terça-feira, 31 de março de 2015

Até quando, ó confidencialidade, viverás?


Rosalvo Almeida
As notícias sobre a morte da confidencialidade são manifestamente exageradas mas… o seu fim parece estar perto. Sim, hoje muitos cidadãos sentem que as suas vidas estão demasiadamente sujeitas à vigilância de estruturas mais ou menos vagas, mais ou menos assustadoras. Há mesmo quem, reconhecendo as vantagens de não perder tempo nas portagens das autoestradas, receie que alguém, não sabe bem quem, saiba por onde andámos no dia tal do determinado mês.
Fala-se, agora, muito de cidadãos VIP bafejados pela sorte por, havendo quem espreite os seus rendimentos e a sua situação fiscal, vêem forma de perseguir os curiosos. O escândalo resulta da óbvia surpresa: só as pessoas muito importantes beneficiam desse mecanismo!? O direito ao sigilo não é global?
Pois é aqui que está o busílis. Muitos pensam que a digitalização das informações pessoais é incompatível com a confidencialidade – o sigilo acabou, nada a fazer!… Não se trata de nos resignarmos à existência de piratas informáticos – é conhecido que, por mais barreiras e fechaduras, os ladrões sempre se mantêm capazes de as abrir. Para esses, com maior ou menor eficácia, temos já as polícias e a Comissão de Protecção de Dados Pessoais para nos ajudar e proteger.
Contudo, todos o sabemos, o grande problema é o da bisbilhotice, o da curiosidade gratuita, praticada por anónimos a coberto das suas funções naturais. Veja-se o caso dos registos de saúde nos hospitais. É gritante a facilidade com que qualquer pessoa arranja um amigo que trabalha lá para saber o diagnóstico do vizinho que namora com a prima da sua cunhada. É espantoso como todos os colegas de um profissional de saúde que foi internado acompanham a sua evolução e, quiçá com simpatia, se agradam com as boas notícias ou choram as fatalidades, mesmo que o doente queira manter reserva da sua situação. Também é fantasticamente fácil que alguém consiga aceder a dados de saúde ou outros com finalidades perversas em conflitos judiciais ou negócios.
O combate à perda de confidencialidade dos dados pessoais parece assim uma tarefa difícil e só capaz de êxito se se reforçarem as barreiras, duplicarem as fechaduras e criarem torres de marfim expugnáveis. Ora, não podemos esquecer que o acesso a dados pessoais também é muitas vezes do interesse dos seus titulares – no caso da saúde isso é evidente. Como compatibilizar o segredo com o acesso?
A solução é conhecida dos técnicos informáticos (ver Luís Antunes e colaboradores, Departamento de Ciência de Computadores, Faculdade de Ciências, UP) e só não é aplicada globalmente pela enorme incompetência e inércia dos decisores máximos. A solução não resolve tudo mas, seguramente, desencoraja e afasta a grande maioria dos curiosos. Trata-se, aliás, de uma recomendação já feita no Parecer n.º 60/2011 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (www.cnecv.pt) sobre informação em saúde e registos informáticos.
É forçoso que, junto de informação em saúde, como junto de informação fiscal ou outra sensível, relativa a todos nós, «em caso de acesso indevido aos registos de uma pessoa, surja um alerta para a inconformidade da pretensão, mantendo embora a possibilidade de acesso desde que seja preenchido um campo onde se fundamentem as razões para aceder nessas circunstâncias e se reconfirme a senha pessoal». Ou seja, se alguém se aproxima do que não deve, só pode avançar se se identificar de novo, salvaguardando-se assim os acessos úteis e responsáveis. Só “parte o vidro” quem precisa mesmo.
 no jornal Público de 29 de Março de 2015

sábado, 28 de março de 2015

Segurança e Confiança

Luigi Cherubini: "Requiem in do minore"



