- Dr. Fernando! Eu não volto lá abaixo. Estou farta de ser mal tratada. Fui à Radiologia perguntar onde se viam as metástases na TAC do doente, porque as imagens não me pareceram boas, e o radiologista quase me correu. Eu não estava à espera daquela reacção. Ele sempre foi simpático e disponível, pelo menos comigo. Mas desta vez, pôs-se a bater no écran a dizer que a TAC não tinha contraste, que não foi ele que a fez, que se lembra do doente por lhe ter feito uma ecografia, que estava crivado de metástases no fígado e que era a biópsia que dava o diagnóstico. Como se eu não o soubesse. Depois chegou mais gente para falar com ele e quando os viu, até bufava! Eu não tenho culpa de ele estar mal disposto!
- Lúcia! Não sei se ele estava mal disposto ou se estava com trabalho muito para além daquele que ele conseguia fazer. É que todos temos um limite e, se ele é repetidamente ultrapassado, começamos a ficar disfuncionais. Hoje aconteceu com ele. Amanhã acontece consigo. Eu entendo-o porque já passei por situações semelhantes.
Lembro-me de ter vivido uma situação parecida, mais ou menos com a sua idade. Agora, até dá para rir, mas na altura senti-me muito humilhado. Foi no Serviço de Urgência do Hospital de S. João, na década de 1980. Então, não havia a facilidade de agora em fazer análises. O Laboratório de apoio tinha um médico e um técnico, sem as máquinas informatizadas de hoje, em que se mete o produto de um lado e trinta minutos depois sai o resultado do outro. As análises eram efectuadas uma a uma, e tudo o que implicasse células, fosse um hemograma ou um sedimento urinário, era contado e classificado ao microscópio numa câmara de Neubauer. O analista era uma vítima. Nem tinha tempo para se coçar. Os tubos e os frascos caiam-lhe a toda a hora no balcão de entrada, sem contar com aqueles que, como eu, lhe entravam pelo laboratório adentro sempre que uma demora mais prolongada ou uma emergência os impelia.
Foi numa dessas vezes, em que eu já o sabia atormentado de trabalho, que lá entrei, por uma segunda ou terceira vez, para lhe pedir um sedimento urinário para um doente a quem não conseguia pôr um diagnóstico. Eu podia ter mandado entregar o produto, mas quis lá ir pessoalmente para justificar a análise e ele não ficar com a sensação de eu não o estar a respeitar, sobrecarregando-o.
Mas apanhei-o já desesperado. Ele mal levantou a cabeça do microscópio e me viu com o frasquinho de urina na mão, fulminou-me com o olhar e, descontrolado, soletrou, enquanto me tirava o frasco e a requisição da mão:
- Sabes, pá! Isto aqui é um LA-BO-RA-TÓ-RIO! ... Não é um MI-CTÓ-RIO! ... Percebes?
... e eu, que na altura era um interno dos primeiros anos, meti o rabinho entre as pernas, e nesse dia não voltei lá mais. Só na semana seguinte é que lá fui, de mansinho para me justificar, bem depois de garantir que o homem estava no seu normal.
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