sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Carta de amor (à moda antiga) a uma mulher crescida e ... respectiva resposta.


Minha querida R

Nem sei como me atrevo a uma carta destas, mas quiseram os deuses (ou quem por eles nos traça o fado), que nos encontrássemos, perplexos, a fazer contas a uma desinteressante rotina onde pouco se espera do amanhã.
Li solidão nos seus olhos, um frio resignado a um afecto ausente e uma desilusão cravada no seu modo frágil de partir, e senti em si a dor que também me envolve e o insuportável grito de uma decisão que urge. Mas também vi campos, florestas, sol e chuvas, risos e músicas, à espera que uma fresca brisa os faça desabrochar. Depois, na aparente calma dos terrenos áridos de desesperante monotonia, senti o sobressalto do seu coração, também ele ansioso pela fuga desse mesmo lume brando que me devora.
Não se lembra, mas há-de haver um mês, presenteou-me com um meio sorriso, num ajeito de cabelo, e eu, até então desamparado, fiquei seguro de que é no seu reflexo que a minha alma pode encontrar a paz de que tanto necessita. Nesse segundo tudo surgiu claro, como se um espaço imenso se abrisse e nele todos os caminhos nos convidassem, certos de nos ver felizes no meio das mais difíceis provações.
Passei a medir-lhe os gestos. A elegância do seu sentar, do dizer que não, do parecer ignorar o meu olhar insistente, os pormenores dos seus adereços, … eu sei lá. Tudo em si resplandece tanto, que nem quero acreditar na cegueira em que todos estes anos eu vivi. Depois veio a dor crescente da sua ausência e o futurar imperativo do conforto do seu colo, nestas ou noutras terras, sejam elas tórridas Áfricas ou frias Antárctidas, onde o seu suave enlace me possa devolver a confiança perdida.
Minha querida. Espreite o meu coração e nele verá a fidelidade de um berço. Aceite-o e não ouça o diz-que-diz, que a língua é a arma dos despeitados e não é com eles que os futuros se constroem. Deixe os meus dedos tocar a arpa que há em si e despertar os filhos por nascer que correm nas suas veias, porque sei que me saberei capaz de lhe dar o riso e o conforto igual ao que de si espero.
Responda célere, que a dor de não a ter é tanta, que temo a melancolia de tanto balbuciar o seu nome sem resposta.

Ansiosamente seu, … desesperadamente seu, ... eternamente seu!

X

...

Resposta 


Ex.mo Sr X

Recebi a carta que impetuosamente me enviou. Confesso que as suas palavras me deixaram confusa, pois ignorava que no seu peito se albergassem tão intensos sentimentos, principalmente quando, nas nossas relações anteriores, nunca se afloraram tais afectos.
Sempre apreciei o seu conselho como advogado, e particularmente a ajuda nos problemas da herança do meu ex-marido, face à desmesurada ganância da sua família.

O luto que ainda visto, aconselha a que me resguarde, mas creia que a sua missiva me fez esquecer as mágoas destes últimos doze meses, e as muitas angústias que as longas ausências dele por África, em destacamentos sucessivos, me causaram.

Como deve calcular, falei com a minha família.
No próximo sábado, o meu irmão irá contactá-lo, no seu escritório. Espero a sua disponibilidade.

Aceite os seus cumprimentos

R


NOTA: Para descanso de amigos e inimigos, e a pedido de várias famílias, informo que estas cartas são ficcionais. Um mero exercício literário em resposta a um desafio de escrita.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Carta aberta a Deus - Nosso Senhor


Caro Deus - Nosso Senhor:

Há anos que planeio escrever-te para te dizer algumas das “verdades” que me rabeiam na caixa dos pirolitos, mas, como as tuas diferentes personalidades me põem indeciso a qual me dirigir, viro-me para outras prioridades, em vez de me atirar ao texto.
Já te vi pelos olhos fendidos dos asiáticos, pelos espantados dos negros subsaarianos, pelos sanguíneos dos árabes e pelos sibilinos dos judeus, e concluo que o que dizes a uns não joga com as promessas que fizestes aos outros para que todos te seguissem.
Coisas como aquela das 20 virgens para os mártires do Islão não lembram ao diabo, como também o não faz que tivesses escolhido Israel para teu povo e dares-lhes um livro com “toda a Verdade”, a fazer inveja a mais de 99% da população do Mundo.
Mas o que aqui me traz, não são as guerras que patrocinaste, onde até gente da mesma família se mata enquanto grita “Deus é Grande” ou “Allah Akbar”, ou o mesmo noutras formas.

