terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (24)


Há duas semanas que Hipólito não tinha qualquer contacto com o sobrenatural e isso deixava-o inquieto. O que se passava em redor tresandava a terreno. Os dias rotineiros faziam parceria com as notícias que enchiam os meios de comunicação, nacionais e internacionais, onde pontuava a vida mundana de Hollywood, do futebol ou da moda. Quem casava, quem se divorciava ou morria, sem qualquer toque daqueles que os deuses põem nas coisas banais para as transformar em guias para os mortais. Até os doentes morriam previsivelmente de doenças crónicas e tinha-se por garantida a presença diária do presidente da república, na televisão, à procura de “consensos”, ao mais pequeno desequilíbrio social. O Natal enchia as lojas de gente e o “All I want for Christmas is you!” tocava repetidas vezes em todas as ruas.

Hipólito afastou-se do bulício da cidade. Foi até à margem do rio admirar a elegância das taínhas a lutar contra a força da maré, a pensar se esta acalmia não seria aquela que precede os estranhos fenómenos ou as espetaculares intervenções divinas que alteram o curso da História do Homem na Terra, quando Zeus se sentou a seu lado. O médico levantou-se, agradado com a sua presença.
- Oh! Que bom é ver-te! Pensava que te tinhas esquecido de nós!
Zeus, pousou o raio e abraçou-o. -Também folgo em saber que estás bem! Tinha planeado só vir no verão, por causa da gripe, mas o Papa Francisco convidou-me para um Concílio de Deuses e eu não tive coragem de lhe dar uma nega!

- Então, estás a planear um regresso!, sorriu Hipólito, manifestamente feliz.
- Não!, respondeu o deus. – Vim só para não dizerem que sou um ressabiado e que não colaboro, quando é já evidente que a humanidade estar a dar cabo do planeta. O Tema também era apelativo: “Princípios Básicos para as Religiões que formatam o estar da Humanidade - Um novo paradigma”, e achei que a minha experiência podia servir aos deuses mais novos.
- E que tal está a correr esse Congresso, digo ... Concílio?, emendou Hipólito. Zeus não considerou a gafe e continuou:
- Nada bem! Logo nas primeiras sessões começaram as dissidências. O assunto era a "individualidade” e quando alguém defendeu que o homem deveria ser visto como uma abelha de um enxame, com um comportamento essencialmente determinado pelo grupo a que pertence, foi uma salgalhada das antigas!
Depois, como era Natal, o Papa Francisco, mostrou um presépio como símbolo da família. Havias de ver o sururu que se levantou. Que o presépio era só um pedacito da família, que deviam estar ali os irmãos, os tios, os avós, os antepassados e até os vizinhos próximos. O Francisco ainda tentou uma deriva dizendo que ele retratava o fruto do amor entre duas pessoas e que isso era a coisa mais linda que havia, mas já ninguém o ouviu.
À tarde, depois de umas generalidades, decidiu-se que o melhor era entrevistar os CEO das mais importantes instituições da Humanidade e começar pela cultura Ocidental. Ir ao Japão para falar com o Akihito, a Nova York falar com o Guterres e com o Trump, a Londres com a Rainha Elisabeth, a Berlim com a Angela Merkel, à Califórnia com o Bill Gates e a Moscovo com o Putin.
Mas quando se tentou distribuir estas tarefas pelos presentes, um grupo barulhento, desatou a gritar: “O Allahu é que vai!, O Allahu é que vai!”. Estás a ver! Quem queria ir começou a ficar irritado por só falarem naquele. Aos poucos, os deuses, foram saindo “à formiga”, até que o Francisco adiou a sessão alegando que tinha de ir comprar sapatos!

Hipólito estava surpreendido. Sabia que grande parte dos conflitos humanos tinham origem nos deuses, mas nunca pensara que as diferentes interpretações sobre o que é um homem poderia levar à sua exaltação. Zeus cingira a túnica ao corpo como a proteger-se do nevoeiro que entretanto se instalara e Hipólito sugeriu que fossem tomar um chocolate quente a um café que não tinha clientes, àquela hora. - Vais ver como te passa o frio num instante!, e, para estimular a conversa perguntou: - Tu achas que todos os deuses estão a par da evolução tecnológica da Humanidade?
Zeus sorriu. - Claro que estão! O problema não é esse. O problema está na estrutura que têm no terreno. Os Cristãos aceitaram reduzir o número de mosteiros e a passagem de algumas das suas funções para o poder temporal, mas o Islão não quer passar essa influência para um Estado Laico. As madrassas estão instaladas e asseguram emprego a milhares de pessoas. Eles não têm possibilidade de lhes fazer um "upgrade" e torná-los professores de Liceu ou de Universidades. Ia haver muita instabilidade social.

- Mas hás-de convir que, no mundo actual, as histórias dos heróis já não são veiculadas pelo clero. Quem agora dá referências aos miúdos, são os desenhos animados, o cinema e a TV. Soubeste que o Darth Vader foi a figura escolhida para representar o Mal numa das gárgulas da Washington National Cathedral, nos States? Não foi o Diabo! E isso só significa que a catequese foi vencida por Hollywood, pelo menos no Ocidente!
- É um facto!, concordou Zeus. Os personagens religiosos, para uma criança, são menos carismáticos que o Homem-Aranha ou o Skywalker e poucos se interessam pela vida do S. Vicente de Saragoça, mesmo sendo ele o padroeiro de Lisboa. Isto para falar da religião dominante no teu país. Daí que haja quem resista à globalização. Nós gregos, preocupávamo-nos em estimular a imaginação do nosso povo até ao limite. Mas há para aí religiões que funcionam em direcção oposta, porque lidam com populações com muito fraco desenvolvimento intelectual.

- Não tinha pensado nisso!, disse Hipólito, enquanto escorropichava o fundo da taça. - Mas se os fundamentalistas acreditam que conseguem fugir à globalização, estão muito enganados! Ela está para ficar! O melhor é colaborarem no estabelecimento de novas regras, com benefício para todo o planeta e não só para o Homem! Mas mudemos de assunto., sugeriu o médico. - a tua mulher dá-se bem, lá por onde vocês andam?

Zeus sorriu, ajeitou-se na cadeira e chegou-se mais próximo do médico para lhe confidenciar: - Deixou de tomar a pílula! Agora quer engravidar! Adaptou-se completamente àquele estar. Os 14 protões do silício ajudam mais os seres vivos daquele planeta que os 6 de carbono que a vida na Terra usa. Torna-os menos conflituais e sabes como são as mulheres, olham em primeiro lugar para a estabilidade. E por falar nisso!, deitou a mão à cabeça, a lembrar-se de um compromisso. - Fiquei de ir com ela visitar um rio de azoto líquido que existe nas montanhas. E já estou atrasado. Desculpa ter de ir assim tão de repente. Um abraço! , disse e, no mesmo instante, esfumou-se no nevoeiro que assumiu um leve tom azulado.

À porta do Café o empregado perguntou. - Você não estava acompanhado?. Hipólito pagou e respondeu: -Nunca estamos sós. Mesmo que os não vejamos, os deuses estão sempre connosco!.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Diagnóstico de Diabetes Gestacional



SP: Quem inventou esta Prova de Tolerância à Glicose, devia ser decapitado!
HG: É à base de quê, essa Prova? Se for sob a forma de mousse de chocolate, eu ganho!
SP: Basicamente, bebes açúcar puro, em jejum, e ficas duas horas a ver se não cais para o lado!
HG: Estão a testar-te para o Natal! Podias propor ao colégio da Especialidade de Endocrinologia uma Prova Modificada e mais divertida, à base de tarte de chocolate e natas, pudim Abade de Priscos, fatias douradas, baba de camelo ... . Assim se avaliaria a capacidade das pessoas enfrentarem a vida!
SP: Concordo! E ficávamos duas horas a comer e não a esperar!
HG: Entretanto, como só nos lembrámos disto agora, vais mesmo que terminar essa prova em difíceis condições. Lembra-te que a tua família confia nas tuas capacidades lambonas!
SP: Põe difícil nisso! Neste momento só tento não vomitar para não ter de começar tudo de novo! Obrigada pelo incentivo! No Natal quero prioridade!
HG: Não dá para pedires uma fatia de pão de ló, para molhares na calda?
SP: Não me tortures! O que eu dava agora por qualquer coisa para comer!
HG: Diz à senhora enfermeira: Isto parece o Natal dos Pobres! Trazem a calda e esquecem-se do pão de ló! Mas tens de dizer bem alto, como quem está a falar com alguém que está no fundo da sala!. Em que hospital é que estás? Tanto médico na família e não arranjas uma cunha para te darem um pão?
SP: Estou num Laboratório!!!! Ninguém me safa! Já só falta uma hora e ainda estou de pé!
HG: Força! Não desanimes! Se fosse no Hospital Veterinário, de certeza, que já tinhas uma tigela de ração! Eu trabalhei num e nunca vi tais ofensas aos direitos humanos!

Conversa roubada de um whatsapp

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (23)



Uma lareira, um sofá aconchegante, um bom livro e um copo de vinho tinto “para senhoras”, faziam-lhe as delícias nas noites de inverno. Este mais parecia um Outono adocicado pelos ventos de África mas, à noite, bem dentro de Dezembro, manda a tradição que haja recolhimento e que as práticas divirjam das de outras estações.

Hipólito lia um livro de História que lhe apresentava os factos sob uma nova perspectiva e, surpreendia-se por não se ter apercebido de outras narrativas possíveis. A História deve ser lida à luz dos valores e conhecimentos da época, mas sendo ela sempre escrita pelos vencedores, há que manter distância, evitando embarcar na deificação dos lideres, que lhes omite os erros, lhes empola as virtudes e lhes fixa os objectivos em função dos resultados obtidos, a que o Acaso nunca é estranho.

Olhou para o copo. Aquela garrafa de Carbernet Sauvignon da Casa Ermelinda Freitas valia bem os nove Euros.
Pôs uma acha na lareira e voltou ao sofá. De repente, lembrou-se que tinha agendado uma consulta com Jó, para essa noite.
Olhou o relógio. Estava quase na hora. Fechou o livro e aguardou.

Minutos depois, a campainha tocou. Era Jó. Vinha diferente. A túnica nova e a barba aparada, tiravam-lhe o ar miserável do primeiro encontro. A pele já não tinha crostas embora se notassem múltiplas manchas cicatriciais descoradas. Nos pés trazia umas sandálias de couro, amarradas em torno do tornozelo.

