quarta-feira, 13 de outubro de 2010

As Histórias do meu avô - 2




Na sequência da visita aos seus "Ímpetos Naturais", atrevo-me, mais uma vez, a rescrever um dos seus textos, que fazem a História da época e do lugar, e onde as "necessidades da vida", fazem agruras.


O Filho daquela mãe


Nesse ano o verão lembrara-se de levar nas suas asas, para paragens mais altas e distantes, as águas do Tejo, deixando no seu leito um Sahara dardejante de mica, recortado por uns regatos, onde os barcos cochilavam há três meses.
Os barqueiros, cansados de tirar cotão dos bolsos e do ar franzido do tendeiro, andavam de nariz no ar, a ver a direcção das nuvens, fartos de rogar pragas ao tempo e à vida.
- “Que chovam raios e coriscos! Vamos ter chuva por uma pá velha!”, blasfemou, nesse dia, o João da Barca, esfregando as mãos e fazendo tremelicar a barbicha branca, à passa-piolho, ao ver ao longe um fuzilar de relâmpagos a rasgarem o negrume, quais girândolas de foguetes no dia da procissão da padroeira, e, em poucos instantes, o campo de concentração onde os barcos jaziam insulados, foi envolto numa capa líquida ondeante e espumosa.
Por isso, naquele primeiro dia de Novembro, apesar de santo, havia reboliço nas margens do rio e nas ruas da pacata vila, com as tripulações a formigar entre as casas dos arrais e os barcos, arqueadas pelo peso das fateixas, remos e varas, fazendo retinir nas calçadas as correntes, como se uma leva de grilhetas fosse a caminho da galés.

O arrais Jacinto Ferreira, na azáfama dos preparos, atirou com o saco da roupa para o convés, e cruzou os braços sobre o peito calejado da vara, ao ver aquele embrulho no cimo da proa do seu varino. Aproximou-se, como que a responder a um chamamento, e susteve-se ao desdobrar a serapilheira, com o ténue choro de uma criança. Depois, elevou-a nos antebraços, deu-lhe um leve balanço como que a pesá-la, e rouquejou:
- "Quem será a desavergonhada?", e, enquanto os outros barcos já iam cortando as águas, bolinando, guinando ou desfraldando as vermelhas velas triangulares, enchendo o rio de alegria, o mestre Jacinto procurava a margem onde as lavadeiras se juntavam.
- "Mas quem seria a marvada da mãe?" interrogou para o céu, de mãos postas, a Tuleta velha, ao ver o enjeitado todo nu embrulhado num farrapo.
- “Deus que o marcou, algum defeito lhe achou!”, murmurou docemente a Luísa Godinho, ao pousar os lábios ressequidos na grande mancha, como um girassol, no peito do recém-nascido.
E começou o falatório. Primeiro com a calúnia a pingar aqui e além, para depois se concluir que o frete viera de longe, e a atestar, lá estavam bem visíveis as ferraduras do animal que o conduziu, já que ninguém iria dar de beber a cavalo ou burro daquela água lodosa.
...

João Cavalo, vingara sugando as tetas famintas de uma pobre mulher. Aparecera na vida para cobaia da rapaziada do pião. Triste e tímido, filho das tristes ervas, ficava-se a coçar com as sujas unhas a grenha encarniçada, quando qualquer pícaro fazia dele bode expiatório, recebendo os sopapos sem saber a quem agradecer os benefícios.
Aos dez anos foi moço do arrais Joaquim Russo, que o fez dançar as escovinhas do fandango com as cordas do leme e lhe pôs asas nos pés para a vida de moinante, hoje à gandaia do rio, amanhã de servente de pedreiro, pastor de cabras, moço de cavalariça, assim foi andando até lhe penderem das faces dois cachos de uvas de suíssas alaranjadas.
Todos os seus companheiros de infância recebiam das gerações mais novas o tratamento de senhor, só ele era o João. O João Cavalo, para aqui e para acolá. O humilhante tu, na boca de velhos e fedelhos, causava-lhe arrepios dolorosos. O recalque não podia ser maior quando o bonifrates do funileiro, recém-chegado, com os seus pedantes cabelos frisados e a sua boquilha de palmo, o tratou depreciativamente por tu.
- “Em que barca passou você comigo, seu papo-seco das panelas?”, e em menos de um credo, depois de uma estraloiçada dos demónios, a latoaria ficou transformada numa loja de Pim-Pam-Pum, e a cabeça do artista num arremedo de Santo Cristo.
Após a refrega, o pobre do João, convencido de ter assassinado o mestre latoeiro, meteu á deriva por montes e vales, com o coração a chocalhar ao mais leve crocitar de corvo, ou ao escorregar de uma sombra, no temor de lhe aparecer o regedor - mestre Cristóvão, ferreiro, que não era bom de se assoar.
Dois dias depois apareceu, por um bambúrrio, no monte do Paivó, no âmago da charneca. Ali só cigano poderia dar notícias dele. Diziam as más línguas ter ali existido, em tempos remotos, uma estalagem, valhacouto das quadrilhas do pinhal do Escarópim, e que no sítio onde agora era o curral das cabras, saíam lumes pelas frestas, que mais não eram que as almas dos enterrados naquele solo bafiento, depois de assassinados e roubados.
Aquele monte fora um baldio sem nome, até constar que a actual proprietária, uma sexagenária ainda fanchonaça, era um fruto incestuoso do seu avô, e toda a gente lhe passou a chamar o monte do Pai-Avô.

Já lá iam quatro anos, e o João Cavalo caíra no monte como sopa no mel. O abegão da casa, ali nascido e criado, estava um cangalho, cartacego e trôpego, e o Sr. João, depois de guardador de porcos, ocupara-lhe o lugar. Mas não ficou por aí. O Rodela, marido da velha, ex-guarda municipal, fanfarrão e zangarilhador de pau, apanhara tal coça na feira de Montargal, que fora desta para melhor, e quem melhor para o substituir senão o Senhor João? Serviçal como ele, nunca a lavradora tivera. Era pau para toda a obra, e muito principalmente para fazer uma caldeirada à fragateira, bem apimentada, que aquecia e regalava a alma da patroa. Estava como peixe na água. Casar com ela, foi um passo natural, apesar da grande diferença de idades.

Quis o destino, que aquela volta na vida tivesse o fim no dia em que uma vaca, recentemente adquirida, num repente, deixasse a cria, para lhe furar os intestinos, deixando-o agónico depois de muito espezinhado. Quando nos primeiros socorros, foi necessário rapar a floresta de cabelos louros que lhe barravam o tórax, e surgiu a mancha roxa como uma flor de girassol, a lavradora ficou imóvel, sem descravar os olhos do seu peito e, incrédula, questiono-o:
-“Tu não atiraste o menino ao rio, João!?”
- “Não! Não tive coragem! Deixei-o na proa de um barco!”, disse, enquanto as pálpebras roxas, lhe pesavam sobre os olhos vitrosos e os últimos sons da vida se filtravam em direcção ao céu.

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