segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Lembranças do Olimpo (31)



Passaram mais de duas semanas quando Hipólito se disponibilizou a responder ao convite para o Congresso em Massada. A vida desviava-o para outros afazeres e os dias curtos cansavam-no, a ponto de às dez da noite, já o corpo lhe pedir descanso. Até aquela hora vespertina que sempre guardara para passar os olhos pelas revistas que regularmente lhe chegavam a casa, estava a aguardar melhores dias.

Antes de sentar ao computador, foi à cozinha, passou a mão pela chaleira, para se assegurar que ainda tinha chá quente, quando sentiu um borbulhar de água e viu aparecer no ar um fumo branco que lentamente esboçou uma figura humana.

- Hei! Lá!, espantou-se Hipólito, olhando a nuvem que lentamente escurecia. - Por esta é que eu não esperava! O Génio da Lâmpada!? Vens mesmo a calhar!, disse enquanto um sorriso lhe rasgava o rosto.

Esperou uns segundos até que ela ganhasse a forma definitiva e analisou-a melhor. Tinha uma barba branca de seis meses, um turbante preto cuidadosamente enrolado na cabeça e umas sobrancelhas negras ameaçantes a cobrir o olhar penetrante. Vestia uma camisa com colarinho “mao” e por cima uma capa castanha impecavelmente lisa.

Ainda Hipólito não tinha assumido o seu erro, quando ele se lhe dirigiu, com voz autoritária:

-Eu não sou um Djinn! Sou a alma do aiatola Khomeini! Por isso atem-te, que o forno não está para rosquilhos!...

Há equívocos que se podem pagar caro. Chamar Génio a um aiatola é um insulto para o mais alto dignitário na hierarquia religiosa do Islão xiita, descendente direto de Maomé e expoente máximo do conhecimento e do discernimento. E ainda por cima ao Khomeini, que pôs ponto final a 2.500 anos de monarquia no Irão!

Era para estar no Paraíso, refastelado. Aparecer-lhe assim trinta anos após a morte, saído de uma chaleira, era de arrepiar os cabelos. Talvez a família se tivesse esquecido de lhe colocar, debaixo da língua, a moeda para pagar a Caronte e, por isso, a sua alma não atravessara o rio dos Infortúnios. O Alexandre, o Grande, andou por ali e deve ter deixado lá a tradição.

Aquela aparição apanhara-o desprevenido. Mediu a situação e, depois de um longo suspiro, e de um Cruz! Credo! Maria Santíssima!, dito para dentro, engoliu em seco e justificou-se:

- Calma! Não contava com visitas a estas horas da noite! E o tipo de encenação que escolheste, confunde qualquer um!

A figura manteve o ar austero. Sentou-se no tampo do armário da cozinha e explicou-se:

-Se estavas a pensar que eu era um génio, que te ia fazer as vontades, muito ao imaginário ocidental, tira o cavalinho da chuva, e muda o discurso! Pelo menos enquanto estiveres na minha presença! Deves saber o tratamento que damos aos infiéis! E não penses que por estares em Portugal te safas. Olha que uma "fatwa" abrange todo o planeta!

A coisa estava negra. Aquela alma penada, que não dera descanso ao Ocidente, durante os dez anos que estivera no poder no Irão, estava ali com alguma intenção, a que não devia ser alheia a sua última conversa com Moisés.

Hipólito convidou-o para dentro da sala e sentaram-se na mesa de jantar. Depois, procurou colocar tom na sua voz de rádio e, com a maior delicadeza, ousou perguntar-lhe ao que vinha. A alma do Khomeini, sintonizou-se e respondeu:

- Como deves saber, desde a Segunda Guerra Mundial que os Estados Unidos ditam os termos por que se rege o discurso global, embora nas últimas décadas tenham partilhado o poder, com os países do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e as Instituições por eles controladas, como o FMI, … no contexto de um verdadeiro governo mundial. São as elites económicas que têm verdadeiro impacto nas políticas governamentais, enquanto a vasta maioria da população é ignorada e excluída do sistema político. A era neoliberal com a sua economia cada vez mais monopolizada, e com as figuras políticas a representarem amplamente os interesses das predatórias instituições financeiras e das multinacionais protegidas, fez com que uns poucos adquirissem o estatuto de “donos disto tudo”. Ora é contra este estado de coisas que eu continuo a lutar, mesmo depois de morto! A revolução iraniana de 1979, foi o início da Revolução Islâmica, que se quer mais ampla.
O Mapa do Médio Oriente do século XX é uma criação falsa e anti-islâmica dos imperialistas e dos apetites de soberanos tirânicos, que apartaram os vários segmentos da “ummah” (comunidade) islâmica, para criar nações artificiais, sem qualquer base na lei divina.