Ainda a digerir o “inconcebível” acidente com o Airbus A320 da Germanwings, que na 3ª feira passada levou 150 pessoas para a morte, dou-me a pensar na 75ª Lei de Murphy, que diz que: “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”.
Quem pode garantir a bondade do que se passa na cabeça de cada um, e partir do princípio que ele actuará como sempre o fez, sem que nada lhe possa alterar o comportamento?
Este pensamento é de uma inocência, também ela “inconcebível”!
Eu, que já vi locutores de rádio a fazer programas com extensos tumores cerebrais, médicos bipolares, em fase maníaca, a operar, e profissionais que se deveriam manter altamente diferenciados, a degradarem-se ao ponto de actuarem a um nível mais que básico, sem que os seus superiores hierárquicos os tentassem conter, nada me espanta.
Este caso, choca mais por questionar toda a segurança das viagens aéreas. Felizmente que se deveu a um louco não devidamente identificado, porque, de outro modo, muito mais tinta iria correr, mesmo quando agora se tenta a interpretar, à mesma luz, o acidente de 8 de Março de 2014, do voo 370 da Air Malaysia, com 239 pessoas a bordo.
Mas quando os casos são distendidos no tempo e os maus resultados das disfunções não são tão bruscos, tudo se complica. São exemplo o erro médico sistemático, decorrente de doença ou da sua degradação moral, ou o erro pelos mesmos motivos em magistrados, engenheiros e outros decisores, sejam eles políticos ou não, de onde advêm consequências que podem até ser mais graves para quem o acaso colocou na sua esfera de influência, que a destes acidentes.
Uma sociedade evoluída tem a obrigação de identificar e tomar as devidas atitudes para proteger a população dos efeitos nocivos de quem perdeu as qualidades para o exercício das sua funções, salvo quando há uma aposta férrea na 115º Lei de Murphy que diz que: “Não há melhor momento do que hoje para deixar para amanhã o que você não vai fazer nunca”.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Publicidade ao tabaco há 60 anos




Histórias do tempo em que o tabaco não fazia mal, em que as enfermeiras usavam quepe, iam buscar os registos médicos e serviam café aos senhores doutores.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Notícia do dia


Foi ontem, pelas 17:00h. Subitamente, um carro pára na barra de saída do parque de estacionamento e, por não lha abrirem de imediato, o pendura sai e, depois de saltar agilmente as vedações do parque infantil, rebenta com a porta de entrada dos funcionários do Hospital, para agredir quem lhe não obedecera e já se escondera a sete chaves na sala de controle.
Temeu-se que o atacante fosse um jihadista do Estado Islâmico, um checheno motivado por um extremismo político, um pequeno accionista do BES incapaz de pagar os seus compromissos, um seguidor dos métodos do Major Valentão, ou até um fervoroso adepto do FCP tentando-se vingar sobre o Macedo da derrota da 13ª jornada do campeonato nacional, mas a fuga imediata ao ouvir o "Oh da Guarda!", acalmou os espíritos mais inflamados, pois estas hipóteses deixaram de ser consideradas.
O caso foi já entregue à polícia, juntamente com os registos das imagens das câmaras de video-vigilância, aguardando-se o resultado das diligências, que agora se dirigem mais a alguém fugido do internamento de psiquiatria.
Mas, desta vez, para remendar o vidro partido, não se deitou mão nem a lençóis ou cobertores, nem ao adesivo que, nesta instituição, sempre serve todos os propósitos, do botão ao vedante universal. O material usado (a fita adesiva Tesa e sacos do lixo para diferentes materiais) e o design, têm inspiração na pintura abstracta nacional.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Dia do Pai


Hoje, porque é o teu dia, andei de bicicleta, comprei uma verruma, mudei uma lâmpada, plantei morangos, manjericão, tomilho-limão e uma buganvília (sim, não esqueci de arejar a terra!). Não matei nenhum caracol porque fugiram do meu caminho. Quando cheguei a casa pus o Sérgio Godinho a cantar e comi pão com queijo das ilhas e prometo não acabar o dia sem comer um quadrado de chocolate de culinária com um dedo de whisky.
Ah, não contes à mãe, mas ainda não foi hoje que tomei a vacina do tétano (ainda só tem um ano de atraso). Talvez um dia ganhemos coragem e iremos ao Centro de Saúde juntos.
(ai... as coisas que eu não podia ser sem ti!)


sábado, 14 de março de 2015

Foolproof



“Foolproof”, traduzido literalmente para português – à prova de tolo -  mas significando, essencialmente, que é simples ou de tal modo simplificado que pode ser utilizado facilmente por pessoa iletrada e/ou de baixo QI.

Há uns dias, um blog aqui do burgo apresentava um texto encabeçado por esta foto “à Titanic”. 
O acaso levou-me lá, no dia seguinte, e constatei que o material usado não era adequado a este tipo de utilizador, dito de outro modo, não era “foolproof”.


O termo mais parecido, em português,  é “anti-vândalo", que só se adequa a marginais ou a adolescentes impregnados de testosterona a agredir o património público, o que não é o caso a que me refiro.
O tal “foolproof”, é mais para quem não pensa e força o limite da resistência do material e, no fim se espanta por ele não resistir.