- Entra, entra! Que não estás vestido para uma noite como esta. Nem umas meias calçaste!, preocupou-se o médico ao vê-lo naqueles preparos, como se estivesse em pleno verão, nas margens do Eufrates.

-Não te preocupes!, respondeu Jó. - Estou habituado ao sofrimento. O Purgatório é uma provação diária!. O frio é o menos. O pior é a humidade! Então quando há nevoeiro …, entranha-se-me nos ossos e fico tolhidinho de todo!
Hipólito conhecia de cor essas histórias do reumatismo e ainda se tentou a explicar-lhe que um ambiente saturado de água dificulta o aquecimento, mas lembrou-se que Jó não possuía conhecimentos básicos de física e conteve-se. Foi ao móvel onde tinha os copos e trouxe-lhe um que encheu de vinho, enquanto o empurrava em direcção à lareira.
- Aquece-te aqui um pouco, que estás com as mãos geladas! Depois diz-me como tens passado!. convidou o médico.
- Melhorzinho!, respondeu Jó. - Principalmente da pele. Ainda futuro muito, mas nada como dantes! Mas o ambiente também não tem ajudado à minha recuperação psicológica!
- Como assim?, perguntou o médico.

Jó olhou-o suspenso na indecisão de contar histórias do Purgatório a um mortal, ainda vivo, e, por fim, desabafou:
- É que há umas três semanas, mudaram-se para o pé de mim os três pastorinhos! Como deves calcular não são a melhor vizinhança. O Francisco e a Jacinta, ainda se suportam. São crianças e fora o barulho que fazem, pouco chateiam! Agora a irmã Lúcia!... , abanou no ar, repetidas vezes, os dedos da mão direita. - É um cromo de alto lá com ele!. … Anda cheia de vaidades a dizer "Eu é que sou santa! Eu é que faço milagres! Eu é que ponho o sol a dar voltas!"... É um espancamento!!!!!. Passa a vida a dizer que, se não fosse ela, o centro do país só era conhecido pela pêra rocha!
O médico confirmou. - Lá isso é verdade! Ela é figura central no turismo religioso! Mas não contava com ela no Purgatório!? Isso é possível??, pasmou Hipólito.

Jó, meteu a mão cabelos adentro e respondeu com enfado: - O Purgatório está cheio de santos. Muitos deles, se aparecessem hoje, eram rapidamente encaminhados para hospitais psiquiátricos. Olha o S. Simeão "estilita"! Esse também anda por lá meio ganzado!
- Dizes que há santos no Purgatório!, insistiu o médico, a tentar tirar nabos da púcara.
- Ui!, respondeu Jó. – São “paletes” deles! Sempre houve muitas pressões sobre o Vaticano para a atribuição do grau de santo a um paisano excêntrico que, por uma qualquer razão, mais ou menos lógica, conseguiu chamar a atenção da populaça e gerar um movimento tal, que a Cúria não tem alternativa senão a de cavalgar a onda, antes que outros o façam. Uns estão identificados como “santos populares”, como o S. Roque, mas nem sempre assim é. A mitologia cristã é muito complexa. Eu sou de outro campeonato. Pertenço ao Velho Testamento. Infelizmente, a minha história de vida foi alterada, para se tornar exemplo de fidelidade, quando, de facto, ela é exemplo do que se não deve fazer quando nos deparamos com dificuldades, que é entrar em pânico e desatar a implorar a ajuda divina. Os árabes têm um ditado que diz “Deus ajuda quem se ajuda!” e os brasileiros dizem que “Pão de pobre quando cai, é com a manteiga para baixo!”. Naquele tempo não se dizia nada disto! Implorava-se a Deus na desgraça. E foi nesse barco que embarquei!

-Vejo que fizeste um esforço para interpretar os erros da tua vida!, confirmou Hipólito. – Apesar de tudo, tiveste sorte, porque Deus deu-te novo gado e novos filhos! Mas, já que me abriste a curiosidade, ao falares do Purgatório, eu gostava de saber se viste lá santos portugueses? O S. Teotónio? O D. Nuno Alvares Pereira? E os mártires de Viana do Castelo – a Revocata, o Teófilo e o Saturnino?
Jó deixou a cadeira e sentou-se no tapete. Hipólito acompanhou-o.
- Temos este hábito de nos sentarmos no chão!, justificou-se. E depois, enquanto passava a mão pelo tecido, anotou. - Belo tapete! É bem macio! É português?
- Sim! respondeu o médico. – É de Beiriz. Cem por cento lã. Em Portugal só se fazem tapetes em dois locais. Em Beiriz e Portalegre. Embora chamem tapete ao que se faz em Arraiolos, aquilo, na verdadeira acepção da palavra, é um “bordado”.

- É engraçado como as palavras perdem significância, quando se divulgam para fora das camadas mais eruditas da população. Um tapete tem uma urdidura muito diferente da de um bordado. Mas, respondendo à tua pergunta sobre os santos portugueses, também aqui as palavras ganharam diferente significância e a população começou a chamar santo a todos os que, de algum modo, se identificaram com o seu sofrimento, sem qualquer aval da cúria romana. É assim que aparecem os “santos” mártires, os “santos” bispos (também chamados doutores da igreja), e santos como o Nuno Álvares Pereira, que de “estratega e génio militar”, aos 64 anos, depois de enviuvar e ter perdido os filhos, se tornou “humilde monge”, no imponente Convento do Carmo, por si mandado construir, em 1389. Só foi reconhecido beato em 1918 e santo em 2009, depois da sua suposta intervenção na recuperação «milagrosa» de uma úlcera de córnea provocada por óleo de fritar, que deveria ter demorado um ano a sarar e que sarou em apenas três meses.

- Como é que sabes isso tudo?, inquiriu Hipólito. – Podes ser de outro campeonato, mas estás bem actualizado!
Jó sorriu. – Foi um acaso!, explicou. – Como a Lúcia, no meio das suas vaidades se comparou com o Santo Condestável, dizendo que ele quase não tinha devotos, eu fui ver quem era o personagem. Depois, como tu vives em Viana do Castelo, procurei os santos dessa região e só encontrei o São Teotónio. Quanto aos mártires por que perguntaste, devem ser uma invenção. Uma coisa como as antigas relíquias.

Agora era a vez de Hipólito sorrir. – Fiquemos por aqui, senão ainda acabamos a falar dos 14 prepúcios de Jesus que circulavam pela Europa na Idade Média! Se estás melhor, vais manter o tratamento e aguardar a consulta de psiquiatria, que eu agendei para o início do ano!
Levantaram-se. Hipólito foi à cozinha e trouxe um pequeno embrulho que lhe meteu entre as mãos. – Tens aqui uns sidónios, da Confeitaria Flôr, para a viagem de regresso. Vais ver que são dos melhores que aqui se fazem! Não comas tudo de uma vez, que eles também são bons no dia seguinte.
Jó agradeceu. – Deixas-me sem jeito! Não pago a consulta e ainda por cima, me dás prendas!
- Quando ficares bom, se te lembrares de passar por cá, traz umas costeletas de carneiro, para degustarmos em conjunto e fazermos as honras a uma pomada que eu ali tenho para as circunstâncias especiais.

Abraçaram-se. A noite estava fria e aceleraram as despedidas.
- Até uma próxima!, respondeu Jó, desfazendo-se em fumo.
- Vai com calma, que o mundo não acaba amanhã!, disse Hipólito, enquanto pensava: A eternidade é uma chatice!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Certidões de Óbito Electrónicas


Todos gostamos de ser bem tratados.
No local de trabalho, onde passamos mais de metade dos nossos dias, tal adquire grande significado.

Para a minha actividade profissional, no Hospital, abro diariamente o SClínico e sou recebido com indiferença!

Só quando me ligo à capital, para passar uma Certidão de Óbito, é que me dão as boas-vindas!
Obrigado Lisboa!

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

domingo, 4 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (22)


Acendeu a televisão. Anunciava-se a morte de Fidel de Castro e o médico anotou o corropio de comentadores e as frases de circunstância - que só a História o julgará, que era uma figura controversa, singular, que tinha um sonho, que … . Desligou ao quinto, sem esperar pela análise de Marcelo que, a julgar pelas fotos da sua visita, um mês antes, o deve ter surpreendido com uma qualquer “bavaroise”.
Pegou no smartphone e ligou para a mulher. Que não demorava! Que adiantasse o jantar! Que havia sopa no frigorífico, mas que fizesse um arroz e uma omeleta ou então que fosse à churrascaria buscar qualquer coisa já confeccionada!
Foi à cozinha, pegou numa tábua de queijos, numa garrafa de vinho e num pão tradicional do Alentejo. Foi para a sala, pôs a tocar, no leitor, o Álbum de Chopin de Lang Lang e sentou-se a petiscar.

Foi nessa altura que tocaram à porta. Um homem escanzelado, com múltiplas crostas na face, apareceu no intercomunicador.
Hipólito, perguntou: - Quem és, e o que pretendes?
-Tem calma! Eu necessito de ajuda! Já deves ter ouvido falar de mim. Sou Jó!
- Jó????, exclamou o médico. - O da Bíblia?
- Sim! Esse mesmo!

Foi à porta. Olhou-o de alto a baixo. A tez escura, a longa barba, a túnica rota, por onde saíam dois braços com inúmeras pústulas, o sotaque e a linguagem corporal, davam coerência à sua afirmação e Hipólito não hesitou e convidou-o a entrar.
- Tens uma história de vida do mais bizarro que há!, disse-lhe enquanto empurrava a porta. - Em que te posso ajudar? Pensei que estavas na maior e não nesse estado lastimoso. Ao fim e ao cabo voltaste a ter património, família e saúde, depois de Deus te ter tirado tudo, naquela aposta descabelada com o Diabo!

Jó, fez-lhe um salamaleque e entrou, enquanto explicava:
- O que se escreveu sobre mim não corresponde ao que se passou. Já nessa altura os narradores confabulavam para tornarem as histórias apelativas. A verdade é que foi quando adoeci que tudo começou a correr mal.

