domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Fiel


de Guerra Junqueiro

Na luz do seu olhar tão lânguido e tão doce,
Havia o que quer que fosse
D'um íntimo desgosto:
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza oceânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada:
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.

Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boémio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe: - "O teu destino é quase igual ao meu :
Eu sou como tu és, um proletário roto,

Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."
No céu azul brilhava a lua etérea e calma ;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d'uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa

A eloquente mudez dum grande coração ;
E disse-lhe :
-
"Fiel, partamos para casa :
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão".
E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.

Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores;
Quando até lhe acudia às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp'rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz ;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmuravam-lhe:
- Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente:
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente!
E
u devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p'ra te buscar;
Mas moravas tão alto!
E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!..."
E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador;

A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor!
Era feliz.
O cão Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas ai! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.

Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d'outro cão.·

E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés :
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.
Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver ;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência:
"Ainda por aqui o sórdido animal !
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."
E partiram os dois.

Tudo estava deserto.
A noite era sombria ; o cais ficava perto;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.
Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh'a na coleira,
Friamente cantando uma canção d'amor.
E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si : "É o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever:
Foi ele que me abriu um dia a sua porta:
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."
Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.
E ao recolher a casa ele exclamava irado: "
E por causa do cão perdi o meu tesouro!
Andava bem melhor se o tinha envenenado!
Maldito seja o cão!
Dava montanhas d'oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."

E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta!
Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor!

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