Conheço-a há mais de dez anos. Talvez, nessa altura, fosse uma mulher vistosa, mas a esta distância, lembro-me mais das suas análises e das dificuldades no tratamento, que do seu aspecto físico. Embora habitualmente venha arrumada, topo-lhe na pele e nos modos nuances que me fazem lembrar o dia em que veio à consulta com a voz entaramelada pelo vinho. Tem ainda muito caminho a percorrer, e a esperança de ir a tempo de encarrilar a vida.
É mãe solteira de uma gravidez diagnosticada aos seis meses, quando se queixou de “uma cobra a rabiar-lhe na barriga”. Depois surgiram os “ai meu deus!” com as suas doenças agravadas pelas do companheiro, também ele um desgraçado às voltas com dúzias de comprimidos.
A irmã, que usualmente a acompanha, faz de mãe e lamenta-lhe a falta de regra. É mais nova e mais forte de carnes. Brilha-lhe o ouro no pescoço e nos pulsos, principalmente quando projecta a voz pela sala, contando-lhe as misérias. –“Não tem juízo, esta minha irmã! Olhe Dra.! Eu pago-lhe a mercearia, para ela andar bem alimentada. E a conta cada vez é maior, por causa do vinho! Tem jeito?”, questiona-me, enquanto a fixa de olhos no chão. Às vezes, vem só ela para levantar os medicamentos. -“A minha irmã está com vómitos, Sra. Dra.! Voltou a beber! Anda perturbada por ter de voltar à escola, para lhe darem o rendimento mínimo.”
Mas hoje vem a acompanhar um homem de 72 anos à primeira consulta, porque “ele não conhece as voltas do Hospital”.
Está toda "produzida". Salto alto, casaco de couro azul cobalto, pulseira de ouro a deslizar até à mão, um traço forte a rasgar o olho e com um despacho que eu nunca lhe conheci. Sentam-se.
O computador informa: ...teste HIV positivo, pedido porque … “o senhor anda com uma mulher de maus comportamentos!”.
Peço para ela aguardar lá fora, para dar lhe privacidade e pergunto por doenças sexualmente transmissíveis, e mais especificamente por infecção pelos vírus da SIDA.
Fica atrapalhado. Fala da disponibilidade dela para o arranjo da casa, já antes da mulher lhe morrer, e de o terem avisado que ela não era de confiança. Mas nunca teve doença “nas partes”. Lembra-se de um "esquentamento" em Lisboa, causado por uma ida descalço a uma sanita, ... há muitos anos.
Esclarecida, continuo. Dou as orientações e despeço-me.
Mal a porta se fecha, logo se abre para ela entrar de lágrima no olho, preocupada por se sentir culpada por aquela doença.
-“Sabe senhora. Dra.! Aqui há uns tempos, quando ele foi operado às varizes, eu fui lá a casa fazer-lhe os pensos e, com certeza, passei-lhe a minha doença ao sangue!”
- “Só pode ter sido, Judite! Só pode!”, respondi.
Vegetação invade capela do século XVI
Há 6 horas
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