Eu queria é perguntar-te qual o papel que te reservaste na sociedade global em que o mundo se tornou, pois parece que, depois de teres feito todas as coisas animadas e inanimadas, com um especial fascínio pelo Homem, descuraste a manutenção.

Já deves ter reparado nas mudanças das últimas décadas e na tendência para a normalização dos comportamentos e procedimentos em todo o planeta. O que começou com a ocidentalização do vestuário, já envolve a Lei e as tuas determinações celestiais. Lentamente vão-se movendo os cordelinhos dessa nova ordem, fazendo com que os regionalismos tenham uma crescente dificuldade em se mover.
Viste o que aconteceu ao Kadafi e à restante malta do Norte de África, e todos esperam um fim parecido ao Mugabe e ao Kim Jong-un. E não é por eles serem piores do que outros que por aí andam. O seu mal é quererem manter regras próprias num mundo em que todos anseiam por ir a todo o lado em suposta segurança.

No norte da Europa, onde a religião tem perdido fiéis, fala-se menos de “moral” e de “ética” e a tónica é posta na Lei e nos Tribunais, numa lógica muito diferente daquela que ainda prevalece nos países onde o Vaticano se implanta. Falar de uma “moral” que ninguém leva a sério (porque é no incumprimento que frequentemente está o sucesso económico), não faz sentido num mundo onde quem manda é o dinheiro. É como andar de carroça a ver passar os aviões.
Já há tecnologia para despistar a maior parte dos crimes, pelo que é mais útil que as pessoas os não cometam com medo das consequências civis do que de um qualquer poder supra-humano as venham condenar. Nem que seja eternamente. Esse esquema só dá em sociedades sem recursos com uma gritante falta de qualidade na luta contra o crime.
Tens de acordar. Faz-te um Deus moderno com gente que goste de viver e que cumpra regras e os ditames da natureza. Esquece os dramatismos terríficos de um Inferno cheio de supliciados e a paz de um Céu onde nada acontece.

Se fosse a ti, arranjava uma grande Roda da Sorte e garantia que era eu que a fazia parar nos números certos, que dizia aos guarda-redes o lado para que vai o penalty e coisas assim do género, pois essa malta, quando acerta, vira-se sempre para o céu a agradecer, e não há quem não se benza quando a sorte nos aperta.

Fica a ideia. Se resultar, dás-me 1% que eu dou metade para os pobres.

Desejo-te uma Boa tarde e um grande "Até à Eternidade", se ainda andares por aí.

Fica bem!

Fernando

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Contraponto



São dezassete jovens de Viana do Castelo organizados num grupo coral - Contraponto.
Nas horas vagas dedicam-se à música, com qualidade e bom gosto. Um fruto da Academia de Música de Viana do Castelo.
Têm cursos superiores e aos fins-de-semana animam casamentos, baptizados e ... não só.
Têm a esperança e a força dos vinte anos.
São sementes à procura de um terreno fértil.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Carmina Burana


Foi ontem à noite o Concerto comemorativo do 40º Aniversário da Universidade do Minho em Viana do Castelo.

Cerca de duzentos e cinquenta intérpretes, entre o Coro do Departamento de Música da Universidade do Minho, Coros Viana Vocale e Pequenos Cantores de Viana da Academia de Música de Viana do Castelo e a orquestra da Universidade do Minho.
Com Juliàn Lombana direção, Ana Maria Pinto soprano, João Terleira tenor, Job Tomé barítono

Para recordar a música e o evento, aqui fica uma boa interpretação e o Link do libreto com tradução

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Valter Hugo Mãe - A Desumanização


Tricotávamos a lã que sobrava e voltávamos aos livros, a ler tudo outra vez e só reparávamos nas palavras. Queríamos nada saber das histórias. Prestávamos atenção às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspeccionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência. Andávamos como pessoas com luzes acesas dentro. As palavras como lâmpadas na boca. Iluminando tudo no interior da cabeça.
… As palavras deixavam-nos mágicos.


