sábado, 28 de fevereiro de 2015

Eu sou do tempo



Dos automóveis pelo eixo da via.
Dos cantoneiros a cumprimentar os carros que passavam.
Dos homens de chapéu.
Das mulheres não usarem calças nem tomarem a pílula.
Do telegrama para notícias de emergência.
Dos pombais para o arroz de borrachos.
De não se servir cerveja sem acompanhamento.
De comer pinhões com chave para os abrir.
Do fazer a barba com navalha.
Do banho semanal.
Dos burros de carga e das carroças dos ciganos
Da ceifa e da monda à mão.
Dos ferradores no centro da cidade.
Das licenças de isqueiro e dos cigarros avulso.
Dos cadernos de duas linhas e do papel mata-borrão.
Das cartas-de-amor e das contas em papel.
Da lei a proibir andar descalço na cidade e do penico no quarto de dormir.
Das reguadas e dos puxões de orelhas.
Das vendas a granel e dos cartuchos nas mercearias.
Dos urinóis públicos de ferro no centro das cidades.
De ser o menino Jesus a dar as prendas do Natal.
Dos bebés virem de cegonha de Paris.
Da verdade só ser uma e da Rádio Moscovo não falar verdade.
Da Emissora Nacional e do Rádio Clube Português.
Da paralisia infantil e das mortes por apendicite.
Dos cigarros "não fazerem mal".
Do beber vinho ser dar de comer a um milhão de portugueses.

Tão depressa que o tempo passa

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Caracóis

Pouco passava das duas da tarde. Na aridez amarela da parede do viaduto, uma pequena mancha castanha sobressaía imitando o mapa do Brasil. Mais à frente, outras mais estreitas e menores pontuavam-na, quais caravanas de dromedários dirigindo-se para o céu que a linha do comboio limitava. Intrigado, ... parei!
Naquele deserto vertical, um grupo de jovens caracóis, concentrava-se sob o mando de um outro, mais avantajado. Seriam bebés num infantário? Adolescentes a preparem-se para uma qualquer tropelia numa horta? Um reunião de caracóis anões a planear uma saída para o Estado Islâmico?
Apurei o ouvido. ... Silêncio. ... Podia ser uma creche com boas educadoras, a respeitarem as normas da sesta, o que é fundamental para que os pais confiem, na esperança do desenvolvimento cognitivo da  prole, mesmo sabendo que nos primeiros tempos de vida não há socialização com os pares e que só querem carinho, aconchego, colo e mimo. Mas esta parede, tão à mercê de quem passa, não me parece o melhor local para uma creche que dê garantias de que, mais tarde, os jovens não venham a sofrer de doenças psicossomáticas autopunitivas. Fico uns minutos à espera de um pequeno ruído, mas o sossego é tanto, que desisto e continuo pelo passeio que me leva a casa.
Na parede, outros ajuntamentos vão aparecendo. Agacho-me para que o próximo não se aperceba da minha presença, confiante na sua surdez e fraca visão. Faço passo de caracol para me disfarçar e poder visualizar a sua linguagem gestual. 
São hermafroditas insuficientes e podem-se julgar mais por isso. Ser umas vezes feminino e outras vezes masculino, não é para todos. São experiências que só acontecem aos deuses e é provável que se tenham deixado levar pela vaidade. Páro a menos de dez centímetros e apercebo-me de uma cavaqueira animada. Falam das lesmas. Dizem que são vaidosas e não fiáveis. Que se esticam demais para o que valem, que são umas descaradas que andam nuas e que só saem à noite. Devem ser adolescentes a autopromoverem-se.
Aqui não aprendo nada. O grupo lá atrás deixou-me intrigado. Era maior e mais heterogéneo. Havia uns grandes e outros pequenos. Vou para casa e volto lá ao fim do dia.