São exemplo os caixotes do lixo públicos desconchavados, as árvores com os troncos descarnadas na base, os pinos arrancados e as protecções dos passeios públicos entortadas pelos sucessivos encostos dos automóveis e o aspecto degradado das paragens dos autocarros. Isto só para nomear alguns fora de portas, porque se formos para dentro de escolas, hospitais e outros edifícios públicos, o mau uso de portas, janelas, macas, cadeiras, etc …, que não foram concebidos “foolproof”, dão ideia da delicadeza com que são manuseadas e da cultura da população: 

No caso presente, a estética deveria ter sido sacrificada. Um varandim em blocos de pedra dura, encimado por um corrimão  de duas polegadas de ferro pintado, respondia melhor ás exigências dos seus mais extremos utilizadores.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Xácara das 10 Meninas



"Era uma vez dez meninas
de uma aldeia muito probe.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão nove.
Era uma vez nove meninas
que só comiam biscoito.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão oito.
Era uma vez oito meninas
em terras de dom Esparguete.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão sete.
Era uma vez sete meninas
lindas como outras não veis.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão seis.
Era uma vez seis meninas
em landas de Charles Quinto.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão cinco.
Era uma vez cinco meninas
em um triângulo equilátero.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão quatro.
Era uma vez quatro meninas
qu'avondavam só ao mês.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão três.
Era uma vez três meninas
em o paço de dom Fuas.
Deu o trangolomângolo nelas
não ficaram senão duas.
Era uma vez duas meninas
ante um home todo espuma.
Deu o trangolomângolo nelas
transformaram-se em só uma.
Era uma vez uma menina
terrada em coval mui fundo.
Deu o trangolomângolo nela
voltaram as dez ao mundo."
de Mário Cesariny de Vasconcelos, in Poemas de Bibe, por Mário Viegas

domingo, 8 de março de 2015

Dia Internacional da Mulher


Se eu não tivesse um Y, até era capaz de escrever isto. Como tenho, mandei o meu X e metade dos meus outros genes fazê-lo.

Quem me conhece sabe que sou feminista acérrima e que, como tal, vivo em luta por um mundo de igualdade, sofrendo todos os dias os lugares comuns onde nos põem (a todas nós mulheres) neste país. 
Mas este ano, porque ainda 2014 estava a começar quando me apercebi que 2015 ia ser brutal, decidi dedicar este dia à grande maravilha que é ser mulher, em vez de me queixar dos números da violência domésticas (40 mulheres morreram o ano passado às mãos dos seus "companheiros"), ou das tarefas caseiras e domésticas (chão, fraldas, quartos de banho e máquinas de lavar roupa e os pobres dos moços, namorados e maridos que até ajudam). 
Hoje decidi não pensar nas desigualdades salariais nem nos minúsculos números de mulheres em cargos de chefia. Hoje e só hoje, amanhã arregaçarei as mangas e voltarei à luta, decidi não pensar na minha empregada que trabalha todos os dias e a quem marido, no final da semana, lhe dá 20€ (que ela ganhou) e lhe diz para trazer recibo. Hoje, e só porque estamos em 2015 e eu acho que 2015 é um ano maravilhoso, decidi que a minha perspectiva ia ser diferente.
Se me dessem a escolher, a mim ou a cerca de 99% das mulheres deste mundo (este dado estatístico foi agora mesmo inventado por mim) preferia continuar a ser mulher. Todos os dias. E perguntam vocês, como é possível uma feminista dizer tal coisa? É como um pobre esfomeado dizer que preferia ser pobre a ser rico. Pois uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa e este erro na leitura da palavra feminista, é uma coisa que põe os cabelos em pé. Passo a esclarecer - uma feminista não quer ser homem, quer ser mulher, e nem sequer quer ter os direitos dos homens, quer todos os direitos humanos.
Mas voltando ao elogio de ser mulher - somos, em geral, muito mais giras que os homens, o que é uma coisa que logo pela manhã nos dá uma energia do caraças quando saímos da cama e nos arrastamos para o quarto de banho para lavar as remelas.
- podemos vestir calças e saias e vestidos e calções e saias-casaco, botas de cano, sapatilhas ou sapatos de tacão agulha, meias de renda cor de rosa ou cardadas dentro de botas de montanha.
- podemos usar roxo, amarelo, verde preto ou cor de laranja sem que ninguém questione a nossa sexualidade
- temos melhores amigos e melhores amigas a quem podemos contar tudo, até coisas realmente ridículas, mas que sabe bem não guardar dentro de nós próprias
- podemos pintar o cabelo e os olhos ou não pintar coisa nenhuma, podemos dar cor às nossas unhas, usar laços fitas ganchos, colares anéis ou tiaras, podemos viver o Carnaval todos os dias, mascarar-nos de coisas tolas ou de divas de cinema
- não temos de esconder que somos fortes quando o somos mas acima de tudo, podemos mostrar que somos fracas, que choramos a ver filmes, que nos apaixonamos por personagens dos livros e que sofremos quando o amor não é para sempre
- podemos dar saltinhos e jogar ao braço de ferro e fazer ginástica artística ou judo, podemos dançar na rua ou fazer discursos políticos
Eu gostava que a palavra machista fosse tão bonita como a palavra feminista. Gostava que ela tivesse dentro dela o sonho de que os homens pudessem ser tudo, gostava que dentro dela coubessem homens com saias e fitas no cabelo, homens a dançar na rua, homens de fato e gravata que gostam de receber flores, homens fato de treino a chorar nos cinemas, homens de barba e bigode cor de rosa, homens com brilhantina e chinelos, homens de todas as cores, com personalidades únicas, gostos únicos, não encafuados dentro daquilo que são suposto ser. Gostava que os homens também acordassem para a maravilha que é ser homem (digo que também não há-de ser mau) e exigissem para si próprios todos os direitos humanos. Gostava de viver num mundo em que feministas e machistas marchassem juntos, fossem parceiros nas descobertas e que todos juntos sacudissem do capote imagens cinzentas de formas de estar pouco igualitárias, pouco justas, pouco ecológicas até. Gostava que género deixasse de ser assunto e que a palavra mulher deixasse de ser cor de rosa e homem castanho, e deixasse de fazer sentido andarmos a criar diferenças onde elas não existem.



