- E este aqui, vai ficar para amanhã fazer uma endoscopia alta. Diz que engoliu a prótese dentária. Não se vê nada de especial nas radiografias, mas não vá o homem ter uma laceração do esófago e entrar por aí com uma mediastinite ou coisa pior!
Foi assim que se passou o último doente do corredor do Serviço de Urgência, pouco passava das 24:00h.
O Sr. Manuel é viúvo. Tem oitenta anos, uma boa reforma e uma companheira de cinquenta, que os filhos abominam.
Aos setenta e cinco anos, saiu da cidade onde sempre viveu e juntou os trapinhos aos dela. Ele dá o combustível. Ela a força de trabalho. Uma parceria com mútua vantagem, e, mesmo que a diferença de literacia seja evidente, na circunstância de um regresso ao básico, pouco importa.
Hoje, é o medo de ser operado, que lhe ocupa a mente. Estava a comer um pão com queijo e entalou-se e, quando deitou a mão à boca, notou que a prótese móvel com três molares não estava lá.
Já conseguiu beber um pouco de água sem problemas, mas o médico que o observou, teve recentemente um caso de laceração do esófago por um osso de frango, que terminou mal, e não quer correr riscos.
O Sr. Manuel compreende. Os seus cem quilos vão ficar a soro até ao exame, mesmo que aquele corpo não esteja habituado só a água e cloreto de sódio.
Dormiu mal. Na manhã seguinte, está desesperado. Vê passar os tabuleiros com pão e leite a fumegar e um doce aroma a cevada que, para além de aliviar os cheiros nocturnos da urina das fraldas, misturados com os gases e os hálitos matinais, lhe causa dolorosas contracções do estômago.
Vem outro médico que repete as perguntas.
- Dói?
- Um bocadinho aí em cima!
Não sabe se é da fome ou se é a placa dos dentes a fazer avarias.
-Têm passado gases?
- Alguns!
Estivesse em casa estourava até com gosto. Mas ali, tem-se contido por respeito pelos parceiros do corredor. Dói-lhe é a cabeça. Se calhar é da fome!
Dizem-lhe que o exame só será feito de tarde, porque o médico está todo o dia em intervenções programadas, e que vai ter de aguentar mais umas horitas. Não se lembra de alguma vez, ter estado tanto tempo sem comer.
São 18 horas quando o levam. A Maria já o foi visitar e descompô-lo por ainda não ter resolvido o problema da placa, que tinha partido um dos apoios.
- Ó mulher! Eu ia lá adivinhar que aquilo podia ir com a comida!.
São 20 horas quando o exame acaba. Tudo normal.
-Ó homem! Você sentiu mesmo que estava a engolir a placa?
- Eu sei que me entalai com o pão e que, quando deitei a mão à boca, não tinha lá os dentes!.
- E agora está bem?
- Estou cheio de fome!
- Ok! Vai ter de esperar que o maqueiro o venha buscar para ir de novo para a Urgência!
Quando o vêm buscar à Unidade de Gastrenterologia, são quase 21 horas. O médico que o seguiu já saiu e não há jantar para si. Dão-lhe um chá com bolachas depois de muito insistência junto de um enfermeiro.
Pergunta se não vem outro médico. Dizem-lhe que o que entrou não tem mãos a medir com os doentes que estão continuamente a chegar, mas que não tarda.
Por fim, à uma hora da manhã, o médico aproxima-se e diz que lhe vai dar alta e para comer muitos espargos, mas alguém o chama para uma emergência e larga a conversa e afasta-se rapidamente.
Adormece.
Às 08:00h, acorda e fica à espera.
Às 09:00h dão-lhe uma carta e uma receita e sugerem-lhe que vigie as fezes para ver se a prótese foi expulsa e que contacte de novo o Hospital caso surja alguma alteração suspeita.
Telefona à mulher para o vir buscar, veste-se e fica a aguardá-la.
Às 10:30hm ela chega. Metem-se no carro em direcção a casa, mas antes, passam por um café onde toma duas meias de leite e come três croissants.
Às 12:00h entra no apartamento e vai, com uma leve suspeita, à mesinha de cabeceira. Abre a gaveta e vê um lenço amarfanhado. Abre-o.
Encontra a placa.
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