Comecei a ser pastor com a idade de seis anos. Logo pela manhã subia serra fora, com meia dúzia de ovelhas, para só voltar à hora das galinhas irem para o poleiro. À chegada ia à fonte buscar um cântaro de água, acendia o lume com o feixinho de lenha que trazia, e punha um pote a aquecer, para andiantar o caldo, enquanto esperava pelos meus pais.
Comia um naco de pão de milho e, de vez em quando, uma sardinha ou um pouco de bacalhau, na companhia da “farrusca" e da "pega”, que sempre se aproximavam na esperança de uma côdea. Bebia na fonte das Chedas. Num dia de Abril apareceu uma cotovia para me animar as tardes, cantando, enquanto subia aos céus. Sentia-se bem comigo, poisava nas ovelhas, comia as migalhas do meu saco, e até me levou ao ninho onde tinha quatro pequeninos. Depois, satisfeita, cantou para mim o seu labri-labri. Ainda hoje, quando por lá passo, sei o monte de tojo onde os criou.
Pegureirinhos (pastorinhos) do monte
Dai-me da vossa merenda
A minha ficou em casa
Se a comi não me lembra
Em Janeiro, os pegureiros tinham o dia das merendas. Era uma festa que juntava todos os pastores, numa fraga com piocas naturais, já usadas pelos antigos e que ainda hoje se chama “Penedo das Merendas”, situada no cotinho dos Terreiros. Iam rapazes e raparigas e todos levavam uns rijõezinhos de porco para comer. Na pioca maior fazia-se o borralho para assar a carne e noutra faziam-se os formigos (água quente, grão de milho esfarelado, que se mexia com um garfo feito de fetos). Comia-se o petisco, e depois, mesmo sem música, tudo cantava o "Vira" e dançava ao toque do calcanhar.
Adeus dia das merendas
Dos pegureiros do monte
Comer formigos na fraga
E beber água da fonte.
Havia em S. Jorge, Oliveira e Barral, quem vendia uns bons cabaços (1 cabaço = 12 litros) de vinho para alimentar as gentes até aos lugares vizinhos de Adrão, Tibo, Paradela, Roucas, Gavieira e talvez Baleiral.
Eu então andava na Escola em Ermelo, a uns três quilómetros de casa. Pelo caminho cruzavamo-nos com os almocreves que o transportavam em burros e mulas, que trepavam por ranhadoiro fora, enervados com a carga e desejosos de chegar, para se aliviarem do peso e comerem as sopas de vinho que o dono lhes dava. A canalha de Vilarinho das Quartas, que passava o dia na escola, aguardava-os, pois quando lhes pedíamos, eles paravam, abriam um odre, e pegavam-nos ao colo para que pudéssemos beber.
Em Abril e Maio, quando o cuco e o gaio cantam, era o tempo das sementeiras. Começavam as carrejadas do esterco para os terrenos, para que estivessem prontos para semear o milho, na hora de virar a terra. E enquanto levávamos o cesto à cabeça, cantávamos:
Ó meu S. João Baptista
Ó meu belo marinheiro
Leva-me no teu barquinho
Lá para o Rio de Janeiro.
No fim da carregada, lá vinha a Ti Maria com bacalhau assado na brasa e um naco de pão de milho, para nos dar força à alma.
Depois era o tempo da sacha e da monda, e novos cantares ecoavam na aldeia.
Sachadeiras do meu milho
Sachai o meu milho bem
Não olheis para o portelo
Que a merenda já lá vem
Vivíamos satisfeitos e em paz. Passávamos uns pelos outros e cumprimentávamo-nos: “Olá rapaz, para onde vais? Não andes ao calor!" -"O Tio Zé hoje não vem?" -"Saiu de manhã à procura de um bezerro que nos falta, e não sei a que horas chega!”. “Ó ti Maria, quando é que há mais um serão?” -“Agora só quando rapar as ovelhas, para fazer um fiadeiro!”
Acarinhavam-se os animais e voltava-se para casa com um feixe de lenha para fazer na fogueira o caldo do dia seguinte, com um bom naco de toucinho, farinha de milho e um pouco de leite.
Laranjeiras do pé de ouro
Que dais laranjas de prata
Amar amores não me custa
O deixá-los é que me mata!
Em Julho começavam as preparações dos terrenos para aceitarem a rega dos milhos que se prolongava até ao fim de Agosto, quando ele começava a pintar, com amarelo no folhelho. Então cortava duas dúzias de pés e levava-as ao moinho para fazer pão de milho novo, que era uma das delícias da minha mãe.
Depois vinham as vindimas e o cheiro a vinho mosto. “Ó Teresa! Já tiraste as uvas todas?”, - “Porque perguntas?”, -“É que eu quero que vás comigo vindimar para o mês de Setembro!”
E depois de muita festa e muita música, vinha Setembro com o cheiro a rosmaninho a avisar que o S. Martinho estava à porta, para a prova dos vinhos. Ó videira, ó videirinha! E ó ai ó larilolela!
No Inverno, antes dos Serões, havia matança do porco. Era uma festa para todos, quando se repartia com quem não tinha.
No dia seguinte, de manhã cedo, levávamos um pratinho de sarrabulho aos vizinhos. Era feito de bicas de farinha de milho com mistura de centeio amassada num alguidar e cozidas no pote de cabaço, que depois se cortavam às rodelas para dentro de uma sopeira de barro, e se cobria de rojões, de acordo com a família a presentear.
Não saíamos da sua porta sem que aceitassem. Quando tal, aparecia a Ti Maria: “Meu filho, este ano não mato o porco. Leva o sarrabulho!”, e eu respondia: “Não senhora! O sarrabulho é para você!”, e ela aceitava o meu pratinho, ia despejar o convite, e na volta trazia-o cheio de batatas. Que agradável era este modo de partilhar.
Depois vinham os Serões para malhar as espigas, fiar a lã das ovelhas e cantar.
Em geral eram ao sábado, e vinha gente dos lugares vizinhos. Depois de debulhar as espigas com o malho e de escaroçar o resto do milho, aparecia a Ti Maria a cantar “Ó moças cantai, cantai, que o que passou, já lá vai!”, e todos dançavam ao som do fanga-fanga do harmónio do Ti Zé do Almónico, do “bira-que-bira” das moças e da voz do mandador “Bate certo! Seguidinho! Duas voltas! Ao meio! Palminhas para acertar!”.
E as raparigas em coro cantavam ao Ti Zé:
O Tocador do Almónico,
É bonito e toca bem!
Ó moças olhai para ele,
Olha a graça que ele tem!
Já madrugada, ainda a Ti Maria nos dizia: “Não vades embora já! Que bem cantades! Aguentai até de manhã!” Então, as moças faziam uma fogueira com lenha de urzeira, e assavam chouriças de fumeiro, para o pequeno-almoço. E quando já nos preparávamos para partir, lá vinha ela outra vez, com umas tigelas de café com mel e pão de milho cozido, dizendo: “Não vades antes do café!”, e, na hora da despedida, metia-nos no bolso do casaco, um pedaço de toucinho para o caminho, que fazíamos a olhar para traz, acenando-lhe de vez em quando com o lenço.
Hoje tudo isto acabou. Que saudade eu tenho da água de unto da Ti Maria, do fanga-fanga do Ti Zé do Almónico e daquele viver “tradicional”!
Texto fundamentado, num manuscrito com as memórias do Sr. António Carvalho (1931- … )
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