quarta-feira, 27 de setembro de 2023

São Jorge

Estátua em bronze de Salvador Dalí

Santiago por Castela! São Jorge por Portugal!, era assim que eu entendia o início das batalhas que, nos primórdios da nacionalidade, nos opunha às investidas dos espanhóis, sem nunca entender o porquê de o terem elegido patrono das nossas Forças Armadas.

Verdade seja dita que só há bem poucos anos me deu para ler alguma coisa sobre a hagiografia (descrição da vida e prática de virtudes heroicas) dos santos e beatos das igrejas cristãs e, como seria de esperar, deparei-me com um sem-número de confabulações que caracterizam a construção dos mitos.

Neste espaço já escrevi sobre Santa Luzia, Santo Onofre, Santo Antão, S. Roque, S. Fiacre, S. Brás e mais uns quantos que, por uma razão ou outra, se meteram no meu caminho e me despertaram a curiosidade. Desta vez foi o São Jorge, pela mão de Edward Gibbon, que é reconhecido como o pai da historiografia moderna, no seu livro de 1776, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire.

Aquilo que tradicionalmente se diz do santo está envolto numa bruma lendária, de veracidade mais que duvidosa, a ponto do Papa Paulo VI o ter retirado do calendário litúrgico. Gibbon era historiador e escreveu baseado em documentos e não na tradição, e surpreendeu-me a discrepância da vida real do "santo", face ao que depois dela contaram.

Resumo das páginas 511, 512, 513:

“Jorge, cognominado o Capadócio (na actual Turquia), devido à origem dos pais e ao local da sua educação, era filho de um pisoeiro. Elevou-se a partir deste nascimento obscuro e servil por via dos talentos de um parasita; e os protectores, a quem lisonjeava assiduamente, arranjaram a este indigno valido uma comissão lucrativa, ou um contrato, para abastecer o exército de carne de porco salgada. Tinha um emprego mesquinho e tornou-se infame. Acumulou riqueza lançando mão dos mais baixos meios de fraude e da corrupção; mas as suas malversões eram tão notórias, que Jorge se viu forçado a fugir às buscas da justiça. Depois desta peripécia em que parece ter salvo a fortuna à custa da honra, adoptou, com sinceridade ou hipocrisia, a profissão do arianismo. Mercê do seu amor verdadeiro ou fingido às letras, reuniu uma valiosa biblioteca de História, retórica, filosofia e teologia, e a escolha da facção cristã dominante, elevou Jorge da Capadócia ao lugar de Bispo de Alexandria no Egipto.

A entrada do novo arcebispo foi a de um conquistador bárbaro, e cada momento do seu reinado ficou manchado pela crueldade e a avareza. Os católicos de Alexandria e do Egipto acharam-se abandonados a um tirano …que alardeava a pompa e a insolência da sua alta posição, continuando a mostrar os vícios da sua baixa e servil extração. Os mercadores de Alexandria viram-se empobrecidos pelo monopólio injusto e quase universal que ele conseguiu do nitro, do sal, do papel, dos funerais, etc.; … Os alexandrinos jamais puderam esquecer ou perdoar o imposto que ele sugeriu sobre todas as casas da cidade, sob o obsoleto pretexto de que o régio fundador da cidade, transmitira aos seus sucessores, os Ptolomeus e os Césares, a propriedade perpétua do solo. 

Sob o reinado do imperador Constâncio, foi expulso pela raiva, ou antes, pela justiça do povo; e só com uma violenta luta se conseguiu restaurar a autoridade dos poderes civis e militares do Estado. … Jorge e dois dos seus obsequiosos ministro, foram vergonhosamente conduzidos acorrentados para a prisão pública. Ao cabo de vinte e quatro dias, a prisão foi assaltada pela fúria da multidão supersticiosa, impaciente com a morosidade dos procedimentos judiciais. Os inimigos dos deuses e dos homens expiraram no meio de cruéis insultos; os corpos sem vida do arcebispo e dos seus companheiros foram transportados em triunfo pelas ruas, no dorso de um camelo e a passividade da facção atanasiana pareceu a toda a gente um notável exemplo de paciência evangélica. Os restos deste miseráveis criminosos acabaram por ser atirados ao mar. A morte louvável do arcebispo apagou a memória da sua vida. O rival de Atanásio era estimado e venerado pelos arianos, e a aparente conversão destes sectários introduziu o culto dele no seio da Igreja Católica. O odioso estrangeiro, depois de se adulterarem todas as circunstâncias de tempo e de lugar, assumiu a máscara de um mártir, de um santo e de um herói cristão; e o infame Jorge da Capadócia foi transformado no famoso São Jorge de Inglaterra, o patrono das armas, da cavalaria e da Jarreteira.”