O médico ouviu e arriscou interromper:

- Eu já conhecia o proselitismo islâmico, mas o que fizeste foi usar o Estado como arma instrumental de um conflito religioso. Se os aiatolas se intitulam Líderes Supremos da Revolução Islâmica, da ummah islâmica e do povo oprimido, não são apenas figuras nacionais, mas autoridades globais.

Hipólito mantinha a voz calma de um repórter da CNN a entrevistar um senhor da guerra no seu território. Sentia que aquela alma não estava em paz, que almejava uma ordem mundial fundamentada nas suas crenças, e avançou a pergunta:

- E foi por isso que reivindicaste autoridade jurídica mundial para emitir uma fatwa pronunciando uma sentença de morte contra Salman Rushdie, cidadão britânico de ascendência indiana muçulmana, pela publicação na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos “Versículos Satânicos”, livro que consideraste ofensivo?

A alma do aiatola, enfunou e desenfunou, como que um respirar fundo a englobasse na totalidade e respondeu:

- Esse facto foi um erro de principiante! Devíamo-lo ter feito sem o pronunciar, como fazem os Estados Unidos, com aquilo a que chamam guerra contra o Terrorismo. Só a título de exemplo e só para falar na América Latina, lembro que uma semana depois da queda do muro de Berlim, seis eminentes intelectuais latino-americanos, todos eles padres jesuítas, foram alvejados na cabeça por ordem directa do alto comando de El-Salvador. Os perpetradores pertenciam a um batalhão de elite armado e treinado por Washington. Mas foram inúmeras as execuções de dissidentes políticos, não violentos, nessa região, consistentemente apoiados ou iniciados pelos Estados Unidos entre 1960 e 1990, para travar a terrível heresia proclamada no Concílio Vaticano II, em 1962, que propunha a “opção preferencial pelos pobres!”, desde o golpe de Pinochet em 1973, no Chile, à mais cruel das ditaduras – a ditadura militar que se instaurou na Argentina – o regime predilecto de Ronald Reagan.

O médico lembrou os honrados dissidentes que motivavam muitas das suas preocupações, quer eles se situassem a Ocidente ou a Leste, a Norte ou a Sul, à mercê daquela mãozinha que, escondida, “define” quem está a favor da “civilização” e quem nos quer levar para o “obscurantismo”, esquecendo que o nome de Nelson Mandela só foi retirado da lista oficial de terroristas do Departamento de Estado dos EUA, em 2008, e que vinte anos antes era, segundo o Pentágono, o líder criminoso de um dos mais conhecidos grupo terroristas do mundo.

Mas o Irão (como foi baptizada a Pérsia, em 1935), era um caso mais actual, de uma governação que se considera divina, a fazer lembrar os tempos da velha Inquisição. E lembrou Heródoto, historiador grego do século V a.C., que descrevia a autoconfiança dos persas, que se consideravam o centro das realizações humanas, do seguinte modo: “Acima de tudo, honram-se a si mesmos, mais do que os que com eles convivem, ou os que convivem com estes, e assim sucessivamente, com uma progressão honorífica em função da distância. Têm em menor apreço aqueles que têm a habitação mais afastada da sua. É assim porque consideram que são, em tudo, o melhor que a humanidade tem e que os outros têm um grau de virtude proporcional à sua proximidade: os que vivem mais longe são os mais destituídos”.
O seu sentido de identidade manteve-se ao longo dos séculos, bem como a sua confiança na superioridade cultural. A Pérsia – núcleo demográfico e cultural do Xiismo, optara por esta forma de diferenciação do Islão, como forma de contestação ao Império Otomano que era sunita, e colocou a tónica nas facetas místicas e inefáveis da verdade da fé. Mas quanto à questão da necessidade de derrubar a ordem mundial vigente, islamitas de ambos os lados da trincheira – sunistas e xiitas – estão geralmente de acordo.

Enquanto todo este emaranhado se lhe passava pela cabeça, o médico retomou o diálogo, indo directamente ao assunto:

- Mas o que te traz aqui a Portugal, a esta cidade onde não há vestígio da cultura islâmica?

