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Jornal Médico de 27-09-2013
SNS à mercê de uma oligarquia financeira sem rosto que controla o Governo e a Lei
"Tenho de vos dizer, sem rodeios nem eufemismos: há em Portugal certa gente que, servindo certos interesses, quer destruir o Estado Social e fazer da Saúde um negócio, parasitando e degradando o SNS até o reduzir a um serviço de tipo assistencial para os mais pobres". A acusação é de António Arnaut e foi feita hoje em Lisboa, na sessão de abertura do 1º Congresso do Serviço Nacional de Saúde "SNS - Património de Todos", que contou, entre outras figuras-chave do sector, com a presença do Secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira.
Ressalvando nada o mover contra o sector privado, que "deve desempenhar um papel importante na prestação de cuidados", Arnaut alerta para o que considera ser "o engodo da livre escolha" que está a ser utilizado para "obter um novo financiamento do Estado para salvar certas unidades em situação deficitária, que não têm procura para a capacidade instalada". Apoiando-se em números divulgados pelo nosso jornal, o antigo ministro dos assuntos sociais do segundo governo constitucional, avançou com dados concretos que no seu entender sustentam a acusação: "O sector privado já é hoje financiado em 30% pelo SNS, através do SIGIC, das convenções e dos subsistemas de saúde. Acresce que a ADSE lhe pagou, em 2011, conforme reconheceu a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, 492milhões de euros".
Segundo Arnaut, os ataques contra o SNS não são de hoje: surgiram logo que foi anunciada a sua criação"... Sem no entanto terem surtido efeito, dados os bons resultados alcançados, "à dedicação dos profissionais, ao apoio dos portugueses, das forças progressistas, e até da direita que preza a doutrina social da Igreja. Apoios que fizeram do SNS "o melhor serviço público português" que permitiu ao nosso país um "lugar cimeiro na efectivação e na qualidade dos cuidados de saúde, com uma despesa per capita das mais baixas da Europa".
A investida neoliberal
Se ao longo dos seus já 34 anos de existência o SNS sempre resistiu aos ataques de que foi sendo alvo, hoje enfrenta a investida de um inimigo com poderes reforçados, aponta o co-fundador do Partido Socialista: "a direita dos interesses, aproveitando os ventos neoliberais que sopram da Europa". Um inimigo que segundo o advogado "não desistiu do seu projecto de destruição do Estado Social de que o SNS é a trave-mestra", apontou, para logo acrescentar: "os privilegiados e o grande capital pensam que o mundo é a sua coutada e os trabalhadores e os pobres o seu rebanho.
Luta de classes... Pelo Estado Social
Para Arnaut, a luta de classes continua a existir, sendo o objecto que divide os beligerantes, a vontade da maioria de construir um Estado Social de Direito. Para Arnaut, o Estado Social "é a democracia vivida na sua tripla dimensão política, económica e social, que faz do indivíduo uma pessoa, da pessoa um cidadão livre e do cidadão um elo activo da mesma comunidade fraterna.
Para o antigo responsável da pasta da saúde do segundo governo de Mário Soares, "a luta de classes continua a existir, já não entre senhores e servos, aristocratas e plebeus, patrões e operários, mas entre as duas classes a que o capitalismo selvagem reduziu a nossa sociedade: os magnatas da alta finança e seus serventuários, e a generalidade dos cidadãos que vive do seu trabalho ou da sua reforma". Segundo Arnaut, o que existe hoje é um "interclassismo nivelador, com a progressiva extinção da classe média, a precarização do trabalho, a redução das prestações sociais e o empobrecimento geral, face a uma oligarquia financeira sem rosto nem rasto, que criou paraísos fiscais e outros caminhos de fraude". Uma criação só possível, afirma o advogado, através do controlo dos governos e da produção legislativa. "Há, como sabemos, um sistema de vasos comunicantes, entre os governos e os grandes empórios que, além de lesiva para o bem-comum, se tornou obscena e mesmo insultuosa, porque parece, às vezes, que são todos da mesma família", acusa.
Na pirâmide de culpados pela investida contra o Estado Social e assim contra o SNS, António Arnaut encontra, no vértice, a União Europeia, à qual acusa de ser a cúpula do neoliberalismo desbragado "reduzindo os cidadãos a meros consumidores, mercantilizando a vida e capturando a soberania dos estados com as suas directivas encomendadas pelos grandes grupos económico-financeiros".
