Este texto tem o nexo da conversa, mesmo depois de meia hora à procura de uma ponta naquele emaranhado de vinte e um anos de vida.
Fora enviada ao Serviço de Urgência para observação por Psiquiatria, que na Escala só existia até às catorze horas. Cabia-me decidir se a situação clínica, justificava uma transferência urgente para aquela especialidade, a setenta quilómetros de distância.
Chamo-a, pelo sistema de chamada de doentes, para a Sala de Espera: Ana Sofia …, e aguardo. Entra-me uma rapariga magra, jeans escuros de cintura baixa e cinto largo, sapato com sete centímetros de tacão e blusão negro. Ao ombro uma saca de couro castanha a dizer com a blusa. Não é particularmente bonita, mas é elegante e tem aspecto cuidado. Senta-se e cruza a perna. Certifico-me que é ela que corresponde à carta de referência, e pergunto, ao ler “agitação, ideação depressiva” e coisas no género: - Quando é que lhe escreveram esta carta para vir ao Serviço de Urgência?”.
-”Foi hoje de manhã!” responde.
-“E só vem às vinte e três horas! Porquê?"
-“Porque fui para casa descansar, e estive a tarde a dormir! Depois a minha mãe chateou-me para eu vir, e eu para não a ouvir mais, … vim!”
-“E veio como?”
-“De carro!”
-“Sozinha?”
-“Não! Vim com um vizinho, que é como se fosse meu pai!”
-“Foi ele que a trouxe, e está lá fora. É isso?”
-“Não! Eu vim a conduzir o meu carro, e ele veio comigo!", depois, como a querer dar despacho ao assunto: -" Dr.! O que eu quero é um documento para a minha mãe saber que eu estive cá!”
-“Mas se o médico escreveu esta carta, deve-se ter passado qualquer coisa, ou não?!”
-“É a minha mãe que não me entende! Eu tenho um filho de dois anos, que vive com os avós paternos. O meu ex-namorado é toxicodependente e eu estou em Tribunal para a tutela do meu filho”. E depois, enquanto a voz lhe treme num assomo de um choro, -“Ninguém sabe o que é ser mãe, e só ter o filho ao fim de semana! Ele ainda no passado domingo me dizia, porque vais embora?, é triste!, e a minha mãe não compreende! Sabe, ela é operária numa fábrica de componentes para automóveis, há mais de vinte anos e eu estou lá a trabalhar há sete meses e, com a medicação que tomo para a depressão, não dou a produtividade que eles querem, e a minha mãe atira-se a mim!”
-“Deve haver aqui algum engano. Eu não sou juiz, nem assistente social. Sou médico, e neste momento, você não me parece nada do que está aqui escrito. Importa-se de chamar esse seu amigo que veio consigo!”.
Sai, e volta dois minutos depois com um rapaz de não mais de trinta anos, alto, brinco na orelha, a assumir um ar paternal. Explico-lhe a falta de psiquiatra, e no fim pergunto se notou qualquer coisa de anormal no conflito já habitual daquela vida. Os problemas são os mesmos.
Entretanto o telefone toca dentro da saca dela. Pousa-a em cima da secretária e tira de lá de dentro um smartphone de grande écran táctil, e com um ar de extremo enfado diz: -"É a minha mãe!" Discutem! Diz que se ela meter baixa, então vai trabalhar, só para não ficarem as duas no mesmo espaço, e mais um arrasoado de palavras de um não-diálogo. Peço-lhe o telefone e asseguro-me de que a recebe em casa, e de que não há problema tão grave que não possa esperar. Pergunto se conhece o amigo. Conhece.
Rebobino: vinte e um anos, vive numa aldeia, tem o pai em França separado da mãe, as duas são operárias fabris, ela anda de carro, tem smartphone topo da gama e veste para capa de revista numa quinta-feira à noite, e sugiro-lhe:
-“Minha senhora. Vá para casa dormir. Duvido que qualquer intervenção médica a possa ajudar, mas escolha alguém da área da saúde mental e fale com ele. Mas sempre com o mesmo! Boa noite!”