- Tu!, disse, enquanto se levantava e deambulava pelo tapete. – Sei que foste convocado para uma Reunião em Israel, para falares das tuas experiências com os vários deuses, que dizem terem regido o mundo, e vim aqui para te dizer que “Não há outro deus além de Allah e que Muhammad é o seu profeta!”. Que haverá paz apenas para aqueles que seguem o caminho verdadeiro. Que só o Islão é capaz de libertar os povos oprimidos e que é fundamental que se lute contra a América, o saqueador mundial e as sociedades comunistas materialistas da Rússia e da Ásia, bem como contra o sionismo de Israel. Que o conflito com o Ocidente não é uma questão de concessões técnicas específicas ou de negociação de fórmulas, mas um confronto sobre a natureza da ordem mundial.

-Eu?!!! Estás muito enganado! Levantou-se também Hipólito, apontando-lhe o dedo. - Eu não estou na política!!!. Ouço o que me dizem! E, se queres saber, acho que as comunidades humanas podem ser felizes com muitas matrizes, mais ou menos religiosas, desde que haja capacidade em as fazer crer que há justiça, que os poderosos não utilizam o poder em beneficio próprio e cuidam minimamente dos desprotegidos da sorte. Ora essas matrizes governamentais, mais tecnológicas ou mais abstratas, podem ser lideradas por reis, presidentes, triunviratos ou qualquer outro esquema onde se entendam os equilíbrios como dinâmicos, pois o que hoje responde às necessidades de um povo, não se mantém imutável e, mesmo uma religião, se não evolui, morre!.
Eu entendo a tua animosidade contra os Estados Unidos! Não entendo é como tens a vaidade de dizer que tens o conhecimento e o discernimento para os substituíres! Eu, prefiro o “Iberian way of life”, com tudo o que tem de mau, ao “Afghan way of life”, só porque respondo melhor a esta matriz cultural. Percebes??? Eu, em minha casa, sinto-me em casa! Ter de aprender a viver como tu achas que eu devia viver, não me agrada nada! Prefiro lutar para corrigir as imperfeições do meu sistema, que andar aos tombos dentro do teu!
Vai para dentro do púcaro, que não tens nada com a minha vida! És uma alma penada que não trazes nada de novo! Queres substituir aquilo a que chamas tirania, por outra de igual sentido ou pior! Quando a governação é considerada divina, toda a dissidência é tratada não como oposição, mas como blasfémia e eu já paguei para esse peditório!

E dito isto, abriu a tampa da chaleira e a alma do Khomeini, qual cãozito assustado de rabo entre as pernas, enfiou-se por ali abaixo sem qualquer ruído que revelasse a sua importância histórica.

Hipólito respirou fundo! Esta coisa dos deuses e dos seus mandatários na Terra, tem muito que se lhe diga. Um tipo não está seguro de nada. Já não são só os esquizofrénicos que ouvem vozes vindas dos Céus. Há muita gente na política que se diz com orelhas capazes de interpretar os sons que vêm do espaço e transformá-los em linguagem religiosa, e esse é um problema que tem milénios.

O médico subiu para o quarto. Lavou os dentes, tirou a roupa, vestiu o pijama e enfiou-se na cama. Fora um fim de dia atribulado. Felizmente que a alma perdera a convicção. Caso lhe mandasse uma fatwa, faria como o Salmon Rushdie. Pediria protecção à Scotland Yard.

A resposta ao convite ficava para outro dia!

domingo, 21 de janeiro de 2018

sábado, 20 de janeiro de 2018

Preâmbulo de um acordo comercial entre os Estados Unidos e um dos Xás da Pérsia da dinastia Safávida (1501–1736):



O Presidente dos Estados Unidos da América do Norte e sua majestade tão celebrada quanto o planeta Saturno, soberano a quem o sol serve como modelo, cujo esplendor e magnificência são iguais aos dos céus, sublime soberano, monarca cujos exércitos são numerosos como as estrelas , cuja grandeza lembra a de Jenishid, cuja magnificência iguala a de Dario, herdeiro da coroa e do trono dos Kayanidas sublime imperador de toda a Pérsia, estando ambos igualmente e sinceramente desejosos de estabelecer relações de amizade entre os dois governos, que pretendem fortalecer mediante um tratado de amizade e comércio, reciprocamente vantajoso e útil aos cidadãos das duas altas partes contratantes, nomearam para o efeito seus plenipotenciários ...

in A Ordem Mundial de Henry Kissinger 

sábado, 13 de janeiro de 2018

Lembranças do Olimpo (30)


Era Inverno. Os dias pequenos e a instabilidade do tempo, não estimulavam saídas. Hipólito aproveitava o domingo para concertar aquelas pequenas coisas que se arrumam a um canto à espera que uma disposição nos leve a medir com dificuldades que se têm por garantidas, pois a “obsolescência programada” é uma realidade, e aquilo que pensávamos ser para lavar e durar, acaba ao fim de meia dúzia de meses de uma utilização normal.

