quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Carta a S. José


Caro S. José

Antes de mais, desejo sinceramente que andes feliz pelo Céu, na companhia dos teus, porque há anos que te admiro.

Quando eu era jovem, fiz do Robin dos Bosques, do Superman e do Lone Ranger os meus heróis, mas quando o cabelo me ficou branco e me deu para analisar a tua história, arrumei com eles e dei-te primazia pela tua coragem em não pactuar com o estar dessa época que, brutalmente, sacrificava inocentes à mínima suspeita de irreverência para com os supostos deveres socio-religiosos.
Tu já deves ter entendido onde quero chegar. Quero falar da Maria. Essa miúda que decidiste proteger da lapidação, quando já não estavas em idade de entrar em guerras nem em conflitos com o poder.
A malta agora conta a tua história como um conto da carochinha, mas eu decidi-me a montar os factos de outro modo, para a tornar lógica, e foi aí que me surgiste como um homem a ter em consideração.
Vamos aos factos:
1: Nos Hebreus, como em todas a civilizações da antiguidade, a religião ditava as bases da sociedade e obrigava a padrões morais muito rígidos.
2: As mulheres eram educadas especialmente para o casamento e, depois de casadas viviam para a casa e para os filhos, que geralmente eram muitos. A virgindade era um valor.
3: Tu nasceste em Bethlehem e estabeleceste-te de carpinteiro em Nazareth  e um carpinteiro naquela sociedade não era um “qualquer”. Devias pertencer à “nata” da cidade. Eras viúvo e tinhas uma família. Eras o terceiro de seis irmãos e pai de vários filhos.
4: Falam de ti como um “velho” entre os 45 e os 50 anos, certamente com experiência de vida suficiente para conhecer a natureza humana, sempre disponível a atirar pedras ao vizinho à mínima suspeita, para se afirmarem “defensores da moral e dos bons costumes”.
5: Quanto a Maria, o pouco que se diz da sua genealogia não tem consistência. Na época e no local, as mulheres não tinham relevância político-social. Maria pouco mais seria que “uma mercadoria” a negociar num casamento que trouxesse alguma vantagem ao clã.
6: O teu encontro com ela deve ter sido despertado por essa gravidez sem casamento nem pai identificado. O mais provável é nunca a teres visto antes, e teres-te sensibilizado com a notícia de que a lei determinava que a "adúltera fosse lapidada e o filho do pecado morresse com ela".
E é aqui que tu apareces a pôr um travão àquelas mortes, argumentando contra quem duvidava da tua paternidade, numa Nazareth onde todos se vigiavam e te via mais preocupado com as tábuas do que atrás de jovenzitas púberes a dar largas a um cio tardio.
Ainda bem que não falaste no “Espírito Santo”, em avatares ou em semideuses como o grego Hércules, filho de Zeus e da mortal Alcmena, para justificar o fenómeno. Por imperativo de consciência, afirmaste-te pai, mas não deves ter resolvido o problema com a veemência das palavras e ficaste fragilizado ao contrariar a lei e os costumes.
6: Deves ter visto o caso tão mal parado que pegaste na miúda e no burro e fugiste à procura do apoio da tua família original em Bethlehem, numa viagem louca de 16Km. Só um enorme perigo justifica teres saído sozinho com uma adolescente grávida de termo, em cima de um burro. Nem uma carroça aparelhaste, nem procuraste ajuda numa das mulheres da família para ajudar no parto - uma das principais causas de morte das mulheres. Deves ter andado de sol a sol, arriscando chegar tarde aos caravançarais, como foi o caso no dia do nascimento da criança, quando só encontraste dormida numas grutas à mercê de tudo o que é bicho.
7: Voltaste quando a maledicência acalmou, para te dedicares a Yeshua e lhe ensinar a tua arte e o “estar”, e foi esse “estar diferente” fundamentado no afecto, que lhe marcou as opções e deu origem a uma nova ordem moral.
8: Mas a coisa não deve ter ficado esquecida. É provável que tivesses levado Yeshua aos 12 anos para Alexandria, a cuna dos grandes pensadores de então, fugindo a um mau ambiente. Depois ... desapareceste.

Se fosses mais novo, não tinhas esta lucidez, mas isso em nada te desmerece, pois aquilo que eu mais vejo é gente muito vigorosa a defender “princípios” enquanto procura o tacho, mas que, quando o atinge, passa a pactuar com as maiores injustiças.
Tu foste a terreiro por alguém fragilizado e puseste em risco o teu bem-estar. Depois, assumiste a educação de uma criança, inculcando-lhe os valores certos, num ambiente cruel e androcêntrico.
Por tudo isto, és o meu herói! Bem hajas!
Quando eu morrer quero andar na tua nuvem!

Fernando

3 comentários:

A Gaja disse...

Aqui está uma carta muito gira. Infelizmente a mim não há grandes santinhos que me valham. Já fui convidada a sair das aulas de Religião Moral pelo padre que era meu professor porque fazia demasiadas perguntas, porque não aceitava tudo assim tão facilmente. A bíblia é um livrinho de histórias com fundo de verdade. Vi num documentário que essa história da Sagrada Família ter fugido para o Egipto não passa de um mito. Já não me recordo bem das razões.
No entanto tenho alguma simpatia por S. José porque ele é a figura paternal que todos deveriam ter.

AQUARIUS disse...

Ora aí está uma carta da qual provavelmente não te irás arrepender ...

Unknown disse...

Nesse tempo ainda existiam valores....agora....acho que essa palavra já não vem nos dicionários.... Ou então, mudou o seu significado....
S José.... Esse sim...para louvar....