Foram os cruzados, que ajudaram a conquistar Lisboa aos mouros, a razão do nome de Castelo de S. Jorge, em Lisboa. Dom Nuno Álvares Pereira, Condestável do Reino, considerou-o responsável pela vitória portuguesa na batalha de Aljubarrota e mandou erguer a Ermida de São Jorge em Porto de Mós, a testemunhar esse facto. O Rei Dom João I de Portugal que também era devoto do Santo, substituiu Santiago Maior por São Jorge como padroeiro de Portugal e o Jorge de Capadócia, deve-se estar a rir, … no Inferno!

Jorges da Capadócia, com protagonismo religioso, a viver naquela época, pode haver muitos, mas credibilidade cega, superstição infundada e fraude deliberada são marca constante em toda a história religiosa

 


 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Influencers



Os "influencers" são os “ponta de lança” da Sociedade do Consumo, a nova religião das sociedades “ocidentalizadas” e, como é o supérfluo que dá trabalho e felicidade à maioria da população, são as futilidades que dominam as suas curtas apresentações.

Noutro tempo, quando os bens de consumo eram escassos, esse espaço esteve dominado pelo “misticismo”, os seus “influencers” vendiam múltiplas versões do sobrenatural, ocupando as mentes e orientando as atitudes dos grupos a que tinham acesso.

O Império Romano nunca impôs os seus deuses aos povos conquistados. Os deuses dos outros eram “mais uns”. Quando muito procuravam analogia com os seus e todos conviviam, com a excepção dos Judeus, que sempre se consideraram o Povo Eleito, reivindicam a posse exclusiva do conhecimento divino e consideram ímpias e idólatras todas as outras formas de culto.

Aos deuses de Roma e dos restantes povos era pedido que olhassem pelo dia a dia e ajudassem nos negócios, na doença e na guerra, enquanto os “influencers” dos judeus já vendiam o Paraíso aos seus prosélitos.

Como a felicidade eterna é um produto “mais interessante” que a felicidade no dia de hoje, Jesus e os seus apóstolos viram um mercado imenso nos “pagãos”, garantindo-a a todos, independentemente da sua condição, desde que adoptassem a fé e observassem os preceitos do Evangelho. Esta ideia associada à profecia que o “fim do Mundo” estava próximo e com ele o dia do Juízo Final, em que “os mais soberbos monarcas iriam gemer no profundo abismo das trevas, magistrados se liquefariam em fogos ardentes e filósofos enrubesceriam nas chamas abrasadoras junto aos seus alunos iludidos”, convenceu muitos de que era melhor jogar pelo seguro e abraçar os ditamenes desses “influencers”, esforçando-se por conciliar os interesses do mundo presente com os de uma vida futura no Além.

Os “influencers” do Cristianismo tinham “o produto” (o Fim do Mundo e a Vida Eterna), a facilidade das vias de comunicação romanas para o promoverem e a intransigência judaica no seu espírito, isto é: todas as condições para minar as consciências dos temerosos gentios e, lentamente, foram conquistando o Império.

Hoje vivemos tempos de mudança. A Sociedade de Consumo é insustentável e os seus “influencers” começam a perder dominância face aos novos místicos, com histórias de Fins do Mundo. A Internet,  uma população descontente e a intransigência, são o caldo onde florescem Evangélicos cristãos e Islâmicos radicais, apregoando o velhinho: "quem está connosco, está com Deus!" e quem não estiver só pode estar possuído por demónios, que os obrigam a professar outras ideias e só há 2 modos de expulsar – pelo exorcismo ou pelo fogo.

Talvez a Inteligência Artificial consiga refrear as multidões que tendem a ouvir os “influencers da vida para além túmulo", porque o racional do colectivo humano não nos leva (como nunca nos levou) a portos seguros, e do que precisamos é de cuidar do legado dos nossos antepassados, para que os nossos filhos possam ter uma vida melhor que a nossa ... nesta Terra.
Queira Deus! … Ou melhor, … Queiram todos os Deuses!