Pegou num candeeiro de mesinha de cabeceira e procurou numa caixa onde guardara uns antigos que herdara de uma sua avó, um abajour para substituir o original que estava partido. Não serviam. Voltou-se então para a torradeira. Revirou-a. Os dois parafusos embotados eram impossíveis de desapertar. Estava a perder tempo. Decidiu-lhe o destino - reciclagem do material eléctrico.  Limpou os bornes a uma lanterna, mudou-lhe as pilhas e acendeu. - Graças a Deus!, e falou com o aspirador, antes de lhe tocar: - Espero que não me deixes ficar mal...!,  e o aspirador fez-lhe a vontade. A substituição da ficha resolveu o problema.
Estava a medir o vidro de um quadro, quando sentiu um toque de um Mail no smartphone. Retirou-o do bolso, e leu:

- Caro Dr. Hipólito:

A Sociedade Universal dos Novos Feiticeiros, irá efectuar brevemente a sua Reunião Anual, sob o tema – O Futuro e as Crenças!

Tendo chegado ao nosso conhecimento que, nos últimos tempos, o Dr. tem recebido, frequentes visitas de deuses no activo e até de alguns já reformados, tínhamos o maior prazer que partilhasse connosco algumas das suas experiências, numa das mesas redondas da nossa Reunião, ficando a tema da sua palestra inteiramente a sua disposição.

Todas as despesas com deslocação, alojamento e alimentação ficarão a cargo da Organização. De acordo com as normas da nossa Sociedade, não há “Fee” para os intervenientes, incluindo os convidados.

Sem mais,

Atenciosamente,


Hipólito leu as datas e o local – 14 de Maio, Massada – Israel, uma assinatura indecifrável e por baixo “Benjamin Cohen”, Presidente da 70ª Reunião da SUNF.

Meteu o smartphone no bolso e sentou-se. Como seria possível que alguém soubesse daqueles seus encontros, se tudo se tinha passado em locais recatados, sem a presença de qualquer outro humano? Olhou em volta na procura de algo estranho, enquanto congeminava em quão pequeno está o mundo e na entrada triunfal que alguns dos deuses quiseram fazer nas suas aparições. Mas o que lhe parecia mais provável, era aquele mail ter partido de uma organização do tipo da NSA, da CIA ou do KGB, que esses estão em todo o lado.

Aparentemente eram os judeus os primeiros a questioná-lo e faziam-no de um modo “elegante”, convidando-o para uma Reunião com gente preocupada com as crenças humanas e com o modo de os levar a fazer coisas úteis mesmo que para isso se lhes tenha de dar razões erradas.
O desafio era claro. Quem estava na crista da onda era a gente do dinheiro. Uma reunião no deserto de Israel, no lugar mítico de Massada, onde Herodes “O Grande” construiu um palácio e uma fortaleza “inexpugnável”, até os romanos, no ano 70, o destruíram, depois dos seus defensores se suicidarem para não serem capturados. E quem seriam estes judeus? O Mark Zuckerberg do Facebook?, o Sergey Brin, da Google?, o multimilionário George Soros? o Jared Kushner, genro de Donald Trump?, ou algum dos banqueiros que mandam no mundo, das famílias Rothschild, Lehman Brothers, Goldmans-Saches, ou dos Kuhns,  dos Loebs, ????…  
Antes de aceitar o convite, iria enviar uma carta a perguntar se quem estava por detrás era gente viva ou mortos influentes.
O nome do presidente era “sonante” - Benjamin Cohen. Bin-yamín: ben - “filho”, yamin, “mão direita” - "filho do lado direito", “o bem-amado”. Cohen indica que tem ancestrais sacerdotes no Templo de Jerusalém. Nada mal! Um judeu que, com grande probabilidade, tem registo do DNA para assegurar a sua origem genética.

Olhou em redor como se sentisse vigiado dentro da sua própria casa. Confirmou que o mail não continha nenhum anexo e pesquisou na Net “Sociedade Universal dos Novos Feiticeiros” sem qualquer resultado significativo.
Podia ser uma brincadeira. Mas quem? Se não contara a ninguém as suas entrevistas com os deuses! Tinha de haver ali uma estrutura com capacidade de vigilância suficiente para ter acesso aos seus movimentos. Tentou ligar para o seu amigo Saldanha, que vivia em Macedo de Cavaleiros e que era filho de um judeu antigo, na esperança de ele lhe poder dar alguma pista, mas ele não atendeu. 