O médico, ofereceu-lhe uma cadeira em frente à sua e foi à cozinha buscar outro copo, na esperança de que aquele Quinta da Bacalhoa fosse fermento para pormenores que dessem maior credibilidade às suas afirmações. 
- Estás então a dizer que foi a doença que levou a tua casa à desgraça?
- É a pura verdade! Já rebobinei o filme da minha vida vezes sem conta e, depois de ter lido muita coisa, cheguei à conclusão de que sofro de uma Perturbação da Ansiedade Generalizada!, respondeu Jó, contristado. Depois, bebeu dois goles de vinho, deu um estalo com a língua em sinal de aprovação, e continuou: - Como sabes, nasci numa família rica, na terra de Uz, que hoje faz parte da Jordânia. Herdei um património enorme e, nos primeiros tempos, até o acrescentei! suspirou, fez uma pausa como a relembrar o sofrimento passado, e continuou: - Grande nau, grande tormenta! Todos os dias havia problemas! A certa altura, dei por mim a "empreender" neles, sem lhes achar solução e a passar noites em claro. Em desespero, virei-me para Deus a pedir piedade, na esperança de uma ajuda, mas quanto mais orava, mais desgraças atraía e, em pouco tempo, eu, que era um dos homens mais ricos do oriente, perdi o gado, a gente que estava ao meu serviço e até os filhos. Por fim surgiu-me a doença da pele e fiquei com este aspecto desgraçado.

Hipólito mediu o pobre homem. Aquela história bíblica, por mais que as exegetas se esforçassem por lhe dar um significado actual, não tinha pés nem cabeça. Um Deus a apostar com um Diabo a fidelidade de um crente, a ponto de permitir que este lhe desse cabo da vida, era mau demais para um ser misericordioso. A interpretação que Jó dava, a de um homem atormentado por crises de pânico, que o tornam num farrapo, era uma explicação muito mais razoável para aquela situação.

- Jó!, interrompeu o médico, quando lhe chegava a cesta do pão. - Então não são “inverdades”, como agora se diz, as tuas constantes preces a Deus e a tua exemplar fidelidade?!
- Foi o desespero! Nessa altura, eu acreditava no poder da oração e que, se eu apelasse a Deus, ele realizaria maravilhas e ajudar-me-ia a superar todas aquelas dificuldades. Só mais tarde é que entendi que elas não eram reais, mas resultantes do meu problema de saúde.
- Mas uma vez que já morreste, o teu tormento devia ter acabado. No Céu é suposto haver um gozo pleno e eterno, ouvindo música celestial e bebendo o leite e o mel da contemplação divina.
- Não, Hipólito!, respondeu célere Jó. - Eu vivo no Purgatório! Ali, é como na Terra. Mesmo quando lá estamos há séculos, como eu, e temos direito a recreios prolongados e licenças precárias, há tribulações frequentes!

- É curioso! Eu pensei que o Papa João Paulo II tinha fechado o Purgatório em 1999!, lembrou o médico.
- Como é que podia!, exclamou Jó, com alguma impaciência. - São biliões de almas que lá estão! Para lhes arranjar um outro destino, é preciso tempo. Há muita burocracia a cumprir. Lembras-te quando surgiram os movimentos que criticavam o atendimento dispensado nos Hospitais Psiquiátricos, acusando-os de promoverem isolamento, reclusão, abandono, estigmatização e tratamentos inadequados? Já analisaste os resultados do que se fez para que esses doentes passassem para o ambulatório? Lá ia ser pior! Uma coisa são as intenções e outra é pôr a obra no terreno!

Hipólito pasmou com a actualização de Jó.
- Vejo que estás a par do que se passa na psiquiatria portuguesa. Mas conta que a demografia e a crise também não nos têm ajudado. As famílias estão cada vez mais pulverizadas e sem capacidade para tratar dependentes.
- Entendo! Respondeu Jó. – Mas apesar de tudo há respostas! No Purgatório só há produtos “naturais” e não há apoios sociais.!
- E permitem entrada de medicamentos, vindos do exterior?, sondou Hipólito.
- Quanto a isso, não há problema! Até droga se pode levar! Na admissão há quem anote, para o "deve e haver" do Juízo Final! Mas não há limites!


Jó ajeitou-se na cadeira, puxou de um caco de louça e começou a raspar uma das crostas do antebraço.
- Está quieto e não agraves essas lesões!, levantou-se o médico, para lhe retirar o fragmento da mão. - Tens uma neurodermite infectada e ainda te pões para aí a escarafunchar!? Confirmo o teu diagnóstico. Vou ver se tens alguma outra doença concomitante, mas depois vou ter de te orientar para psiquiatria! e, a talho de foice, ainda intrigado com aquela aparição, perguntou: - Quem é que te aconselhou a vir ter comigo?

- Foi o Hércules. Encontrei-o em Petra, numa das minhas saídas precárias. Procurava dois cavalos que se tinham tresmalhado. Ficámos um tempo à conversa e ele falou que andava muito melhor desde que tu lhe mudaste a medicação. Então, dispus-me a vir até aqui na expectativa de me ver livre desta dor existencial que me faz amaldiçoar o dia em que nasci!
- Ainda bem que não entraste em depressão e mantiveste essa Fé, senão a coisa ainda era pior. A filha do Onassis também tinha tudo, como tu, e suicidou-se aos 37 anos!
- Ouvi falar!, respondeu Jó. – Talvez por temor a Deus, sei lá, recusei sempre o suicídio, mesmo quando a minha mulher me incentivava a fazê-lo. Mas cheguei a pedir a Deus que soltasse a sua mão protectora e me eliminasse.
- Ok!, já percebi as tuas angústias! Acaba o vinho e vamos ali para baixo, para eu te fazer o exame físico, não vá teres hipertensão ou outra qualquer maleita, que possa interferir com a medicação que te quero propor!

Hipólito deu-lhe a mão para que não tropeçasse nos dois degraus, que distavam da sala de estar. Depois, mediu-lhe os sinais vitais, viu-lhe a orofaringe, auscultou-o, palpou-lhe as cadeias ganglionares, deitou-o para uma palpação abdominal e fez-lhe um toque rectal. No fim concluiu. -Vais ter de fazer umas análises, uma radiografia ao tórax e um electrocardiograma. Entretanto inicias um antidepressivo em doses baixas associado a um ansiolítico, mais um antibiótico para essa estafilococia que tens na pele. Quero ver-te daqui por uma semana e, nessa altura, espero já ter um agendamento para um psiquiatra! Queres outro copo de vinho ou preferes que te faça uma sandes para a viagem?

Jó recusou ambos. Estava feliz na expectativa de tão bons resultados como aqueles que Hércules obtivera, e isso era um bom augúrio, constatou Hipólito.
Despediram-se. Jó deu três passos e um salto e, qual coruja, desapareceu na noite como um fumo, sem um ruído, quando, ao longe surgiam os dois faróis do automóvel da mulher. - Já não era sem tempo!, exclamou.  

sábado, 19 de novembro de 2016

Conversa de enfermaria


- Bom dia, Sr. Dr.! Está muito ocupado?
- Bom dia! Dona Maria! Esteja à vontade. Em que lhe posso ser útil?
- É que eu precisava de uma vassoura!
- Uma vassoura? Para quê?
- Para varrer umas coisas ali ao fundo. A parede ganhou salitre e aquele pó cai para o chão e suja tudo! Mas não queria uma vassoura de cabo partido. Queria uma vassoura com ele inteiro.
- Está bem! Eu vou ver o que se pode arranjar!

A dona Maria tem setenta anos e um tumor cerebral. Embora tenha melhorado, tem frequentes períodos de confusão.

- E a dona Maria tem passado bem?, pergunto, para avaliar alguma necessidade mais urgente.
- Esta noite dormi muito mal. A minha mãe veio dormir comigo. Apareceu sem dizer nada e meteu-se na minha cama. Pensei “olha, veio!”, e ... lá ficámos. A meio da noite acordei e ela não estava ao meu lado. E pensei: “é porque foi ao quarto de banho fazer xixi!”. Como não vinha, puxei aquela coisa que põe a luzinha acesa e fui à procura dela. Dei uma volta sem a encontrar e pensei: “já deve ter ido para a cama!”, mas quando lá cheguei, os lençóis estavam todos emaranhados e ela não estava. Então, fui assim, com a mão … a ver, e veio-me uma cara com um nariz muito grande e uns pelos grossos e feios. Era aquele que anda ali, que se foi meter na minha cama! (e apontou para a enfermaria, na direcção de um idoso pouco sociável que, de vez em quando, é preciso sedar para não bater nos outros), e continuou: - Como não me ia meter na cama com ele, fui por ali adiante, à procura de uma cama vazia. Quando encontrei uma, deitei-me. Mas dormi mal! A cama era muito alta e eu não consegui metê-la para baixo. Tive de puxar uma cadeira para subir.

- Dona Maria! Venha comigo, que eu levo-a ao seu quarto e ensino-lhe a baixar a cama. Pelo caminho, vamos ver se encontramos alguém que lhe possa dar um pouco de atenção!
...

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Lobo Antunes

João Lobo Antunes (1944-2016), médico, neurocirurgião, humanista. Um homem que atingiu o topo, sem deixar de ter os pés na terra. Alguém que nos fez sentir desconfortáveis com as suas inquietações. 

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Sermão da Montanha


Felizes os pobres de espírito, porque confiam no que lhes dizem;
Felizes os mansos, porque se conformam com qualquer coisa;
Felizes os crentes, porque a ilusão os cega da realidade;
Felizes os que trabalham das nove às cinco, porque não têm tempo para pensar;
Felizes os que têm SportTV, porque se podem alienar com o futebol.

Bem-aventurados os que vivem no mercado negro, porque os impostos não lhes pesam;
Bem-aventurados os que têm dinheiro em offshores, porque podem ser reis nos países pobres;
Bem-aventurados os que vivem das heranças, porque têm tempo fora do trabalho;
Bem-aventurados os robustos, porque secundarizam os custos da Saúde.

Regozijai-vos e exultai, porque grande é o vosso galardão!


Mas ai de vós, que sois pobres! Porque pouca será a vossa consolação;
Ai de vós, os famintos! porque vos estarão reservadas as sobras deste mundo;
Ai de vós os que choram! porque haveis sempre a lamentar não terdes tido infância;
Ai de vós, os aflitos! porque nunca sereis consolados;
Ai de vós, os perseguidos! porque nunca alcançareis misericórdia;
Aí de vós, os que têm problemas ecológicos! porque ireis assistir à derrocada do pouco que conquistastes;
Aí de vós, os que amam a paz! porque ireis ouvir mais trombetas a soar.

Digo, porém, a vós que me ouvis:

Vigiai os vossos inimigos e atentai aos que vos maldizem e, se algum vos bater numa face, dai-lhe um pontapé; e ao que te rouba a capa, atira-lhe um paralelo;
Não empresteis a quem não esperais receber; e ao que vos pede, mandai-o trabalhar;
Não temais ser julgados, porque há sempre um hiato na lei a explorar;
Anotai com pormenor o argueiro no olho de vizinho, pois pode ser esse o argumento para o vencer.

