segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Os políticos bailarinos
























Num tempo em que o conflito político se agudiza, vem-me à memória este excerto do livro "A Lentidão" de Milan Kundera

Todos os homens políticos de hoje, segundo Pontevin, são um tanto bailarinos, e todos os bailarinos se metem na política, o que apesar de tudo, não deveria fazer-nos confundir uns com os outros. O bailarino distingue-se do homem político corrente pelo facto de não desejar o poder mas a glória; não deseja impor ao mundo esta ou aquela organização social (borrifa-se para isso), mas sim ocupar o palco fazendo refulgir o seu "eu".
Para ocupar o palco, é preciso correr de lá com os outros. O que supõe uma técnica especial de combate. O combate travado pelo bailarino é aquilo a que Pontevin chama judo moral; o bailarino lança a luva em desafio ao mundo inteiro: quem é capaz de se mostrar mais moral (mais corajoso, mais honesto, mais sincero, mais disposto ao sacrifício, mais verídico) do que ele? E maneja todos os recursos que lhe permitam colocar o outro numa situação moralmente inferior.
Se um bailarino tiver a possibilidade de entrar no jogo político, recusará ostensivamente as negociações secretas (que são desde sempre o terreno de jogo da verdadeira política) denunciando-as como mentirosas, desonestas, hipócritas, sujas; adiantará as suas propostas publicamente, de cima de um estrado, cantando, dançando, e chamará os outros citando-os pelos nome a seguirem-no na sua acção; insisto: não discretamente (a fim de dar ao outro tempo para reflectir, para discutir contrapropostas), mas publicamente, e se possível, de surpresa: “Está disposto agora mesmo (como eu) a renunciar ao seu salário de mês de Março em benefício das crianças da Somália?” surpreendidas, as outras pessoas terão apenas duas possibilidades: ou recusar e desacreditarem-se assim enquanto inimigas das crianças, ou dizem um “sim” terrivelmente embaraçado que a câmara mostrará maliciosamente como mostrou as hesitações do pobre Berck no fim do almoço com os doentes com SIDA. Porque se cala o senhor, doutor H, quando os direitos do homem são desprezados no seu país?” Esta pergunta foi feita ao doutor H. no momento em que ele, estando a operar um doente, não podia responder; mas depois de ter cosido o ventre cortado, sentiu-se presa de uma tamanha vergonha pelo seu silêncio que debitou tudo o que tinham querido ouvir da sua boca e mais ainda; ao que o bailarino que lhe dirigira a sua arenga (e é outro golpe de judo moral, especialmente terrível) tornou: “Vá lá. Mais vale tarde …”
Podem ocorrer situações (nos regimes ditatoriais, por exemplo) em que tomar posição publicamente seja perigoso; para o bailarino é-o, contudo, um pouco menos que para os outros, porque, depois de ter passeado à luz dos projectores, visível em todo o lado, ele fica protegido pela atenção do mundo; mas tem admiradores anónimos que, obedecendo ao seu apelo tão esplêndido como irreflectido, participam em reuniões proibidas, fazem manifestações de rua; estes últimos serão tratados sem contemplações e o bailarino jamais cederá à tentação sentimental de se recriminar por ter causado a sua desgraça, ciente de que uma nobre causa pesa mais do que a vida deste ou daqueloutro.
Vincent objecta a Pontevin: “É bem conhecida a tua execração por Berck e nós acompanhamos-te nela. No entanto, apesar de ser uma besta, ele apoiou causas que nós também consideramos justas, ou, se quiseres, apoiou-as a vaidade dele. E eu pergunto-te: se quiseres intervir num conflito público, chamar a atenção para uma abominação, ajudar um perseguido, como poderás, na nossa época, deixar de ser ou de parecer um bailarino?”
Ao que o misterioso Pontevin responde: “Enganas-te se pensas que eu queria atacar os bailarinos. Defendo-os. Quem sente aversão pelos bailarinos e quer denegri-los esbarra sempre num obstáculo intransponível: a honestidade deles; porque expondo-se constantemente ao público, o bailarino condena-se a ser irrepreensível; não concluiu como Fausto um pacto com o diabo, concluiu-o com o Anjo: quer fazer da sua vida uma obra de arte e é nesse trabalho que o Anjo o ajuda; porque não te esqueças, a dança é uma arte! É nessa obsessão de ver na sua própria vida a matéria de uma obra de arte que se encontra a verdadeira essência do bailarino; ele não prega a moral, dança-a! Quer comover e deslumbrar o mundo com a beleza da sua vida! Está apaixonado pela sua própria vida como um escultor pode estar apaixonado pela estátua que está a moldar.”

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