domingo, 1 de janeiro de 2017

- Vossa Excelência dá licença?


- Vossa Excelência dá licença?, diz a cabeça que assoma à porta do gabinete onde me encontro a fazer registos.
Ficaram no corredor, da noite, trinta e três doentes e, desde as oito horas, já assumi sete novos "laranjas".
- Diga, se faz favor!.
Dá dois passos dentro da sala e, cheio de mesuras, responde:
- É para saber do doente da maca Z!

Olho aquele vulto grisalho, todo vestido de negro. Não observei nenhum doente da sua etnia, e dá-me vontade de lhe perguntar a razão desse seu interesse, mas tenho muito que fazer e opto por uma resposta fácil:
- Está a aguardar resultados de análises! Ainda é cedo para conclusões!
- Obrigado! Sr. Dr.!, e sai do gabinete às arrecuas, como se tivesse estado na presença da Rainha de Inglaterra.

São onze horas da manhã. Os doentes continuam a entrar. Já não há macas, nem lugar para as pôr. O corredor está "atafulhado" de doentes, de bombeiros (que os trazem e os levam), de familiares acompanhantes e de profissionais. Só a custo sei quem é quem.
Planeio. Este, sobe quando houver vagas no internamento. Este, se as análises não estiverem muito alteradas, terá alta. Este outro, se tiver as enzimas elevadas, é para ser visto por cardiologia . Aquele ...

É assim a vida num Serviço de Urgência, em Portugal, onde mais de trinta anos de políticas hospitalocêntricas, levaram a que aqui se trabalhe em situação de catástrofe crónica, como se tudo exigisse um diagnóstico célere, que, cada vez mais, a população exige.
- "Sr. Dr.! Se não tem Cardiologia no Serviço de Urgência, chame já uma ambulância para levar a minha mãe para o Porto!. Foi o que disse o seu cardiologista!", assim ... em tom de exigência, até antes de efectuar a Triagem de Manchester. ... Tudo e já!
O espírito VMER levado ao extremo. Ambulâncias aos gritos de um lado para o outro a transportar idosos, sem vida de relação, na vã esperança de mais umas horas a respirar ou, quiçá, para livrar de responsabilidades quem os envia. Ambulâncias a transportar gratuitamente para o Serviço de Urgência gente que, após a alta, não sabe como regressar a casa, por lhe ter sido levantada uma qualquer hipótese diagnóstica, mais ou menos descabelada, e não ter na proximidade da sua residência um travão a essa deslocação. Gente que abusa do facto de ser "isenta" e, por fim, este e outros como este, que passam por aqui para atrapalhar a geringonça em que os Serviços de Urgência se foram transformando.

Por fim lá chegam o exames do doente em questão. Arrisco uma alta sob medicação, orientado para o médico de família. Outros deixá-lo-iam no corredor, para uma "vigilância" que eu acho mais eficiente no domicílio.
Chamo a família para definirmos, em conjunto, os cuidados a ter e a eventual necessidade de um regresso, caso surjam alterações na evolução prevista. São de perto e põem-se cá em menos de trinta minutos. E, para satisfazer a minha curiosidade, questiono a filha se tem alguma relação de proximidade com o chefe dos ciganos, que perguntou pelo pai.
Não. Mas conhece-o. Há uns quinze dias bateu à sua porta para lhe tentar vender uns casacos de couro. Reconheceu-a na sala de espera e perguntou se tinha familiar "lá dentro" e disse que tinha "passe livre" para entrar.

- E que lhe disse da minha resposta?
- Nada. Só disse que estava muito bem entregue! Que o médico era muito bom!

Ao menos isso, ...

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