sexta-feira, 29 de abril de 2016

Demência



-Vai-me desculpar, mas a dona Conceição não tem doença que justifique internamento hospitalar. A sua demência está razoavelmente controlada e as análises estão bem. Vai ter de a levar assim!

-Dr.! Eu não tenho vida para cuidar dela. Até há duas semanas, antes de adoecer com a celulite da perna, ainda ajudava, mas depois de ter vindo do hospital, não colabora em nada. A Segurança Social tem que lhe arranjar um Lar, que a reforma dela é muito baixa.

-Mas a senhora não é da família?

- Não Dr.! Eu sou casada com um sobrinho dela. O meu marido, há uns meses, arranjou-lhe um quarto num anexo de nossa casa. Ia de dia para o Centro e à noite ficava sozinha. Mas assim, como agora está, eu não a posso ter connosco. Ela tinha uma casa, mas doou-a ao padre na esperança de que ele a ajudasse na velhice, mas o padre morreu, e quem herdou foi uma filha dele, que não mora na freguesia. Agora não tem nada. Nós ajudamos, mas não podemos pagar o que os Lares pedem e ela nem 300 € tem de reforma!

- Ahhh!

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Democracia


Democracia não é um sistema. É uma cultura. Baseia-se em hábitos, atitudes, partilhas de poder há muito estabelecidas, crença arreigada na lei e na ausência de corrupção sistemática e de cinismo.
Pode importar-se um sistema, instalá-lo e fazê-lo funcionar. Não se pode importar uma cultura.

Andrew Marr in "História do Mundo"

quarta-feira, 20 de abril de 2016

São João Crisóstomo



João Crisóstomo - o Boca de Ouro (347-407, n. Antioquia).
Foi arcebispo de Constantinopla e um dos mais importantes patronos do cristianismo primitivo.
É conhecido pela sua oratória na denúncia dos abusos cometidos por líderes políticos e eclesiásticos de sua época.
As igrejas ortodoxas e católicas orientais veneram-no como santo. A Igreja Católica classifica-o Doutor da Igreja.

Como não era politicamente correcto, acabou os dias exilado, num fim do mundo da Anatólia.

sábado, 16 de abril de 2016

Os mindinhos



- Agora, tem 84 anos e conta aquilo do mesmo modo como conta as suas histórias de caça, deixando-nos a pensar que exagera, mas o certo é que ele não tem os quintos dedos dos pés.
Foi guarda florestal. Segundo ele, antigamente, só podia comprar sapatos de dois em dois anos e, como gastava os sapatos mais cedo que toda a gente, por causa dos dedos mindinhos os deformarem e até romperem, foi ao médico para que lhos amputasse. Como este se negou, foi ao veterinário que, de imediato, lhes deu destino.
- E nunca mais se preocupou com os pés, nem com o calçado?
- Pelo menos é o que diz!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Fim de vida


Esgotadas todas as possibilidades de recuperação, após múltiplos tratamentos que se mostraram progressivamente menos eficazes, decidira-se nessa manhã suspender antibióticos e iniciar cuidados de conforto.

O filho chegara na hora da visita, quando o doente, inconsciente, agonizava na enfermaria.
Chamei a enfermeira, para lhe comunicarmos, a decisão e o seu provável falecimento nas próximas horas.
Manteve-se calado, ora fixando o chão ora a televisão que, ao fundo, passava resumos de futebol.
Por fim, após longos minutos de silêncio, levantou a cabeça e disse com voz solene:
- Pois Dr.! O que eu tenho pena, é que o meu pai nunca vá ver o Sporting campeão!
- Pois! …



... e por ali ficámos!

sábado, 9 de abril de 2016

Barata amarela


Nessa altura, eu ria-me de tudo o que fugisse ao habitual, principalmente quando as situações o não aconselhavam, fosse inovação, disfunção, facto insólito ou acidente.
É assim a vida dos jovens quando o desconhecido lhe é apresentado de chofre e não têm "matriz" onde o possa integrar. É fácil surpreendê-los até que a vida os faça contar com os factos pouco comuns e passarem a considerar que são raros os impossíveis.
O nosso passado está recheado dessas surpresas que, se acontecessem agora, nos mereceriam um olhar diferente ou, até, nenhuma atenção, do mesmo modo que ao relermos um livro há muito tempo parado numa estante, nos surpreendemos com entrelinhas a que não tínhamos dado a devida importância.
Vem esta conversa a propósito de um caso da minha última Urgência, onde um homem se debateu duas horas com um tique que repetidamente lhe provocou contrações dos músculos da parede abdominal, num quadro clínico que tem o nome pomposo de Síndrome de Gilles de la Tourette.
Aquela crise deixou-o em exaustão e só regrediu à força de muita medicação.
Nunca tinha visto igual, mas não me passou pela cabeça rir daquele pai de família a braços com um problema que o desacredita e impede de ter uma vida pessoal e profissional normal.
Mais tarde, lembrei-me do "Barata Amarela", que, embora vivesse nas minhas imediações, raramente aparecia, talvez por se obrigar a uma vida distante dos olhares de quem se ri do insólito.
Os seus tiques eram comentados sem comiseração e, quando algum de nós o identificava, imediatamente se focava nele, pois sabia que era uma questão de tempo para uma cena hilariante.
Um tique pode ser discreto ou um gesto abrupto e largo imediatamente perceptível.
O "Barata Amarela" movia repentinamente a metade direita do corpo. O braço e a perna fugiam-lhe, ao que se lhe seguia um movimento em saca-rolhas da cabeça, em direcção ao céu. Coisa de três segundos, mas o suficiente para o fazer notar onde estivesse. Incapaz de assumir o tique, tentava disfarçá-lo, integrando-o num outro mais complexo, como se, de repente, iniciasse uma nova actividade.
Ganhara a alcunha num desses episódios quando, numa paragem do eléctrico, se atirou para cima da senhora do lado, e se justificou apontando para o local para onde lhe tinha fugido o sapato, gaguejando: "Uma barata amarela!"
E era isso que esperávamos. Primeiro o tique e depois o “disfarce”, para termos que contar à mesa dos nossos catorze anos.
- Vi o “Barata Amarela”, no eléctrico. Ia seguro a um puxador do tecto, quando lhe deu o tique e o tentou disfarçar simulando que se lembrara de uma música e começou a marcar o ritmo com a mão e a perna!
E riamos, sem entender que aquilo era doença.
Não era “bullying”, era um nada fazer para melhorar a sua auto-estima, como se, para ser cidadão, só contassem os actos e não os pensamentos, as palavras e as omissões.