Comecei a lê-lo sem fé. Acabei-o, com a sensação de ter lido um livro de referência, a reler, tantas são as pérolas, a dar razão a este pequeno trecho respigado da página 193.
A não perder!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A chave


Tem 24 anos. É bonita e agradável. Tem um curso Politécnico que lhe devia ter dado uma abertura de espírito superior ao meio onde nasceu. Mas o berço puxa-a e integra-a na cultura onde, de facto, pertence.
Há pouco mais de um ano usa uma chave ao pescoço, depois de um padre lhe ter fechado o corpo, para que não volte a ficar possessa de nenhum espírito. Nessa altura falava com vozes que não eram suas em crises de agressividade.

Num exame radiológico, cumpriu-se a rotina, e o amuleto foi-lhe retirado. A intervenção demora e implica desconforto. Surge ansiedade e a doente descontrola-se. De imediato um familiar que a acompanha (enfermeiro) topa a falta do amuleto, e também ele entra em histeria, procurando a toda a pressa colocar-lho, recriminando quem lho tinha tirado. De seguida saem apressadamente de encontro ao padre, para que ele lhe feche de novo o corpo.
De então para cá, não voltou a ter crises e não toma medicação.

Agora quer terminar o exame que ficou incompleto. Diz que, na hora, põe a chave no tornozelo.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Falar

Não fui bom aluno a Português. Não li o que devia nos anos do Liceu, e os Lusíadas e o Aquilino foram areia demais para a minha Toyota de caixa aberta.
Lembro-me dos caderninhos, com uma coluna para as palavras difíceis e outra para o seu significado e dos dicionários e da Enciclopédia Luso-Brasileira a ocuparem lugar de destaque na casa de meus pais. Nesse tempo, em que o audiovisual era uma miragem e a rádio “só dava fado e radionovelas”, não havia refeição em que os livros não saltassem para a mesa para pôr termo a qualquer discurso mais confuso, pois o que se afirmava não podia conter ambiguidades e tinha de ter suporte.
Falava-se mais de Ciência, mas, mesmo quando a Filosofia ou a História vinham à baila, havia necessidade de comprovar os porquês, e neste contexto, riamos com uma pequena história da família:

Uma comunidade religiosa, tinha por regra nunca mentir. Um dia, quando um dos seus frades passeava no exterior do convento, foi surpreendido por um homem a correr esbaforido que, antes de se esconder no meio de uns arbustos na sua frente, o ameaçou dizendo: “Se me denuncias, dou-te um tiro que te mato!”
Minutos depois surgiram os perseguidores, que lhe perguntam: “Viste passar por aqui um tipo a fugir?”, ao que o frade, de braços cruzados no hábito, respondeu sereno: “Por aqui não passou!”, permitindo assim a fuga ao fugitivo.
O facto foi casualmente observado por um seu “irmão”, que, de imediato, o confrontou, chamando-lhe a atenção para a mentira e para o incumprimento da regra, ao que o frade respondeu, enquanto abria ligeiramente os braços, mostrando que apontava com o indicador direito para dentro da manga esquerda. “Eu só disse, que ele por aqui, não passou. E como tal, não menti!”

“Espertezas” destas não eram aceites. As palavras tinham significados precisos e eu entendia-lhes a utilidade. Mais tarde, comecei a gostar da sonoridade de algumas (terebrátula, ornitorrinco, parcimonioso, baldaquino, parafernália, ...), e brincava com elas às voltas entre a língua e o palato antes de as deixar esgueirar pelos lábios e, quando aprendi inglês, “shrapnel” deu-me um gosto igual ao dos nossos emigrantes franceses a soprar o “Obadidan,… puff!”. Também entendi que há palavras noutras línguas que não são traduzíveis, por não ter havido necessidade delas, como é o caso de "accountability" que implica uma definição de mais de vinte palavras em português - "significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir".