Sem papas na língua, o antigo governante acusa: "Portugal está a ser vendida a retalho às multinacionais e a gente sem escrúpulos, por vezes mesmo, aos especuladores que causaram a crise e agora se locupelam com o património dos países em dificuldade, sem compaixão nem vergonha". Para Arnaut, "são estes especuladores que querem destruir a escola pública, a segurança social e o próprio SNS, privatizando os direitos sociais."
Taxas moderadoras... Imorais
Referindo-se às taxas moderadoras, António Arnaut considera que estas alcançaram um valor que dificulta e impede o acesso universal dos cidadãos aos cuidados de saúde. E depois, aponta, a sua aplicação conduz a violações grosseiras dos princípios humanistas que orientam o SNS. Em Lisboa, Arnaut apresentou dois exemplos dos efeitos negativos do valor excessivo das taxas moderadoras: "Uma urgência num hospital central paga 20 euros de taxa, podendo alcançar os 50 no caso de exames auxiliares de diagnóstico. Sei de hospitais privados que fixaram em 40 euros o preço de uma urgência, incluindo uma radiografia ou equivalente. Este facto, conjugado com a subida generalizada de todas as taxas moderadoras e a criação de novas taxas, provocou uma significativa redução da procura das unidades do SNS e fez aumentar a procura do sector privado em números preocupantes".
O segundo exemplo apresentado pelo fundador do SNA é, segundo o mesmo, ainda mais chocante: "diz-me pessoalmente respeito, mas é claro que não a refiro por mim, mas por causa daqueles que não têm voz e me pedem que denuncie esta grave injustiça. Até à publicação do DL 113/2011, os doentes oncológicos beneficiavam de isenção geral de taxas moderadoras, mas agora só estão isentos nos tratamentos de quimio e radioterapia. Quando fazem outros tratamentos ou vão a consultas específicas da própria doença pagam a respectiva taxa, salvo se estiverem isentos por carência económica ou solicitarem ao centro de saúde uma junta médica que lhes atribua uma incapacidade igual ou superior a 60%".
Para Arnaut, para além de chocante, esta situação "revela uma incompreensível desumanidade e rompe com o conceito de taxa moderadora".
A desumanização alastra...
Na Aula Magna, em Lisboa, António Arnaut apontou também exemplos do que diz ser a desumanização que vai alastrando, como doença crónica, no SNS. "há hospitais onde os doentes se amontoam nos corredores, outros que não administram certos medicamentos e há terapias para o cancro recusadas no SNS que são pagas na ADSE em hospitais privados.
O défice não é culpa do Estado Social
Citando a obra "Quem paga o Estado Social em Portugal", coordenada pela historiadora Raquel Varela (Bertrand, 2012), António Arnaut afirma: "os défices dos Estado não podem ser imputados aos gastos sociais e na maioria dos anos há mesmo um excedente, porque os trabalhadores entregam mais ao Estado do que recebem dele". Para o antigo ministro, os défices devem ser procurados "na corrupção, no desperdício, nos negócios ruinosos como as PPP e os SWAPS, nas isenções fiscais privilegiadas, como os fundos de investimento imobiliário, na fuga à tributação para paraísos fiscais e até para a Holanda e Luxemburgo, países membros da União Europeia, de cerca de 30 mil milhões de euros por ano".
Estimular os profissionais
Estando convencido de que a sustentabilidade do SNS é, não um problema financeiro, mas, isso sim, político, António Arnaut deixou em Lisboa alguns conselhos: "Se a carreira dos profissionais de saúde for garantida, mediante boas condições de trabalho, estabilidade, formação permanente remuneração condigna, talvez se consiga, sem aumento de despesa, trazer gradualmente para o regime de exclusividade a maior parte dos trabalhadores do SNS, melhorando a qualidade e a produtividade, sobretudo se forem concedidos, além dos justos incentivos materiais, o reconhecimento moral pela relevante função que desempenham". E que forma poderia assumir esse reconhecimento? Arnaut deixa uma ideia: um profissional que se tenha dedicado 20 ou 30 anos ao SNS, com assiduidade, competência e devoção, devia ver publicamente reconhecido o seu mérito e a gratidão do Estado. Um diploma de honra poderia constituir uma forte motivação moral".