E ... como não se colhem figos dos espinheiros, nem dos abrolhos se vindimam uvas, estai atentos a todos os pomares, e convencei-vos que toda a grande transgressão será perdoada e o pecado coberto, porque só os ímpios prosperam neste mundo.

Ámen

domingo, 6 de novembro de 2016

Lembranças do Olimpo (21)


Hipólito regressou a casa tentando identificar as árvores por que passava. Carvalhos, castanheiros, faias, salgueiros, cedros, medronheiros, bétulas, eram fáceis. Outras obrigavam-no a parar. Pena não ter trazido o livrinho das autóctones, pensava, embora, mesmo com ele, algumas, por serem de outras regiões ou lhe faltarem elementos distintivos, como frutos, flores e até folhas, ficassem para outras alturas.
Desde pequeno que a natureza lhe despertava curiosidade, fossem seres animados ou rochas. Lembrava-se ainda do espanto com que vira, pela primeira vez, os rifts do fundo do mar que estão na origem da tectónica das placas e também de um livrinho sobre Darwin que o tirara das limitações das crenças religiosas, mas fora o funcionamento do corpo humano, na saúde e na doença, que acabou por vencer e orientá-lo para a profissão.
Embora a teoria lhe interessasse, era pela prática que se media, sem se impressionar com quem recitava de cor as mais recentes “guidelines” e fugia da proximidade dos doentes, nem com quem entendia os actos médicos, como actos de piedade, e escondia a incompetência debaixo de um discurso pseudo-ético-religioso, parasita do trabalho dos pares. Admirava, acima de tudo, um diagnóstico difícil, principalmente se feito com recursos limitados, a que se seguia uma terapêutica eficaz. Era aí que punha a tónica da profissão, embora nunca descurasse o respeito por quem sofre o infortúnio de uma doença.

Chegou a casa cansado. Procurou no frigorífico uns restos que pudessem servir para um almoço tardio, aqueceu-os e acompanhou-os com uma cerveja gelada. Depois estendeu-se na sua Lounge Chair, e adormeceu. Foi nessa precisa altura que Zeus lhe apareceu.

- Que é feito de si, meu amigo!?, perguntou Hipólito, satisfeito, enquanto se endireitava na cadeira e lhe oferecia o "ottoman". – Há meses que não sei nada de vós! Como é que se dão pelo vosso novo planeta?
Zeus sorriu. Já não se vestia à antiga, com o quiton branco. Agora usava calças e uma jaqueta em couro duro, azul-cobalto de tons iridescentes, qual exosqueleto de um insecto, que em nada lhe limitava os movimentos. Na mão mantinha o raio azul e na cabeça os longos cabelos e a barba não escondiam quem ele era.
- Estamos todos bem e activos!, respondeu. –Deixámos de ser deuses de uma só espécie e agora somos deuses de todos os seres vivos daquele planeta. É curioso como aquilo que parecia ser uma carga de trabalhos, nos deu tranquilidade. Já não temos só a forma humana. Agora, ao aproximarmo-nos das diferentes formas de vida, assumimos as suas configurações e tentamos entender-lhes as angústias e expectativas, para as ajudar a aceitar limitações e assim não serem vítimas dos seus desejos. Olhe! O Dionísio, que era Deus do vinho e da vegetação, agora virou entomologista e passa a vida à volta das abelhas e das formigas. Qualquer dia até se esquece do que são uvas. O Eros, de Deus do Amor e do Desejo, agora, interessa-se por harmonizar os movimentos dos asteróides para que as colisões não sejam só obra do Acaso, e o Ares deixou as guerras e agora dedica-se ao jornalismo. Está entusiasmadíssimo com a capacidade de criar movimentos populacionais com as notícias, sejam elas verdadeiras ou falsas. Diverte-se imenso. No outro dia noticiou lá o “Calcitrin MD Rapid” como um medicamento “muito bom para os ossos”, esquecendo-se que aqueles seres têm por base o silício e não o carbono. Muito nos rimos! … Está um “bem-disposto”! Mas a maior parte das notícias que cria, são mais dirigidas a fabricar futuros que a registar o passado. Tem tido imenso sucesso! Agora anda a dedicar-se à necrologia. Sempre que morre um ser vivo, ele inventa-lhe um passado cheio de dignidades, que possa servir de inspiração aos outros seres da sua espécie, para estimular vidas consonantes com os outros seres daquele planeta. Qualquer dia perdem a angústia com a morte e deixam de se virar para nós!, sorriu, enquanto dava um jeito aos cabelos que lhe caíam para a frente dos olhos.

- Pelo que contas, não vejo que estejam a perspectivar um regresso à Terra!, perguntou, como quem afirma, o médico.
Zeus levantou-se, passeou um pouco pela sala, como a admirar os bibelots que repousavam sobre os móveis e continuou, ignorando a interrupção.
- Até a minha mulher está diferente. Ela tinha obsessão por tudo o que se relacionava com sexo. Se eu saísse para fora do seu olhar, ficava inquieta. Tinha uns ciúmes de morte! Naquele planeta fomos obrigados a rever o nosso conceito de “individualidade”, pois o seu sistema combate os extremos, impedindo, em todas as espécies, os muito ricos e os muito pobres, sem contudo impedir que cada um se possa realizar de acordo com as suas potencialidades. Até as grandes árvores têm de deixar passar a luz para que as mais pequenas possam crescer e, se já forem muitas a ocupar um espaço escasso, têm de aceitar não produzir mais sementes.
O Acaso é o único que pode fazer o que quiser, porque é de “outro campeonato”! Naquele planeta é ele o responsável pelos acidentes, dos domésticos aos provocados pela actividade tectónica (tsunamis, terramotos e vulcões). O Hefesto teve de se conformar e, agora, dedica-se à microbiologia. O seu maior trabalho é convencer as bactérias mais patogénicas a só atacarem quando os seres vivos morrem, por velhice ou por obra do Acaso.

- Interessante!, confirmou o médico. – Sinto no teu falar grande satisfação com o que ali encontraste. Parece ser tudo muito “cool”! Mas está-me aqui a parecer que, se a coisa se passar sempre como descreves, daqui a uns anos, vais achar esse planeta muito parado e vais ter saudades da Terra onde estão sempre a acontecer coisas novas. A não ser que o Acaso não durma e faça a vida negra a todos os seres vivos!
- Para já está a ser bom! É como nos Hotéis “cinco estrelas”. O horário de trabalho é de vinte horas por semana e mesmo assim o maior problema é o desemprego. É necessário inventar muitos factos para os manter entretidos a conversar uns com os outros, mas nisso o Ares tem-se mostrado um Às!
Olha, Hipólito! Vou ter que voltar. O Dionísio não está a conseguir fazer com que a lagarta mineira deixe de atacar os citrinos, e ele não frequentou o curso de aplicação de produtos fitofarmacêuticos. Vou ter de o ajudar. Fica bem!
- Até uma próxima!, respondeu o médico. – E volta sempre! Dá os meus cumprimentos a toda essa malta olímpica e um abraço especial à tua mulher, que é uma santa, que mais não seja por te aturar!

E, dito isto, Hipólito acordou com a sensação de estar envolto numa nuvem com um leve cheiro a enxofre. Esfregou os olhos e olhou para o relógio. Eram quase sete da tarde e a mulher ainda não tinha chegado.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Humm Hamm


-Olha lá! Hás-de ver aquilo ali da cara da tua mãe. Tenho posto muito creme, mas está cada vez pior!
-OUTRA VEZ!?
Confesso que reagi assim. Volta meia volta lá vem a conversa da lesão da face. Hoje tem, amanhã não é importante…, afinal tem, afinal não era nada e já está melhor…
Eu sempre fui olhando e o aspecto nunca me impressionou. Mas desta vez saquei do telefone e logo ali agendei uma consulta de Dermatologia para 5ª feira, no hospital privado. Afinal tem que se pôr a render a ADSE. Não fico a dever favores a ninguém. poupo uma ida ao Hospital público e acabo com esta cena de uma vez por todas.
-Humm, Hamm, Humm! Achas mesmo que é necessário?
- Agora vai. Queiras ou não!

Dois dias antes da consulta:
-Olha lá! Afinal não é necessário levares a tua mãe à consulta de Dermatologia. Tenho posto bastante creme e já quase não se nota.
-Agora vai!, respondi, seca como só eu sei ser.
-Humm, Hamm, Humm, Hamm! É que ouvi um programa na televisão sobre infecção hospitalar. Não sei se sabes mas morrem mais pessoas de infecção com bactérias hospitalares do que de acidentes de automóvel e eu não quero ir ao hospital e vir de lá mais doente porque os profissionais não lavam as mãos e não mudam de roupa. Isto nos hospitais está muito mal! Eu ouvi e acho uma pouca vergonha, ...blá, blá…
Vesti-me de paciência e dissertei sobre infecção hospitalar…
- Hummm,…Hammm,…Hummm! Bem, vamos lá… se tu dizes!.

Chegado o dia e, bem antes da hora marcada, chegamos ao hospital para termos tempo de procurar o local e ultrapassar todos os obstáculos previsíveis, desde o estacionamento até as burocracias inerentes ao registo.
Sentados na sala de espera tentei a minha sorte:
- Entro eu ou entras tu com a mãe?
- Humm, Hammm, Humm! Porquê? Não podemos entrar os dois? Hummm, Hammm, Humm! Está bem vai tu! Mas eu quero saber tudo!
Estratégia definida e já em castelhano sonoro se ouvia: Maria Antonieta

A dita levantou-se pesarosa como se fosse para o cadafalso. Ombros tombados, sobrancelhas caídas a acompanhar o arco descendente das comissuras labiais A carteira pendia do braço prestes a despenhar-se. Olhos em alvo, como só ela sabe fazer, mal cumprimentou o médico que, no seu melhor castelhano, a mandou sentar.
-Entonces de que se queixa?, perguntou, falando muito alto e com a boca aberta, tal como nós fazemos quando falamos castelhano.
Sem falar, apontou com a unha do indicador, impecavelmente rubra, a lesão da face… O olhar mantinha a gravidade no acto…olhos em alvo.
De um pulo o Doutor saca da lupa e assesta-a na lesão e, de imediato, grita:
-No tem problema! Es benigno. No es maligno, nem nunca va a ser! No tem problema! Pode descansar! Se quiera podemos sacar, mas fica una mancha! Es igual!
Agora já os olhos da paciente retomam a linha do horizonte e ainda de lábios cerrados, levanta os dedos unidos que abre e fecha à face do doutor.
-Tienes medo!? No tengas! No es nem va a ser malo!.
Nestes 3 segundos estava concluída a consulta mas ainda consegui pedir ao doutor para repetir ao meu pai as boas notícias. Que sim, mas fez-me sentir que teria de ser rápido.