Texto roubado

terça-feira, 3 de março de 2015

O Sr. Meireles


O Sr. Meireles era o chauffeur da minha avó. Pelo menos era assim que lhe chamávamos. Tinha andado ao serviço de uma família amiga e, como já estava velho e não tinha para onde ir, a minha avó deu-lhe guarida num anexo da sua casa. De vez em quando, conduzia o carro do meu falecido avô.
Não tinha reforma e vivia do fabrico de uns pudins Abade de Priscos, com que fornecia alguns restaurantes da zona de Braga. Usava a cozinha exterior, que forrara de formas, bacias, caixas de ovos e baldes de todo o tipo.
A sua suposta actividade de chauffeur, era escassa. Lembro-me de o ver ao volante uma ou duas vezes e até a minha avó tinha de marcar com grande antecedência, porque as horas de entrega dos pudins estavam primeiro.
Tinha um corpo de touro encimado por uma pequena cabeça de abutre careca e luzidia, debruada de longos cabelos, que pintava, com desvelo, de preto azeviche cintilante.
Era um solitário de poucas falas. Às vezes, depois do jantar, aparecia na sala de estar da casa, para ver televisão. Cumprimentava, sentava-se no sofá mais afastado e ali ficava, mudo e quedo, até que sono o fizesse cambalear.
Depois era uma questão de tempo, para se ouvir o Nsstt! Nsstt! da minha avó, para que ele desencostasse a cabeça dos naperons que decoravam o cimo dos sofás. E de Nsstt! em Nsstt! o Sr. Meireles vacilava, até às horas de se ir, sem deixar cor nas alvas rendas.

No seu funeral éramos cinco, incluindo o meu irmão mais novo, de sete anos, e um fulano que por lá apareceu, para a missa, e que acabou numa asa do caixão.
Sabíamos que ele não era de amizades, mas sempre pensámos que teria alguma família.
Parece que deixou saudades nos gulosos da região.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Haruki Murakami


...
- Ouve Kafka. Aquilo por que estás a passar agora é o tema de muitas tragédias gregas. Não é o homem que escolhe o seu destino, mas sim o destino que escolhe o homem. É nessa visão do mundo que o teatro grego assenta. E o significado da tragédia - assim como o define Aristóteles - provém, por mais paradoxal que pareça, não dos pontos fracos do protagonista, mas dos seus méritos. ... As pessoas são empurradas para a tragédia, não pelos seus defeitos, mas pelas suas virtudes. Édipo Rei, de Sóflocles, é um exemplo significativo. Édipo é atraído para a tragédia, não por uma questão de preguiça ou de estupidez, mas devido à sua coragem e honestidade. Ora aí está! É a suprema ironia.
...
Haruki Murakami, in "Kafka à beira-mar"