Qualquer modo de ver a realidade é necessariamente limitado.
Estas são algumas das histórias que definem o meu olhar.
terça-feira, 23 de dezembro de 2025
Jantar de Natal
Chega o Natal e a festa da empresa é pretexto para o reencontro com aqueles com quem partilhámos horas boas e más, em território neutro, distendido, onde o vinho cumpre a antiga função de dissolver reservas e encurtar distâncias. Só depois chegam a comida e a dança. Para mim, que já estou aposentado, a ordem é esta.
Gosto de rever os antigos companheiros de labuta, os amigos e até aqueles com quem tive desencontros. O tempo tudo alisa: os montes, as arestas, as mágoas. Quem não aprende a esquecer acaba prisioneiro do que foi e raramente alcança a serenidade.
Nem todos, porém, se reconhecem neste meu estar mais recolhido. São agora raros aqueles para quem a festa ainda guarda ecos dos tempos da escassez e se atiram à comida para além do limite da prudência. Para outros, a festa também é palco para exibir a juventude — ou o que dela sobrevive — ornada de lantejoulas e músculos disciplinados em ginásios, em coreografias que oscilam entre o vigor e a sensualidade estudada.
É sobretudo o feminino que aposta nessa vertente. Conversa, petisca, dança, deixando-me, observador discreto, fora daquele bando de estorninhos humanos, movendo-se em uníssono ao som das músicas da moda.
Aquela ali mexe-se bem! A outra já acusa alguma rigidez! Aquela anda fora do compasso, atrasada uns milissegundos! O melhor é aquele que parece comandar o grupo: gestos largos, precisos, sem perder o ritmo ao virar-se. Já vi danças mais exigentes no YouTube, mas essas pertencem a outro campeonato.
E a mente continua, imparável, a classificar, comparar, medir.
Quando me dou conta, é quase meia-noite. Saio para a noite fria a pensar na fisiologia do movimento.
Há no cérebro mecanismos silenciosos que explicam aquela harmonia. Os neurónios-espelho ligam percepção e acção: disparam quando fazemos um gesto e quando vemos esse mesmo gesto no corpo de outro. Permitem compreender o movimento alheio sem raciocínio consciente, como se o corpo pensasse antes das palavras.
É por eles que aprendemos observando, que afinamos gestos complexos — na dança, no desporto, na cirurgia. É também por eles que sentimos com o outro e compreendemos o outro, que nos coordenamos em grupo, que nos movemos juntos sem nos tocarmos.
Os bailarinos, mestres dessa gramática corporal, ativam intensamente este sistema. Não têm mais neurónios-espelho que os outros; têm-nos melhor ligados, mais eficientes, mais refinados. Um exemplo de neuroplasticidade dependente da prática.
Os Autistas têm uma disfunção dos neurónios-espelho.
Os estorninhos também dançam no ar em coreografias de espanto, mas seguem outra lógica. O seu ballet nasce da rapidez do olhar, do ajuste automático à distância e à velocidade dos vizinhos. Não há intenção compreendida, nem simulação interna do gesto alheio: apenas uma ordem que emerge do caos.
Nos peixes, reunidos em cardumes, entram em jogo os sensores de pressão e vibração da linha lateral. Perceção e ação estão acopladas, mas sem espelhos interiores.
Volto para casa com esta ideia simples: entre a dança dos homens e a dos estorninhos e cardumes, há uma diferença subtil, mas decisiva. Uns movem-se juntos porque se veem; os outros porque, de algum modo mais fundo, se reconhecem — sobretudo quando basta um copo a mais e uma música repetida para lhes criar a ilusão de que andamos todos no mesmo ritmo.
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