Lá o trouxe até ao consultório e quase consegui que não se sentasse. Repetiu então o médico a boa frase, no mesmo tom de voz, como se fossemos todos portugueses a falar espanhol com a boca aberta.
-Humm, hamm, hummm, hamm! Eu tenho posto bastante creme…
-Vamos lá que está tudo bem!, disse eu enquanto o levantava para o empurrar porta fora.
-Hummm, hammm! O sr. dr. não é português?
-No! Espanhol!
E já com o corpo fora do consultório – Hummm, Hammm! Então quer dizer que não é psoríase?? ... Ainda bem!


Texto de Helena Gomes (
my sister)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Piloto



O Piloto apareceu na minha pensão em Aveiro. Entrou a cavalo e passeou-se pelos corredores com a cabeça baixa, para não ser reconhecido, como se um tipo com ar de caubói (até lenço no pescoço trazia) pudesse passar despercebido. Chegou ao fim do corredor (eu estava no piso de cima, consegui ver tudo com clareza), olhou cabisbaixo para os lados, deu meia volta, atravessou novamente o corredor vagarosamente e saiu pela porta por onde 3 minutos antes havia entrado. Não houve azáfama, toda a gente o viu e todos continuaram seu ritmo lento de se mover pelo espaço.
Enquanto me dirigo para o quarto (é capaz de ser boa ideia antes que isto dê para o torto) constato que estou a ser preconceituosa. É que eu devo ser a única portuguesa que não sabe a cara do piloto (estou fora do país e sou mais de ouvir as notícias) e em Portugal os 'most wanted' não aparecem nos pacotes de leite. Estou claramente a fazer a generalização piloto, caubói, Malboro man, é tudo a mesma coisa - nunca fiar!
Quando chego ao quarto, reparo que infelizmente este não tem paredes, mas antes umas grades baixas, estilo coreto, e que tem até a forma arredondada. Reparo também que, como é costume, é um quarto partilhado e assim, a grosso modo, estamos lá cerca de 15 e um cão. Surpreendentemente, não há camas. As única peças de mobiliário são uns bancos espalhados, aleatoriamente, pelo espaço vazio. Desvio com jeitinho o cão, e sento-me ao lado do velho que deve ser seu dono. Olho à volta. Está tudo como eu, à espera que aconteça alguma coisa, à excepção do cão que, depois do meu empurrão, já encontrou novo espaço e está novamente enrolado a dormir. É então que vemos o caubói subir as escadas. Desta vez sem cavalo, mas exactamente ao mesmo ritmo pesaroso. Esta coisa de não haver paredes dá para os dois lados - se por um é óptimo, porque o vemos mal ele chega ao primeiro piso, por outro ele também está de olho em nós mal põe o pé no último degrau das escadas. Obviamente, ou não fosse eu uma tipa cheia de sorte, ele dirige-se para o meu quarto. As pessoas começam encostar-se umas às outras. Uma mãe abraça uma criança pequena. Eu encosto-me um pouco mais ao cão que apenas levanta a orelha e a pálpebra direitas e me olha de soslaio como quem diz não sei o que se está a passar, mas já estás a abusar. Olho para o velho - olha para os sapatos rotos sem vontade nenhuma de daí tirar os olhos. Tento elaborar, sem levantar sobrolho, um discreto plano de fuga, mas este é sempre mais difícil em áreas pi ao quadrado, sem esquinas obscuras ou cantos refundidos, e, ainda antes ainda de me imaginar a fazer uma pirueta e um mortal à retaguarda por cima das grades do quarto, ouço uma voz metálica a chamar baixinho, com sotaque estranho 'Helêna'. Pára-se-me o coração. Já fui! É sempre a mesma coisa! Olho para o caubói e reparo que também ele está com um ar perdido, à procura da origem da voz. Não me mexo, pode ser que ninguém saiba que me chamo Helena ou que haja outra 'Helêna' na sala. Entretanto, o 'Helêna' ouve-se outra vez, mais forte, e, desta vez, toda a gente olha para mim.
Fecho os olhos com força e torno-me religiosa por uns segundos a pedir a dEUS que não me mate já. Abro os olhos e, felizmente, acordo.
A senhora R chama outra vez o meu nome pelo intercomunicador. Salto da cama e corro para a lhe dar o braço. São 6 da manhã na Inglaterra. Tudo certo. dEUS existe e safou-me desta.



Texto de Helena Ferreira Gomes (
my daughter)

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Aplicações de Telemóvel



- Dr.! Está um “verde” na Sala de Espera, a aguardar Medicina, que está muito ansioso. É melhor ver o que se passa. Já começou a disparatar e eu temo que vá causar mais confusão do que aquela que já temos, se não for atendido rapidamente.
- Há três laranjas em lista de espera para Medicina Interna, mas mande lá entrar o homem, não vá haver razões para tanto nervoso!
Olho para o écran e procuro um “verde”. É uma transferência. Já foi observado pela Triagem Geral. Registou-se à uma da madrugada, e foi encaminhado para Medicina pouco antes das oito, depois de ter efectuado análises.

A Triagem de Manchester tem destas coisas. Se estiverem a entrar “vermelhos” ou “laranjas” com regularidade, os tempos de espera dos doentes a quem foram atribuídas outras cores começam a ser ultrapassados, e como os “verdes” são “pouco urgentes”, são frequentemente entendidos como “azuis” - “nada urgentes” e só são observados quando já não há outras prioridades.

São nove horas, quando o chamo.
Entra um jovem na casa dos 20 anos. Cabelo rapado dos lados e um tufo no cocuruto. Camisa branca desabotoada a partir do meio, manga dobrada, jeans que deixam ver os tornozelos, sapatos de matar a barata no canto em couro castanho claro e uma pequena sacola a tiracolo de sarja amarela.
- Faz favor de se sentar! O que se passa?
Recusa sentar-se de imediato, para se queixar do tempo de espera. É brasileiro e está em Portugal há uma semana. Veio ao Serviço de Urgência porque teve uma relação com um parceiro HIV-positivo e, no final, rompeu o preservativo. Está zangado, porque ainda não foi medicado e sabe que há uma janela temporal para que esse tratamento possa ser eficaz, em caso de contágio.

- Já percebi o seu problema, mas entenda que, durante a noite, há funcionalidades que se perdem num Serviço de Urgência e, no seu caso concreto, a eficácia da profilaxia pós-exposição mantém-se durante 72h. Por isso, temos tempo para avaliar correctamente a situação, antes de iniciar qualquer atitude.
Já mais calmo, o homem senta-se.
- Então vamos lá ver. O senhor disse que o seu parceiro era VIH-positivo!?
- Sim! Foi ele que o disse, quando rompeu o preservativo. Eu antes não o sabia. Se eu o soubesse não me tinha metido com ele!
- E como é que ele se chama?, pergunto na esperança de conseguir ver no S.Clínico alguma informação sobre o estadio da doença e da carga vírica do parceiro.
- Não sei!, responde. – Sei só que se chama Manuel! Mais nada!, e depois virando para mim o écran do smartphone. – Também posso lhe mostrar a cara! É este!
- Oh! Homem! Vire isso para lá, não vá eu até reconhecê-lo! Mas o senhor mete-se numa aventura destas e não sabe o nome dele?
- Não! Eu pus três aplicações no telefone e apareceu ele! Só sei o primeiro nome e sei a cara dele! Quando ele disse que o preservativo rompeu, fiquei em pânico e fui à Farmácia pedir o tratamento. E sabe o que o farmacêutico me deu??? ... Sabe!? … A pílula do dia seguinte, para não engravidar! … Você acredita!!!!, e gesticulava virando as palmas das mãos e os olhos para o céu. - Deus do Céu!! A pílula! Eu sou HOMEM! Santo Deus!, e repetia os gestos, incrédulo, para depois se recostar na cadeira, simulando exaustão.
- Tenha calma, que o farmacêutico não deve ter percebido que você estava numa relação homossexual e talvez tivesse entendido que estava preocupado com o risco de a gravidez indesejada de uma sua parceira!, respondo, para amenizar uma eventual provocação, e continuo. - Vou pedir ao laboratório para completar as suas análises e marcar-lhe uma Consulta para daqui a um mês. Quanto ao tratamento, vai ter que aguardar mais um pouco porque temos de o pedir à Farmácia do Hospital. Espere um pouco naquela salinha, ali ao fundo, que quando estiver tudo pronto, vou ter consigo! OK!

….

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Mulheres



Há as "bem boas" de Ermesinde
e as foleiras do Bolhão!
Há as das Antas, as da Linha
As de Faro e de Monção!

Há as malvadas, complexadas,
que não perdoam nem esquecem.
Há as que “falam senão rebentam!”
E as que fingem que obedecem!

Há as que se matam para agradar
e se condenam de antemão.
Há as desprevenidas, que não reagem
A quem é fácil dizer não!

Há as de suspiros vulneráveis
a caprichar no visual.
E há infantas guerreiras
Neste nosso Portugal!

Há inteligentes e poderosas
e outras que se reinventam.
Há as que têm muita fé
E que com pouco se contentam!

Há mulheres fatais perversas
que abusam da indiferença.
Há as feiticeiras sensuais
à espera do Amor, a recompensa!

Há as belas, as amarelas,
as puras e as inseguras.
As que posam p'rá a Play Boy
E as que causam desventuras!

E … por fim, hás ... tu, ...
que lês isto e que m'aturas!!

Bem Hajas!

sábado, 15 de outubro de 2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Sapiens




Yuval Noah Harari é historiador, investigador e professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém. É Doutorado em História pela Universidade de Oxford.

Este livro é um relato electrizante sobre a aventura da nossa espécie – de primatas insignificantes a senhores do mundo, que nos faz questionar a história do homem, as suas conquistas, religiões, filosofias e progresso tecnológico. Um livro imperdível para quem gosta de pensar, que impressiona pela quantidade de informação, oferecida em linguagem acessível e espirituosa.