São seis da tarde. Caminho devagarinho até chegar a dois metros deles. Depois, progrido deitado sobre o estômago, a imitá-los, e imobilizo-me disfarçado na paisagem. É o que eu esperava. Estão lá todos. Fosse um caracolário e os pais já os teriam vindo buscar. Estão mais activos. Falam de búzios e de caramujos. Dizem cobras e lagartos deles. Que passam metade do tempo a tomar banho e que não precisam de se deslocar para comer, que o mar lhes leva tudo. Riem-se dos burriés por o seu nome ser também usado para nomear os “macacos do nariz”, enquanto o deles se usa para o cabelo enrolado. Deve ser uma “concentração tipo motard”, daquelas em que só há actividades nocturnas e de dia se dorme, uns por cima dos outros, meios bêbados. Aqui também não se aprende nada.


Estes caracóis para além de indolentes, são uns invertebrados convencidos. Bem merecem levar com o bacon, o alho, o azeite, a cebola, o louro e os orégãos em cima, sem esquecer o picante e o sal q.b..

Bem fiz eu em dar cabo deles, na minha horta.



domingo, 15 de fevereiro de 2015

Diego Cigala


No te puedo comprender
Corazón loco
No te puedo comprender
ni ellas tampoco
Yo no me puedo explicar
como las puedes amar
Tan tranquilamente
Y yo no puedo comprender
Como se pueden querer
Dos mujeres a la vez
Y no estar loco
Merezco un explicación
¿PR que es imposible seguir
con las dos?
Aquí va mi explicación
A mi me llaman sin razón
Corazón loco
Una es el amor sagrado
Compañera de mi vida
y Esposa y madre a la vez
y La otra es el amor prohibido
Complemento de mi alma
Y ala que no renunciare
Y ahora ya puedes saber
Como se pueden querer
Dos mujeres a la vez
Y no estar loco

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Finalmente!


Iniciou-se, há uma semana, a construção da escada rolante que irá unir a Interface situada no Piso 0 do Centro Comercial Estação-Viana à entrada do Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo.
Há anos que a edilidade e a direcção deste hospital procuram solucionar o problema que esse grande desnível causa aos doentes que, chegando àquele terminal de comboio ou de autocarro, procuram os serviços do hospital.
São os idosos, e particularmente, os cardíacos, os respiratórios e os que sofrem de doenças do foro ortopédico (que actualmente se obrigam a usar o Táxi ou os serviços de vizinhos), o alvo desta intervenção, que muito se deve à recente-nomeação do Dr. Marques Mendes para Presidente do Conselho Consultivo da ULSAM.

Foi dada carta branca ao engenheiro da ULSAM (que rapidamente se reuniu com dois enfermeiros e dois médicos, com a devida assessoria de um desenhador), para planear a obra, que agora se inicia.
As obras provisórias na curva de acesso ao portão principal, são o primeiro passo, pois o orçamento não permite a sua execução de uma assentada.
À semelhança do que acontece, há décadas, dentro das paredes deste hospital, vai-se fazendo o que se pode e com a prata da casa, como já aconteceu com a Consulta Externa e as múltiplas acções efectuadas sobre o Serviço de Urgência, onde se incluiu um Gripanário (de curta duração) no local onde agora está sediada a Cardiologia.

Os menos doentes terão, já a partir do fim do ano, um ligeiro alívio nos últimos metros daquele percurso, já que a construção da totalidade das escadas rolantes só está prevista para quando o Estado pagar a dívida pública à "Troika".

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

"Pélfie"


Para quem gosta de se deixar por mãos alheias, as selfies são a solução. Fotografamo-nos e estimulamos os nossos amigos das redes sociais a comentá-las. 
Primeiro eram só os rostos, depois os rostos com paisagens exóticas em fundo, mais tarde surgiram as felfies – ou farmers selfie, a lado de um animal doméstico e as “Belfies” ou 'bottom selfies' – onde umas beldades famosas nos presenteam com um retrato das suas nádegas.