Tentava entender  aquele convite, quando um velho de grandes cabelos e barbas brancas, lhe bateu à porta. Hipólito abriu-a e, parecendo-lhe alguém vindo do Médio Oriente, saudou-o com um "Salaam Aleikum!", ao que ele respondeu "Alaikum As-Salaam!".
Trazia duas tábuas numa das mãos e, na outra, um bastão que o ultrapassava em altura. Vestia uma túnica branca desbotada e, sobre os ombros, uma manta vermelho-da-Pérsia, dava cor à indumentária. O olhar era arguto e cada ruga parecia denunciar um grande problema resolvido. Apesar da idade, que se lhe deduzia, tinha o porte corporal de um haterofilista em fim de carreira.
O médico convidou-o a entrar. O ancião apontou o bordão ao fundo da sala e, de imediato, toda a mobília se arredou para os lados para o deixar passar. O médico seguiu-o e, para corrigir a gafe do cumprimento inicial, arriscou: Shalom! Desculpa não ter percebido logo quem eras! Tomei-te por um palestiniano e afinal, pelo jeito, tu és Moisés, o grande libertador dos hebreus.
- Vejo que estás atento! Respondeu o profeta. – Este truque de afastar as coisas à passagem, é a minha imagem de marca. Faço-o desde que abri as águas do Mar Vermelho. Funciona sempre! Não te esgacei a porta, porque venho numa boa! Estava no Jardim do Éden a apanhar kiwis, quando reparei que estavas atarantado com um convite feito por uma sociedade judaica e não resisti em descer, para te esclarecer as dúvidas que ele te possa ter despertado. Por isso, pergunta que eu respondo, de acordo com as nossas normas internas! 

E dito isso, sentou-se no chão, junto à lareira, e convidou Hipólito a sentar-se em frente.
- Ainda bem que vens com esse espírito! Sorriu o médico. - Tomas uma cerveja ou preferes um copo de vinho para acompanhar a conversa?
- Se o vinho fôr kosher, preferia! Senão, bebo um copo de água!
Hipólito trouxe água e dois copos e sentou-se, como ele, no chão, com as pernas cruzadas.
- Ainda bem que te disponibilizas. Desde jovem que procuro entender os porquês de há mais de três mil anos o povo judeu ter períodos de grande florescimento, seguidos de outros em que é vítima de perseguições. Estou-me a lembrar do Egipto Antigo, da Babilónia, do Império Persa, do Império Selêucida, do Reino dos Ptolomeus, do Império Romano, do Império de Carlos Magno, do Império Islâmico, da Península Ibérica, da União Soviética, da Alemanha … . Em todas essas épocas os judeus ocuparam lugares de grande influência económica e política, mas acabaram perseguidos e expulsos. O que é que, na realidade, se passou para estas reviravoltas?

Moisés rolou o bordão sobre as tábuas, como a procurar palavras para uma explicação resumida e, depois de uma pausa, falou.
- A história é longa mas, para abreviar, lembro-te que, depois da destruição do Segundo Templo em Jerusalém, no ano 70 da Era actual, a sobrevivência da nossa religião exigiu que todos os judeus aprendessem a ler, a escrever e a adquirir competências e que, para assegurar a continuidade, todos os pais eram obrigados a ensinar os filhos a fazê-lo, o que constituiu um desenvolvimento revolucionário numa época em que a grande maioria da população era iletrada.
Ora os Impérios, à medida que se expandem, necessitam de profissionais educados e com competências intelectuais diferenciadas e é por isso que os judeus têm sido solicitados para os países nas épocas em que têm maior desenvolvimento. 
Desde que o mundo iniciou a “globalização”, que os judeus se concentram nas cidades com maior pujança económica, organizando a produção e o comércio, mantendo uma rede de influência altamente eficiente
Hoje em dia, dos treze milhões de judeus, 5,5 milhões vivem em Israel e 5,1 milhões EUA. Neste último vivem maioritariamente em Nova York, onde são 9% da população. Na Califórnia, Texas e Massachussetts, estados que geram o maior número de políticos influentes, são 7,6% dos brancos! 
Na época dos descobrimentos tinham forte presença na Península Ibérica, pois eles foram grandes financiadores dessa actividade. Quando foram expulsos levaram de Lisboa a industria de lapidação e o comércio dos diamantes para a Holanda.