Sapiens foi lançado, em 2011, em Israel. É um best-seller internacional. Está publicado em quase quarenta países...

sábado, 8 de outubro de 2016

Lembranças do Olimpo (20)


Hipólito andou ao longo da orla do mar, subiu as dunas, depois uns rochedos e meteu-se pela veiga até à povoação mais próxima. Uma boa hora e meia com passo estugado.
Levara na cabeça um Panamá fino, que o protegia daquele forte sol de Setembro, mas esquecera a água e, no fim do caminho, a sede obstinava-o para uma qualquer fonte ou Café onde a pudesse satisfazer.
A terriola parecia deserta e, não fora o ruído de um prato a partir-se, passaria pela tasca sem reparar que estava aberta.

Entrou na semi-obscuridade da sala. A mobília de madeira maciça lembrava os anos cinquenta do século passado. Não havia moscas e o ar era fresco e isso reconfortou-o. Atrás do balcão o tasqueiro vociferava enquanto apanhava os cacos do chão.
- Bons dias!, disse o médico. - Está aberto?
- Bons dias!, respondeu o homem, ainda de pá na mão. – Pode entrar! Desculpe este meu praguejar. mas de há um mês para cá acontecem coisas estranhas nesta casa! Lamentou-se enquanto despejava o lixo no caixote. - Olhe que hoje já me caíram da parede três pratos, e sem ninguém lhes tocar, nem passar uma corrente de ar! Ontem dei com a torneira da cerveja de pressão aberta e foi-se um barril que tinha aberto momentos antes!
Hipólito sorriu e tentou amenizar-lhe a irritação. -Tenha calma que há dias assim! Andamos preocupados com qualquer coisa e nem reparamos no que fazemos! Se ainda há cerveja que tenha sobrado, podia arranjar-me uma caneca, por favor!, pediu o médico. - Está um calor que lembra Julho! Se não encontrava aqui este oásis, creio que caía na próxima valeta!, exagerou.

O vendeiro acercou-se do balcão, serviu-lhe um pratinho de tremoços e a bebida, que médico despachou de um trago.
- Está um calor infernal! Qualquer dia o deserto do Sahara entra pela península ibérica e vamos ter de andar de camelo e beber chá de menta!, gracejou.
Depois de um Ahh reconfortante, Hipólito pediu outra caneca, pegou num tremoço e anotou: - Vejo que aqui se mantêm os hábitos antigos de adivinhar a vontade do cliente!
- É regra desta casa pôr sempre um petisco para picar, quando se serve uma bebida. Uma orelha de porco de coentrada, um polvo à galega, umas favas com chouriço, umas fatias de queijo ... qualquer coisa bem apurada, mas, neste último mês, como lhe disse, temos andado às voltas com uma série de acidentes, e só temos tido tempo para tremoços, azeitonas e favas secas! A minha mulher até diz que temos a casa assombrada!

Hipólito dispôs-se à conversa e o taberneiro prosseguiu:
- Ele são ruídos estranhos à noite, ferramentas que desaparecem de um local para aparecerem dias depois onde menos se espera, portas que batem sem ninguém estar por perto e tudo isto desde que a minha irmã, que ficou viúva, veio morar connosco. A gente até brinca com ela, mas lá que coincidiu, isso ninguém pode negar!
- E no meio dessas contrariedades, aconteceu alguma que fosse um grande mal?, insistiu o médico, que de repente assumira o caso como se fosse um detective.
- Coisa grave, … que me lembre, não aconteceu. Mas têm sido tantas fora do normal, que até parece bruxedo!, respondeu o homem, com uma vaga esperança numa solução.

O médico levantou-se para se certificar que os pratos pendurados na parede estavam bem fixados e que os que tinham caído tinham o mesmo tipo de suporte. Depois, voltou ao balcão, bebeu dois goles de cerveja e atreveu-se a mais uma pergunta. - Desculpe a minha curiosidade, mas sinto que talvez possa ajudar a descobrir o que o atormenta. Onde residia a sua irmã antes de vir para cá?
O tasqueiro, levantou o olhar, surpreendido: - Vivia em Vimioso, em Trás-os-Montes! O que é que pensa que poderá estar por detrás disto?
O médico, pegou-lhe no braço e convidou-o a sentar-se na mesa mais próxima, não fosse a estranheza da notícia causar-lhe uma sulipampa. Depois, pôs o seu melhor ar de entendido e disse-lhe, do mesmo modo como daria a notícia de uma doença não fatal, mas a merecer grandes cuidados.
- Tudo aparenta de que se trate de um trasgo que tenha seguido a sua irmã. Não se preocupe que não vai passar disto, desde que não dê sinal de estar irritado. Se o tolerar, passado um tempo, ele vai para outra casa, provocar outro.

- É capaz de ser isso!, confirmou o pobre homem. - A minha mulher numa destas noites de lua cheia, quando veio cá abaixo ao estabelecimento, por causa de um ruído, pareceu-lhe ter visto qualquer coisa, como um rato vermelho, a esconder-se por detrás do balcão!
- Então é quase certo! Eles vestem-se de vermelho e usam um gorro de bico na cabeça. Se o tivesse visto coxear da perna direita, tínhamos a confirmação. Eles vivem mais para o interior do país, mas muitas vezes seguem as pessoas de lá, nas suas deslocações. Só querem divertir-se!
Há uns anos tive um lá em casa. Escondia as chaves do carro, fazia desaparecer uma meia de cada par, comia as sobras dos bolos do frigorífico e punha nódoas na roupa lavada. Deve-me ter perseguido num dia em fui com o meu neto ver um arco-íris. Como deve saber, eles fabricam uma substância parecida com o ouro, que colocam no pote que está no fim do arco e que desaparece quando a gente se aproxima. Ficou uns dois meses connosco, mas como a minha casa tem muita luz e eles preferem sótãos e adegas, foi-se embora!
No seu caso, como o seu estabelecimento é pouco iluminado, se quiser ver-se livre dele mais depressa, tem de o desafiar a fazer uma tarefa impossível, como trazer uma cesta de água do mar, clarear uma ovelha negra ou outra coisa do género. Como ele acha que sabe fazer tudo, vai ficar exausto a tentá-lo. Então fica com o orgulho ferido, sai e não volta. 

- Obrigado pela informação! Bendita a hora em que entrou na minha casa! Já me tinha esquecido da existência desses seres. Quer mais um fino ou prefere uma sande de presunto?. O taberneiro estava visivelmente satisfeito. Pelo menos já sabia que se não tinha que se preocupar e que se mostrasse irritação a coisa iria de mal a pior.

O médico agradeceu, aceitou uma garrafa de água para o regresso e despediu-se. Depois, meteu-se pela estrada, a pensar se não haveria zanganitos destes na política. Aquela candidatura de última hora de Kristina Georgieva a Secretário-Geral das Nações Unidas e a de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tinham características que lembravam as suas traquinices …

sábado, 1 de outubro de 2016

Lembranças do Olimpo (19)


Hipólito teve uma noite descansada e acordou já o sol ia alto. Nada como ser domingo e não ter preocupações com missas ou qualquer outro evento social a cumprir, pensou. Gostava da comunidade onde residia, mas encontrá-la numa missa era um preço demasiado alto. O padre era um sujeito imbuído de uma mentalidade tacanha, um crente em que as sociedades só têm um modo de se organizar, o seu, incapaz de qualquer gesto de humor em público, daqueles que repete à exaustão "Graças a Deus muitas, Graças com Deus nenhumas!".
Tivera a má experiência de o ouvir em três funerais a repetir "ad nauseam" a mesma fórmula, sem anotar a mínima particularidade daqueles seres que definitivamente nos deixavam, e saiu revoltado.
Não entendia que alguém pudesse subir a um púlpito sem ser capaz de um elogio fúnebre. Da primeira vez ouvira-o na missa de corpo presente da mãe de um amigo seu. Uma analfabeta que ficara viúva ainda jovem e que conseguira dar um curso superior aos três filhos. Da segunda, vira-o chegar atrasado e "despachar" o morto em menos de três penadas e da terceira, agrupara numa cerimónia, missas por um montão de falecidos e um baptizado.
Também as histórias que contava, dos martírios dos Santos primordiais pareciam-lhe ficções da Marvel e, lembravam-lhe as dos fanáticos religiosos do Islão actual, à espera que uma qualquer surata lhes dê acesso a um Paraíso do tipo “Club Med”.

Depois deste pensamentos, foi ao quarto de banho e olhou-se ao espelho.
- Estás a ficar sábio de mais!, disse à sua imagem. - Já não consegues achar graça à incoerência humana!
Depois, lavou cara e reconsiderou: - Deixa-te dessas merdas, que "p´rá frente é que é o caminho!", mesmo que duvides do lado para que estás virado!
Ajeitou o pijama, preparou os sucos para o pequeno-almoço e quando passou pelo Nkisi e lhe deu os bons-dias, lembrou-se da pergunta que ficara pendente da noite anterior.

O Nkisi, que devia estar já à sua espera, respondeu prontamente.
- Bom dia! Gostava de te ajudar, mas sou um espírito que anda com os pés na terra. Ainda por cima, sempre por África. São os meus anos que me dão vantagem, por já ter visto muita injustiça e montes de boa gente a morrer por más causas. Os meus poderes são limitados. Ajudo com conselhos, mas sem aquela magia dos milagres, com que todo o ser humano parece estar a contar!

- Obrigado!, respondeu o médico. - Hoje a minha mulher foi trabalhar e estou sozinho em casa. Era uma óptima oportunidade para vires comigo e falarmos. Eu ando a ler umas coisas sobre a expansão do Homo sapiens por este planeta, e gostava de tirar umas dúvidas contigo. Como foi em África que ele nasceu, tu, por certo, sabes histórias da sua actividade primordial.

O Nkisi, como que ganhou um brilho diferente. Há anos que ninguém se dispunha a ouvi-lo sobre um assunto tão vasto e, o facto do médico se dispor a dar-lhe ouvidos, envaidecia-o.
- Como tens tempo, vou explicar-te. Não sei se sabes, mas os primatas raramente formam grupos com mais de 50 elementos e os primeiros humanos a que vocês chamam de Homo erectus, neanderthalensis, habilis, … estavam limitados a grupos em que todos se conheciam e, nessa circunstância não conseguiam ultrapassar os 150. Foi com o aparecimento dos mitos religiosos que foi possível ao Homo sapiens fazer com que cada vez mais indivíduos colaborassem no mesmo objectivo e começassem a dizimar as outras espécies.
Como todas as religiões colocaram o Homem como figura central, deram-lhe a oportunidade de ser vítima dos seus desejos.