Rodrigues Lobo marcou-me com o seu: Fermoso Tejo meu, Quão diferente te vejo e vi, Me vês agora e viste, …. Passei a gostar de palavras em sequências difíceis e cheguei a pensar que as musas me protegiam, até ao dia em que o fruto de um turbilhão de sentimentos da minha verve, para tentar impressionar uma adolescente de caracóis em cachos caídos pelos ombros, me ter sido devolvido sem resposta. 
Já adulto, Torga deu-me a mão para os livros, mostrando-me a tecedura da forma com o conteúdo, com as palavras certas a induzir os mais diversos sentimentos. Eficiente a separar desejos de factos, irrevogável a não permitir voltar atrás, incompatibilidades a impedir que quem se quer pelos pobres possa viver sumptuosamente ou que um moralista enriqueça em funções políticas.

Actualmente, com o poder a usar as palavras sem a significância dos Dicionários, a falar de "vitórias" onde se vêem roubos, compadrios, humores e contingências, corre-se o risco de que o mesmo mal grasse na sociedade e passemos todos a navegar à vista, naquela perspectiva tola  de que  – “Se é para a desgraça!?, … É para a desgraça!” e caminhemos inexoravelmente para o abismo.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

3ª Carta a Passos Coelho


Caro PC:

É a terceira vez que te escrevo. Na segunda, já eras 1º Ministro, chamei-te a atenção para o que deverias considerar, se querias deixar alguma nota positiva. Ignoraste-me e optaste pelo empobrecimento colectivo e pela demissão do Estado como garante dos direitos fundamentais da população. Só te preocupaste com o dinheiro.

Neste paraíso de caciques, chico-espertos e borra-botas disponíveis a vergar quem quer andar de pé, encontraram-se três corruptos, quando todos esperávamos uma auditoria (com auditores de jeito) às EPEs e aos particulares a quem o Estado paga balúrdios em serviços e parcerias, para avaliar a qualidade dos decisores e os porquês, e descobrir se houve quem estivesse a resolver "não problemas" com "não soluções", a fazer palheiro onde queríamos guardar agulhas.
Tinhas na mente impostos e cortes nos vencimentos de quem vive do trabalho, com especial incidência na classe média dos funcionários públicos. A eito e sem ética, como se não houvesse amanhã, ao ponto de veres na emigração dos nossos licenciados a solução para a baixa do desemprego, desvalorizando “o saber”, num país onde é raro encontrar quem escreva um parágrafo com elegância ou sintetize um problema, mantendo-nos na senda de que qualquer um se ajeita a qualquer função, desde que seja nomeado por um partido.

Como muitos portugueses, vivo do salário, e se tenho alguma folga, uso-a, sem viver acima das  possibilidades. Quem se armou em rico, foram os “políticos do arco da governação” e os Bancos, pelo que esperava que surgissem nomes e penalizações, em vez de me retirarem 50% do salário para pagar as suas asneiras. A actual “narrativa” não me é digerível. Porque se fizeram auto-estradas onde uma estrada resolvia o problema? Porque deixaram os autarcas com rédea solta nos gastos? Quem justificou as “derrapagens financeiras”?

Quem vier depois de ti, vai encontrar o país mais pobre, desorganizado e sem “mística”, pois nem aquela  parola do Portugal que deu mundos ao mundo, mais a do Eusébio e da Amália convencem o mais tacanho.
O que todos esperam é mais aumentos, menos apoios do Estado e menos qualificação da população, a acreditar nos “paineleiros” a soldo, que enxameiam a comunicação social para nos convencer da inevitabilidade de tudo o que acontece, sem pôr a tónica na qualidade dos partidos e de quem eles põem nos órgãos do Estado.

A carta vai longa. Tu deves ter mais que fazer e eu não quero que chegues tarde por causa destas linhas. Vai à tua vida, que eu vou aquecer o grão-de-bico, que daqui a pouco chega a mulher do trabalho e eu sem nada preparado. Se vires a Assunção Esteves, diz-lhe que as tiradas à aldeã do seu berço transmontano me confundem, e diz à Cristas que eu vou com ela na agricultura.
Dá um abraço ao teu pai, e pede-lhe o poema que ele fez ao descanso no tratamento da tuberculose, que eu publico-o neste blog.

Até um dia.
Fernando