Hipólito conhecia o poder e influência dos judeus no mundo ocidental, por serem dos principais banqueiros e CEOs das maiores multinacionais do mundo. Mas o que Moisés ainda não lhe tinha dito era os porquês das perseguições, e insistiu:
- Já vi que falas debaixo do conceito do “povo escolhido por Deus”, mas as perseguições e as mortes como as do Hananias, do Misael e do Azarias, podem ter outra explicação, à luz do conhecimento actual, que aquela que vem na Bíblia. Há milénios que se fala dos judeus como uma comunidade com grande cooperação dentro do grupo (etnocêntrismo), mas com um código ético muito laxo para com a restante população onde se inserem, que os leva a ser considerados, uns ferozes predadores especializados no crédito, na finança, nos bancos e em actividades tradicionalmente consideradas pouco éticas ou imorais como publicidade, entretenimento e pornografia. 

O mais humilde dos homens sobre a face da terra, que um dia recebeu no alto do Monte Sinai as Tábuas da Lei de Deus, suspirou com enfado e respondeu:
- Olha que eu, levado por uma justa cólera, já matei um feitor egípcio. Questionares que o Hananias, o Misael e o Azarias, depois de terem sido nomeados superintendentes dos negócios da província da Babilónia, deitaram a mão ao dinheiro do Nabucodonosor, e que foi por isso que foram jogados na fornalha ardente, é grave! Foram conversas como essa que levaram ao Holocausto e aos pogroms! O verdadeiro judeu, embora faça a gestão de grandes valores, é frugal porque cumpre o desígnio que Deus lhe atribuiu. Escolhido, não significa superior. Significa que transporta o peso e a responsabilidade de O representar neste mundo. O que tem sucedido é que nem sempre quem nos pede ajuda, faz boa gestão e, quando as coisas correm mal e se necessita de um bode expiatório, encontra-nos sempre à mão. A realidade é que a ausência de perseguição que actualmente se verifica nos EUA, tem diminuído a nossa coesão tornando-nos mais americanos e menos judeus! 

Hipólito retraiu-se. Arriscara questionar aquela história bíblica dos três jovens judeus levados para o Reino da Babilónia, que eram “dez vezes mais doutos que todos os magos daquele reino”, sem contar que Moisés estava habituado a lançar pragas e que até tinha capacidade para o extermínio em massa, como o fizera ao exército egípcio no Mar Vermelho, aquando do Êxodo. Decidira, agora, dar-lhe um pequeno elogio.
- Dizem que os judeus têm um Q.I. muito alto. Quando falei do que se tinha passado com aqueles judeus na Babilónia, não queria sugerir que eles tenham utilizado a vantagem que lhes fora concedida para enriquecimento ilícito. Estava a pensar em eventuais dificuldades de integração. 

- Não foi isso que eu entendi!, respondeu o Profeta. – Tens de ter mais cuidado com o que dizes! Uma palavra desajeitada é como a pasta de dentes fora do tubo, já não a consegues voltar a meter lá dentro. De facto, os Ashkenazi, têm um Q.I. médio entre 110-115, maior que qualquer outro grupo étnico do mundo. Há quem o atribua à sua prática antiga de casamento eugénico, mas eu penso que é o grande envolvimento na educação das suas crianças que os leva a obter estes resultados. É notável que sendo cerca de 0,2% da população mundial, tenham ganho 22% dos Prémios Nobel e vencido 54% dos Campeonatos do Mundo de Xadrez.

A conversa ia longa e o médico ainda não chegara ao ponto que mais lhe interessava e que era saber quais os objectivos últimos daquela reunião em Massada e arriscou a perguntar-lhe.
O profeta levantou-se. Riscou no tapete uma linha, com o bordão e disse: 
- Como sabes, são insondáveis os desígnios do Senhor! Mas está descansado, que quem está a liderar o projecto é o "povo de Deus"!, e dito isto, fez-lhe uma vénia e saiu, enquanto os móveis voltavam à sua distribuição habitual, fazendo com que um candeeiro de pé o atropelasse atirando-o ao chão. 
- lehitraot!, ainda teve tempo de lhe dizer, antes que a porta se fechasse. - lehitraot! ouviu, como um eco, do outro lado.

Hipólito sentou-se no sofá. Esta entrevista não fora nada produtiva. As suas dúvidas continuavam mais que muitas!

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018