- É um facto!, retorquiu o médico. – O homem convenceu-se de que era o único ser vivo portador de alma, mesmo que pareça que anda muito desalmado por aí!
O Nkisi concordou. - E não é por se ser rico ou ter um curso universitário!, continuou. - Há que ter respeito pelas outras formas de vida, pelas pedras, pelos rios e pelos mares. São os desalmados que há 30.000 anos andam a dar cabo da Terra. Antes de se ter inventado a roda já eles tinham acabado com mais de metade dos mamíferos terrestres com mais de 50 quilos.
Temo que os deuses tenham decidido pôr cobro aos seus desmandos!

Hipólito, sentiu a ameaça como real e perguntou assustado. - Mas se o executarem, vai tudo a eito, como fizeram os cruzados à população de Béziers em 1209, ou os que têm alma ficam para ocupar o espaço que sempre lhes foi devido?
- Lá isso, não sei! O mais provável é haver quem se safe!, respondeu o espírito.
– E será que eles esperam por 2030, para dar tempo a que a NASA chegue a Marte, ou achas que catorze anos é muito tempo!, insistiu Hipólito. – E se alguém influente no Vaticano, no Islão na administração Obama, na China, na Índia ou na Rússia, der uns passos no caminho certo e a Economia deixar de necessitar do crescimento que os actuais economistas desejam? Será que eles suspendem essa reprimenda?

- Não estou a par da política mundial para te responder!, admitiu o Nkisi. - Mas nestas coisas, um bater de asas de uma borboleta é muito importante!. E depois para lhe amenizar o dia, continuou: -Mas vejo que já acabaste a refeição. O melhor é arrumares-te e ires dar uma volta que, se não deixas de pensar nisso, ainda dás em doido! Para mais, depois de teres passado uma semana sem apanhares sol na moleirinha! O que for, se verá! E não é por muito madrugar, que amanhece mais cedo! Vês como também sei uns provérbios!

Hipólito, subiu com a estatueta, colocou-a no seu sítio e obedeceu-lhe. Minutos depois estava na praia a dar pontapés nas algas, que também é para isso que todas as semanas há domingos .

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Lembranças do Olimpo (18)



Hipólito saíra da Urgência às 20:00h, quando o céu do fim da tarde se tingia de vermelho e o sol se apagava no mar. Rumou em direcção à praia e estacionou virado para a linha do horizonte, enquanto pensava nos porquês daquela cor.
Partículas em suspensão no ar? A última cor visível do espectro da luz? Ou sangue subindo aos céus proveniente de algum ritual pagão nos confins da Terra?

Confabulava. Tivesse pensado que o céu estava tingido de encarnado e a associação de ideias, por certo, seria diferente (em Lisboa, os nobres do Império dizem encarnado e a plebe diz vermelho, e vermelhos são os comunistas e encarnados os adeptos do Benfica).

Encarnado trar-lhe-ia à mente, não sangue, mas carne e o mais provável seria o tê-la associado a um qualquer acidente explosivo que esfacelasse completamente um indivíduo, como os homens-bomba no Próximo Oriente ou um choque de lixo espacial à deriva com o corpo de um cosmonauta em passeio fora da sua Estação Espacial ou quiçá, com um deus “encarnado” em humano.
Na Grécia antiga não havia restos de satélite na órbita do nosso planeta e os seus deuses não tinham problemas desta índole, bem como Nossa Senhora ou Jesus que subiram aos Céus em corpo, talvez para evitarem as profanações. Agora, se passarem perto da Terra, têm de ter cuidado. Talvez por causa disso “sepultaram” o Bin Laden no mar Arábico em vez de o enviar para a estratosfera. Ficou mais barato e evitaram-se colisões.

Depois, lembrou-se que conhecera um José da Encarnação na Escola Primária, que fora colega de turma de uma Maria da Encarnação no 3º ano do Liceu, e que, no Norte do país, nunca encontrara Encarnações, onde as mulheres antigas são Agonias e Dores ou quando muito Ascenções.

Aquele "vermelho de sangue", embora só prenunciasse um dia seguinte quente e sem nuvens, permitia-lhe conjurar que podia haver quem o julgasse resultante de um ritual religioso, daqueles em que se tira a vida a um ser para agradecer ou pedir um favor pois, desde tempos imemoriais, que o sangue das vítimas agrada aos deuses, seja o de um bode expiatório, de um inimigo ou o de um qualquer paisano que o acaso pôs no caminho de um sacerdote disposto a redimir os erros de um grupo, com a vida alheia.
À cota onde o sol se estava a pôr, podia ser um Maya fundamentalista, de Cancun ou de Kukulcán, a tentar aplacar algum dos novos deuses dos “Mercados” ou do FMI. Vá-se lá saber o que anda na cabeça de quem crê que o Além influencia o que se passa neste Mundo!

Estes pensamentos distraíam-no. Fizera-se noite e o estômago pedia um regresso a casa. No caminho estranhou que os Gregos não tivessem inventado um Deus para o dinheiro com atributos que obrigassem os crentes a resguardar-se do seu poder. Se o tivessem feito, talvez o caminho da História fosse diferente e os sacrifícios não fossem com sangue dos outros, mas com a riqueza do próprio e então, o pôr-do-sol seria dourado, prateado ou esverdeado se lhe abundassem as notas de 100 Euros.

Chegara a casa. O cão fez-lhe a festa do costume, o gato enrolou-se-lhe nos pés e a companheira estranhou o atraso. Nas notícias da TV viu os destroços de casas e gente a correr com crianças nos braços. Os gritos de Allahu Akbar lembraram-lhe as guerras entre portugueses e castelhanos, uns gritando por S. Jorge e outros por Santiago, enquanto se atiravam encarniçadamente uns sobre os outros. Nessa altura o Deus cristão devia estar tão baralhado como Allah está nos tempos que correm.

Jantou automaticamente sem notar que o cozinhado tinha cuidados “gourmet” e subiu ao quarto para lavar os dentes, quando, ao passar pelo Nkisi lhe decidiu perguntar se na terra dos Bakongos, também faziam distinção entre vermelho e encarnado.

A imagem respondeu-lhe, no mesmo tom ciciado, que não tinham grandes diferenciações das cores, mas que tinha ouvido, há minutos, que os pretos não querem que lhes chamem negros e não percebia o porquê.

Hipólito pasmou com a rapidez com que o Nkisi se tinha apercebido das nuances que o racismo pode ter na linguagem, e aproveitou para o pôr a par.
- Sabes a palavra “negro”, no mundo ocidental tem uma conotação desgraçada. É que negro também quer dizer infeliz, maldito. É a ovelha negra, o dia negro, a lista negra, o mercado negro, a peste negra, o buraco negro, a fome negra, o humor negro, o passado negro, futuro negro e por aí fora. Tudo o que é negro está relacionado com coisas negativas. Quando se quer valorizar não se diz negro. Diz-se preto. Come-se feijão preto, compra-se um carro preto, toma-se café preto e quando se ganha a lotaria ganha-se uma nota preta. Percebes?

- Percebo!, respondeu o espírito. - Podem ser mensagens subliminares, mas por certo que são eficazes. Depois é o medo que o “outro” possa trazer valores que ponham em causa os nossos, muitas vezes sem ter feito o mínimo esforço para o conhecer. É curioso como o homem confia tanto nos seus olhos!
- É um facto!, respondeu o médico. - Desde o século XVI que a Europa trata a África muito mal. Não só escravizou grande parte da sua população, como também destruiu a sua História e coesão social.

O Nkisi permaneceu calado. O médico pensou que ele estava a integrar estas informações e afastou-se sem lhe falar das quarenta e nove tonalidades de vermelho e das cinquenta de preto que a indústria das tintas cataloga. Despediu-se com um “Boa Noite!” e só depois se lembrou de que lhe queria perguntar se ele seria capaz de contactar com os deuses do Olimpo que se tinham deslocalizado. 
Mas não voltou atrás. Disse para consigo: "O que se não faz no dia de Santa Luzia, faz-se noutro dia!", e continuou. ... "Para alguma coisa hão-de servir os provérbios!".

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Lembranças do Olimpo (17)


Fora em Março que os deuses gregos lhe deram o último sinal de presença. Desde então passara duas ou três vezes pelo Lar, à procura de um qualquer movimento que o levasse a bater à porta, mas encontrara-a sempre fechada, as persianas corridas, nada de fumo na chaminé e o mato a tomar conta do jardim.
Malgrado a sua não fiabilidade, sentia saudades deles. Ainda que andassem desmotivados, mantinham-se dinâmicos. Um levava diariamente o carro do Sol através do imenso espaço, outro activava vulcões, outro tempestades e acorriam prontos onde acontecesse desgraça, na procura de almas para reciclar no Hades. De vez em quando, se queriam pôr à prova a soberba de alguém, vestiam-se de andrajos e pediam-lhe uma esmola ou então, se havia necessidade de ajudar na natalidade, engravidavam mulheres para que dessem à luz futuros heróis. Eram origem para os centos de histórias que estimulavam as mentes dos crentes a perseguir objectivos que os pudessem transcender e, nesse acto, desenvolviam as sociedades que os acolhiam.

Hipólito andava numa fase má, céptico da política nacional e internacional, com o sentimento de que muitas lideranças estavam entregues a atrevidos que utilizavam o Estado como trampolim para lugares de topo nos grandes negócios internacionais. Depois também não via solução para os conflitos, de ontem, de hoje e para os que se perspectivavam, por mais que os comentadores os tentassem explicar e os religiosos os lamentassem, porque as crenças no seu cerne, têm séculos, sem nada mais as valide que uma “Fé” construída em cima de “verdades irreais”, que só aquele grupo aceita, sejam elas a “Santíssima Trindade”, a revelação da “última palavra” de Alá a Maomé, ou as actividades do sem número de espíritos que pululam no Hinduísmo.

Para ele, a coexistência pacífica de várias religiões no mesmo espaço, era uma utopia, principalmente quando elas reclamam normas jurídicas e governativas. Os católicos tinham a vantagem da experiência da Inquisição e, pelo menos em teoria, entregavam a César o que é de César.

