obtivera, e isso era um bom augúrio, constatou Hipólito.
Despediram-se. Jó deu três passos e um salto e, qual coruja, desapareceu na noite como um fumo, sem um ruído, quando, ao longe surgiam os dois faróis do automóvel da mulher. - Já não era sem tempo!, exclamou.