Hoje decidi inventar as “pélfies” – uma selfie dos pés “à portuguesa”, num adeus sentido a umas botas, a fazer lembrar as aulas de Canto Coral da minha Juventude:


Minhas botas, velhas, cardadas
Palmilhando léguas sem fim
Quanto mais velhinhas e estragadas
Tanto mais vigor sinto em mim
Pelos vales, montes e montanhas
Passo lesto, com afoiteza
Deus nos guia, Deus nos acompanha
Descobrindo a natureza

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Bricolage



Podia chamar um electricista para os colocar. Podia!... Mas não era a mesma coisa!
Gosto de me sentir capaz de resolver os problemas da minha casa. Uma lâmpada que não dá luz, uma torneira que não veda, um autoclismo que não funciona, uma pinga que cai no soalho e não se sabe de onde vem.
Houve tempo em que pagava esse trabalho. Chamava o “artista” e ia à minha vida, que os afazeres eram muitos. Muitas vezes dei com profissionais de segunda que deixaram o trabalho mal feito e uma avaria noutro lado. Um, chegou a responder, quando o questionei sobre o lixo que deixou espalhado pelo jardim - “são as migalhas que o pão deixa!”
A vida foi-me dando horas aos dias e, de há uns tempos para cá, faço a manutenção da maior parte das coisas da casa, e só chamo quando a obra é de monta. Tenho a referência de dois ou três bons profissionais, mas têm tanto que fazer que me inibo de os chamar para coisas menores.
Ando agora a substituir os candeeiros no jardim, que o plástico dos velhos não aguentou o sol, os encontrões dos cães, as boladas do meu neto … “desculpa avô, foi sem querer!”, nem as múltiplas colagens a que foram submetidos, que a fábrica “já não tem esse modelo”.

Um à hora. Rever o apoio e pô-lo horizontal e seguro. Cortar e descarnar fios, fazer novos furos no granito (que é do mais duro), ligar e isolar fios, pôr lâmpada e ver se está bem. Depois, pegar nos alicates, nos parafusos, nas chaves de fenda, no berbequim, nas brocas, nos fios eléctricos, nas buchas e passar ao seguinte.

Por fim, medir-me: "Ficou melhor do que o que estava!"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Secularismo

(clique na imagem para a aumentar)

Nada contra.  As religiões nascem, crescem, evoluem e, se não se adaptam e integram o conhecimento existente  ... morrem.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O santo


52 anos. Cerca das 12:30h, quando cozinhava, sentiu dorsalgia esquerda, que rapidamente se tornou intensa e se acompanhou de náuseas e vómitos. Invocou o Santo Albino, à semelhança do que habitualmente faz, quando tem cólicas renais. Por não ter obtido melhoria, recorre ao Serviço de Urgência.
- Oh, dona Ester. Tem a certeza que desta vez também é uma pedra no rim?

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Steinert



Tem 45 anos e um atraso mental associado a uma miopatia congénita. A irmã, sofre do mesmo. O pai faleceu há 6 anos. A mãe, há 6 meses. Tem primos, mas só uma, que vive a 5 minutos, se disponibilizou para os ajudar. Ficam os dois na APPACDM durante o dia. À noite ela vai para casa da prima e ele dorme lá de segunda a sexta. Sábado e domingo vão para casa e umas senhoras vão fazer-lhes companhia,  que eles não gostam de estar sozinhos. 

-Sr. Dr.! Por favor interne-o! A APPACDM, assim doente, não o quer lá , e eu não posso ficar com ele neste período. Eu sei que é uma gripe, mas depois de ter falado com o médico de família, só aqui vi solução. Eu tenho dois filhos comigo, mais a irmã dele às noites de semana. Não tenho nem casa nem condição para o receber!

E correm-lhe grossas lágrimas pelo rosto. Ele, mantém o olhar escondido por baixo do boné e ... tosse.