Nessa tarde fora ao Porto ver a ruína da casa onde nascera e o andamento da reabilitação do Centro Histórico da cidade. Estacionou o carro no Silo-Auto, foi pela Rua de Santa Catarina até à Batalha, desceu a Rua de Santo António, bebeu um fino na Cervejaria Sá Reis e subia a Rua do Almada quando, quase ao chegar à Praça da República, uma montra com arte africana o fez parar. Há anos que pensava numa peça para pôr em cima de um aparador, ao pé de uma pequena caixa de pau preto que um tio lhe dera de prenda de casamento e uma máscara daquelas, talvez desse continuidade ao quadro que lhe estava próximo, e que ele entendia como uma representação do Santo Graal.
No amontoado de figuras que cobria o chão, não encontrou o que procurava e foi quase à saída que o gerente, natural do Mali, na perspectiva de um não negócio, foi ao fundo de um baú retirar uma estatueta que o encantou. Era de uma madeira escura e não teria mais que trinta centímetros de altura. Representava um homem com os pés assentes numa tartaruga e um comprido gorro de tecido canelado a cobrir-lhe a crânio. Tinha às costas um grande cesto de vime, onde uns pequenos objectos chocalhavam. Mordia um pau, que segurava com ambas as mãos.
Era aquilo. Perguntou o que representava e ouviu a resposta num português “macarrónico” que ele continha o espírito de um poderoso falecido, que poderia ser usado pelos vivos para combater doenças ou pessoas que nos querem mal.
- Ora nem mais! É disto mesmo que eu preciso!, disse ao pagar, desvalorizando-lhe os supostos atributos. Desejou sorte para o negócio, paz para o Mali e despediu-se do Keita, que insistia em lhe vender um bronze do Benim.

Chegado a casa, com a mulher, reorganizou o recanto. Parecia que a estatueta fora feita para ali. Depois, jantou, leu um artigo médico numa das revistas que regularmente lhe chegavam a casa e, quando ia para o quarto descansar, junto ao aparador, ouviu um sussurro que lhe pareceu um “obrigado”. Incrédulo, pegou na imagem, como a medi-la, quando uma voz do seu interior lhe disse: - Fica calmo! Já vi que não sabes quem eu sou!
Hipólito, deu um passo atrás, e desceu as escadas em direcção à garagem, para que a conversa pudesse continuar sem interferências, enquanto lhe ciciava: - Espera um pouco. A minha mulher não vai gostar de saber que tu falas! Se queres ficar connosco, é melhor resguardares-te!
Chegados, o médico sentou-se ao volante do automóvel, pousou a estatueta em cima do tablier e, após um suspiro, continuou: - Agora podes falar! Mas sê breve que, se me demoro, ela desce a procurar-me!
A imagem fez com que a sua voz saísse pelos altifalantes do rádio:
- Antes de mais, queria reforçar o meu agradecimento por me teres tirado daquele lugar. Estive embrulhado montes de tempo e já estava a recear nunca mais ver um ser humano. Sou um Nkisi e, se assim o entenderes, posso cuidar do teu equilíbrio físico, energético e emocional. Estou ao teu inteiro dispor!

- Um Nkisi? Perguntou o médico. – Eu conheço o Nkisi Nkondi, mas tu não és nada parecido com ele. Ele tem o corpo coberto de pregos e lâminas.
- Esse é um primo meu, que é doutorado. Para onde vai, leva o currículo. Cada prego ou lâmina corresponde à resolução de uma disputa ou de uma vingança. Eu dedico-me a doenças mentais e a problemas sociais. Sou um Nkisi Luganbe.
- E não achas que os teus poderes estão circunscritos à África ... “profunda”?
- Nunca experimentei aqui na Europa, com os autóctones, mas creio conseguir contactar com os teus antepassados. Para além disso, transporto no cesto, garras de águia capazes de darem castigo aos malfeitores e de tratar doenças malignas.
- Ok! Retorquiu Hipólito. – No fundo, o que me estás a propor, é seres o meu Anjo da Guarda?
- Não sei bem o que fazem esses anjos, mas eu posso defender-te de quem te quiser fazer mal e pôr-te no caminho dos teus antepassados.

O médico não o queria desconsiderar. O espírito estava manifestamente desactualizado. Devia ter passado mais de cinquenta anos no fundo do baú. Pegou na imagem, colocou-a com bonomia sobre os joelhos e disse-lhe: - Não deves estar a par do salto exponencial que a ciência deu nos últimos tempos. Aqui no Ocidente, o modo como se vive alterou-se muito. A globalização levou à formação de grandes Multinacionais em todas as áreas, na indústria, no comércio, nos serviços e na religião. E a tendência é para aumentarem. Actualmente, em Portugal, estão a tomar conta do Serviço Nacional de Saúde, mas há muito que os Hipermercados rebentaram com os merceeiros e que o Vaticano domina o pensamento religioso.
O vosso Animismo ao imaginar forças divinas na natureza, numa árvore, numa gruta ou num qualquer recanto, não cumpre os objectivos do "Mercado". A Economia precisa que se façam muitos edifícios e de grande valor, que o diga o pai do Bin Laden que se tornou o segundo homem mais rico da Arábia Saudita, a construir mesquitas. Isto sem falar das peregrinações e do turismo religioso que estão em alta. O vosso mundo de agora está no folclore e nos museus etnográficos.

O espírito, após uma pausa, respondeu ressentido: - Pelos vistos dispensas os meus favores. Mas não te esqueças que é o passado que determina o futuro e que sem o apoio dos ancestrais, ele perde sentido.
- Oh meu caro Nkisi! , respondeu paternalmente o médico. - O passado, não existe! O que existe são versões sobre factos passados. E Ponto Final. O local onde se coloca o observador é determinante para a história que irá contar. Se está do lado de um vencedor escreverá o “passado oficial”, se estiver do lado dos perdedores, o mais certo é ser esquecido ou lembrado como infiel, herético ou takfir ou com qualquer outro epíteto que o desclassifique. Tu começaste a perder no dia em que os primeiros missionários portugueses pisaram o teu território. Depois foi a máquina da globalização a triturar o que não gera riqueza.
- Como tenho estado embrulhado, não tenho essa noção. Pelo que dizes, o mundo está muito mudado, mas “o espírito” de cada um, será que se transformou assim tanto? Será que alguém pode viver bem, onde quer que seja, sem equilíbrio físico, energético e emocional. Ora é isso que eu te propus ... a custo zero!

Hipólito, coçou a cabeça. Aquele espírito era resiliente. Não exigia templos e procurava mostrar a essência espiritual na natureza, para manter um percurso de vida sem sobressaltos. Iniciou o regresso ao quarto com a imagem, com uma proposta: - Não me importo que vivas connosco, mas só deves falar comigo e sem interferir com a actividade desta casa. Se um dia eu precisar de um anjo-da-guarda digo-te! Ok? Até lá observa! Sabes, há quem diga que a vida é um eterno retorno e que o que já foi, voltará na mesma ordem e sequência. Então pode ser que possas ter alguma vantagem. Mas o facto é que te comprei pelo teu aspecto exótico, sem considerar os teus eventuais poderes e gostava que a coisa ficasse por aí.

O Nkisi resignado, respondeu que ficava a aguardar novas ordens. Hipólito pousou-o delicadamente no seu local e despediu-se, pois no dia seguinte esperavam-no dezasseis horas de trabalho no Serviço de Urgência e, apesar de já haver menos turistas na cidade, a afluência mantinha-se acima da média.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Bicho pau



Pois é, meu caro! Estás habituado a comer coisas tenras, à socapa, mas ao apareceres sem aviso, devias contar com as “contingências” do momento.

Como sabes, todos temos problemas e só somos felizes quando os vamos resolvendo. E o tempo é importante pois, mesmo que as dificuldades sejam pequenas, se elas se arrastam, desgastam-nos. Ainda por cima, o dinheiro não resolve todas, que o diga a filha do Onassis que se suicidou aos 37 anos.

Mas adiante, que ontem era dia de dar conta da lagarta mineira. Coisa sem importância, que estava a aguardar disponibilidade para ir à Casa do Lavrador, com o Diploma de “Aplicador de Produtos Fitofarmacêuticos” e comprar uma carteira de Actara 25 WG,  para pulverizar as laranjeiras.

Como é que ia saber que tu lá estavas. Só pensei nas abelhas e, como os citrinos não estão com flor, fui por ali adiante, à confiança.
Assim, considero-te um “dano colateral”. Uma "vítima de fogo amigo"!
“É a vida!”, como diria o Guterres. E de nada te vale essa cara de pau. Agora, é andar para frente e ver se a dose que te calhou não chega a mortal.

Pensando bem, até hoje, tiveste uma boa vida, sempre de costas ao alto, a fingir-te ocupado em pensamentos profundos, sem nada decidir, safando-te dos lagartos e dos pássaros que, se te vissem, chamavam-te um figo pois, para bicho pau, estás bem nutrido.
Ainda por cima, tiveste sorte em ter dado comigo. Levei-te para longe do laranjal, para um recobro bem disfarçado no meio de uns gravetos, e nem um obrigado disseste. Mantiveste a cara de pau como se fosse eu o culpado. 

És um safado! Sei bem que quem bate não lembra e quem apanha não esquece, mas se vieres a recuperar, volta em paz e no tempo das abelhas, que eu finjo que não entendo o teu ressentimento e ficamos à conversa até ver nesses teus olhos o esboço de um sorriso.
Põe-te fino, mas não demais, senão desapareces! Tem cuidado com os químicos das hortas e com o fogo nas florestas, que tu para fugir nem asas de jeito tens!

Pensando bem, o melhor é emigrares. Arranjas um “casaco” quente, agarras-te a um licenciado recém-formado e vais ver que em menos de meio ano até alemão falas.

Até à próxima!

P.S.: Não te esqueças de respirar!!!

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Ryszard Kapuscinski


... Convencidos de que uma pessoa comunica connosco só através da palavra, falada ou escrita, nem reflectimos que esses são só um dos possíveis meios de transmissão de muitos que, na realidade, existem. De facto, dizem-nos muito a expressão facial, o olhar, os gestos das mãos, os movimentos do corpo, as ondas que ele emite, a roupa que se usa e a maneira como se está vestido e, ainda dezenas de outros emissores, transmissores, reforços e filtros que constituem o ser humano e a sua "química", como dizem os ingleses.
A tecnologia, limitando o contacto interpessoal a um sinal electrónico, empobrece e apaga aquela panóplia extraverbal que utilizamos no contacto directo, na proximidade, muitas vezes sem nos darmos conta. Ainda para mais, a comunicação não verbal da expressão facial e dos gestos mais subtis, é muito mais sincera e verídica que a língua oral ou escrita, e torna mais difícil mentir ou esconder a falsidade ou o embuste. Por isso mesmo, a cultura chinesa, pretendendo salvaguardar o pensamento do indivíduo, elaborou a arte da cara imóvel, uma máscara impenetrável e de olhar vazio, porque só assim, só atrás desse biombo, alguém podia, realmente, esconder-se.
...

Ryszard Kapuscinski in "Andanças com Heródoto"