O céu estava encoberto, a tarde já ia longa e Zeus dava sinais de querer iniciar, de imediato, a procura de Sísifo, na expectativa de que o médico o acompanhasse.
Hipólito falara sem pensar. A sugestão de procurar Sísifo no antigo convento, tornava-o cúmplice daquele suplício eterno, fora da sua lista de valores. Antes a morte, a castigos deste teor. Teria de adiar a sua procura. Talvez assim conseguisse uma outra solução. Aproximou-se do deus, olhou para o relógio e explicitou-se:
- Zeus! São quase cinco da tarde! Para ir consigo, tinha de ir a casa mudar de roupa e, com isso, a noite cai. E, para atrasar mais uma eventual saída, alongou-se: - Aquilo, embora próximo da cidade, é uma mata de eucaliptos, descurada pelos Serviços Florestais. Podia ser explorada para fins turísticos mas, tirando a zona do parque de Santa Luzia, anexo ao zimbório, é um emaranhado de galhos e folhas. Se um dia o fogo lhe pega, chega à cidade num instante.
Zeus aceitou a conversa.
- Ok! Fica para amanhã! Vocês vivem tempos esquisitos. Não há quem plante para os filhos, quanto mais para os netos! Os eucaliptos e os pinheiros são as vossas árvores rainhas e as de crescimento lento são abatidas antes de atingirem a maturidade. Esquecem-se que para ter uma árvore com cinco séculos é necessário esperar quinhentos anos!, gracejou.
Hipólito aproveitou a boa onda e atreveu-se:
- Se me permite voltar ao assunto do Sísifo, porque é que aquela punição é assim tão importante para vós? Não vos chegam milhares de anos de suplício?
Zeus olhou-o, como a medir a sua capacidade para entender, convidou-o a sentar-se numa pedra em L que estava num canto da sala e fez aparecer uma mesa com um bule e duas chávenas.
- Como já deve ter percebido, as religiões necessitam de pequenas histórias para centrar os seus valores, pois é assim que eles se tornam fáceis de memorizar. Sísifo rebelou-se e tentou repetidamente enganar-me. Como queríamos que o conceito da obediência fosse basilar, decidimos puni-lo eternamente. Não era possível uma pena menor.
Escolhemos-lhe aquela tarefa e fizemos com que a cumprisse. O normal seria ele tê-la abandonado, desesperado, ao fim de uma dúzia de tentativas. Aquela opção teve o propósito de marcar bem o absurdo de um fulano que se rebela e quer pensar por sua cabeça, ficar preso a um trabalho repetitivo e sem qualquer utilidade. Mas repare que as lides numa linha de produção têm um cariz muito semelhante.
- Percebi. Eu nunca fui a favor da especialização excessiva. Por isso fui para Medicina Interna. Mas, mesmo nesta especialidade, tenho colegas que derivaram para uma só doença, como se quisessem repisar diariamente os mesmos passos. Agora até são doutores e querem que lhes chamem professores, ... sem terem alunos!
- Nem me fale dessa gente! Sorriu Zeus, e bebericou a infusão de camomila. - Não há coisa pior na humanidade, que aquela ideia maluca de tentar ser quem se não é. De castigo, eu tenho-lhes dado uma significativa dose de angústia, directamente proporcional à sua disfunção!
Hipólito levantou a chávena, para dar sinal da sua concordância e voltou ao tema da punição de Sísifo, alegando que durante todo esse tempo, por certo, ele se transformara num homem diferente. Com a testosterona em níveis menores, se lhe oferecessem uma solução razoável, talvez ele lhes aceitasse a autoridade e se submetesse. - Com mil demónios, todo o homem tem um preço!
- Não tenha certezas dessas!, respondeu-lhe Zeus. - Olhe que, no outro dia, perguntei a um ex-presidiário, que cumprira uma pena por homicídio, se estava arrependido. Respondeu que sim! Que estava arrependido de só ter morto um, pois a pena era igual à de ter morto os dois com quem tinha conflituado! A cabeça dessa gente é muito complicada. Os primeiros anos de vida e a família onde se nasce, deixam marcas difíceis de apagar. É por isso que o Sísifo vai ter de voltar ao Tártaro, pelo menos até termos programas de reabilitação bem estruturados e monitorizados. Amanhã conto consigo depois do almoço.
- Ok!, concordou Hipólito, a congeminar um caminho diferente para o futuro daquele atormentado rei de Corinto. - Posso vir acompanhado de um psicólogo, para negociar com o homem? Eles agora estão na moda na gestão deste tipo de conflitos, e lá no hospital há muitos!
- É melhor não! Dr. ! Só ia criar confusão. Quando o acharmos, você fala com ele. Eu prometo que só lhe atiro com o raio em última instância.
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