terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Emblemas de lapela



Aquela dor que, por uns dois meses me baralhou, foi amor! Que mais podia ter sido? Não dizem que ele não escolhe idades? Porque é que comigo havia de ser diferente!? Eu estava a-pai-xo-na-do! Ponto final! Senão qual seria a justificação para lhe ter dado a minha colecção de emblemas de lapela, que me custara horas e horas de trocas e pedidos?

Eram da Siera, da Grundig, da Blaupunkt e de outras fábricas de electrodomésticos, do Benfica, do Sporting, do Belenenses, de marcas de automóveis, dos bombeiros e até dois com asas de aviador. Um a um voaram para as mãos daquele anjo de caracóis louros, aos cachos.
Inocente, defraudou-me o património e, ao me não dar espaço no meio das suas bonecas, fez-me velho antes do tempo. Quase deixei o futebol de rua e, só ao fim da tarde me juntava ao bando, para as actividades radicais da época.

Ali esquecia-a, pois os riscos exigiam plena atenção para que não acontecesse a tão falada “morte do artista”. Eram horas do stress ao pôr-do-sol, quando o calor ressoava do chão e o grupo do bairro se juntava para a asneira. Podia ser um cigarro, uma fanfarronice, uma prova daquelas que não lembram ao tinhoso. O que contava era a superação.

-Vamos todos?
- Não! Hoje vão só três!, dizia o Cachopo Piqueno, exímio em fazer cara de macaco e em jogar à bola com os dois pés. E o grupo desfazia-se e ficava a observar.
- Estás a ver ali aquele par de namorados a entrar pela seara adentro? Vão vocês que são mais baixos. Quando as cabeças desaparecerem no meio do trigo, esperam um bocadinho, aproximam-se de-va-ga-ri-nho e, quando os tiverem ao alcance, atiram-lhes uns torrões e fogem. Eles não vão conseguir vir atrás de vós. Mas não deixem ver a cara, senão …!

Era a tal morte do artista de que todos tínhamos medo.

Mas também havia que saltar muros para comer o que as árvores tivessem, fosse limão ou maçã verde ou atirar umas fisgadas aos cães vadios para nos rirmos. Havia que encher o tempo, que ainda não se tinham inventado as ATLs.
Depois era ficar calado para não ser descoberto e evitar alguns lugares.

- Vai cortar o cabelo Fernando! Pareces um cigano!, dizia a minha mãe e, eu a lembrar-me que um dos que levara com os torrões era barbeiro no Cabanitas e, enquanto imaginava as tesouras e a navalha junto ao pescoço, planeava. Primeiro, passo na rua, depois, à porta, pergunto qualquer coisa a ver se ele dá sinal que me obrigue às de Vila Diogo.
Uma semana para parecer lavado!

Quando se acabaram os emblemas e sem ter mais com que a seduzir, larguei as nuvens e voltei ao dia a dia de pontapés nas pedras. Ficou-me o seu nome completo MMLML e a memória profunda dos seus caracóis.
Se a voltasse a ver, não a reconheceria.

A história podia ficar por aqui, mas o mundo dá mais voltas que as pernas de um infeliz com o síndrome delas inquietas e, quarenta anos depois, o seu espírito voltou a pairar sobre a minha cabeça para provocar duas lágrimas geladas.

Estava eu num jantar com médicos portugueses que participavam na “St. Gallen International Breast Cancer Conference”, quando a conversa se fixou nas mudanças frequentes de residência e nas suas implicações. Falou-se do afastamento dos amigos, das dificuldades em reconstruir uma rede de proximidade e de amizade capaz de um socorro numa aflição. E blá, blá, blá … que agora cada família vive acantonada no seu espaço e blá, blá, … quando eu, pecador, me confesso:

- Eu, já vivi em Beja, no Porto, em Vila Real, em Vila Pouca de Aguiar, em Matosinhos até parar em Viana do Castelo.
À minha frente, uma ginecologista, da minha criação, pergunta:
- Tu viveste em Beja? Quando?
Acertámos datas, escolas e zonas da cidade, até chegarmos aos amigos comuns.
- Tu conhecias os C.M.?
- Sim! Sou prima deles!
- Mas eu ia a casa deles e nunca te vi!
- Como estava interna no colégio, só lá ia aos fins-de-semana e nas férias mas, mesmo nessas alturas, a minha tia, que era uma mulher de Igreja, quando sentia rapazes por perto, não nos deixava aparecer. Chamava-os de galfarros!
- Cruz, Credo! Maria Santíssima! Eu não era flor que se cheirasse, mas para esse patamar faltava-me muito. Eu saí de lá aos treze anos. Que é feito deles? Ainda andam por Beja?

Tinham saído para Lisboa, pouco tempo depois de eu ter ido para o Porto. Tinham cursos superiores e  sucesso profissional. O Chico numa área de Saúde e o Zé em Direito. Muitos outros os tinham acompanhado.
- Lembras-te do John? E da Margarida?
- A MMLML?, pergunto curioso.
- Sim! Ela casou com o Chico. Tiveram 3 filhos. Eram um casal modelo. Depois ela deu em beber e começou a desgraça. Muitos remédios e tratamentos psiquiátricos até que, há-de haver uma meia dúzia de anos, se suicidou!
- Livra!!!! Ela ainda era bonita como quando era pequena?
- Não! Da última vez que a vi, estava balofa e pastosa. A morte foi um alívio para todos!

Calei-me e ali fiquei, a remoer uma pequena dor e a pensar no Destino, no Fado, na Sorte e no Azar e que a pior coisa que nos pode acontecer é sermos vítimas dos nossos desejos.

1 comentário:

AQUARIUS disse...

Esta é a tua praia ... literária, claro!
Parabéns