sábado, 30 de março de 2013

A Capelinha


Quem passa não dá por ela. Quando muito estranha o cruzeiro naquele lugar, do lado errado da estrada, na periferia da aldeia com casas dispersas.  Mas se andar uns metros para sul e olhar para o monte, é possível que descortine, na meia encosta, uma pequena capela branca.

O cruzeiro indicava o lugar para se mudar de direcção, para, depois de passar por uma outra pequena capela, entretanto destruída, subir monte acima.

O tempo apagou memórias e só quem questiona os sinais nas suas imediações, pode imaginar a passagem de Passionistas e outros clérigos por aquelas bandas. 
A capela não tem significativo registo na freguesia, pese embora o poder das suas relíquias.
A casa a que pertence, fica no Caminho de Santiago, pela costa, e dela conhecem-se três histórias. A dos frades que aí faziam exorcismos, a de um comerciante de gado a quem chamavam “cigano” e a de D. Alexandrina e da sua criada Maria, que beneficiou do seu usufruto como paga de lealdade e de um acidente de trabalho.

A história maior é a dos frades, que trouxeram fama e gente de sua terra, a julgar pela “casa das galegas”, o nome que mantem a pequena construção que  lhe está a poucos metros e que servia de estalagem.
Há autóctones que ainda hoje falam em missas concorridas, apesar das sua parca dimensão e há quem lembre a “força” das suas imagens, entretanto vendidas para provento da Maria.
Não custa a crer que esses frades tenham cá chegado, como os Passionistas que se estabeleceram em Barroselas em 1933, fugidos ao anticlericalismo da Segunda República Espanhola.
Dos Passionistas constam práticas que "enchiam igrejas" com encenações dramáticas de trechos bíblicos que inflamavam os fiéis. Mas Passionistas ou não, o certo é que a capela era visitada por peregrinos e que durante um período os seus frades tiveram sucesso.

A capela foi construída em 1830 por José Pedro Ennes.
Numa na lápide tumular no seu interior pode-se ler “HIC SUNT DENTES MEI” – Aqui estão os meus dentes.
Associando factos, tudo aponta para que o seu proprietário inicial, pretendesse fazer dela sua última morada e que, como a lei o impediu, terá optado por marcar posição usando-a para enterrar os seus apêndices dentários.
Maria da Fonte, ou Revolução do Minho, é o nome dado a uma revolta popular ocorrida na primavera de 1846 contra o governo presidido por António Bernardo da Costa Cabral.
A revolta resultou das tensões sociais remanescentes das guerras liberais, exacerbadas pelo grande descontentamento popular gerado pelas novas leis que se lhe seguiram de recrutamento militar, por alterações fiscais e pela proibição de realizar enterros dentro de igrejas.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Alvaroz


Gosto desta facilidade de tradução de quem vai trabalhar dois meses para um país anglosaxónico, e vem de lá com um vocabulário majestoso.

Overall - Fato de macaco

quarta-feira, 27 de março de 2013

Madalena

Carta aberta:
Foi há três meses que nos vimos pela última vez. Estavas como sempre. Um pouco depressiva, mas crítica em relação ao evoluir do que te andava em redor. Mantinhas o ar cuidado e os tiques de rapariga, apesar dos teus 72 anos.
Eras um caso. Um exemplo do que a vontade pode fazer quando se tem “fibra”. Foste professora, casaste, tiveste filhos, divorciaste-te, viveste só, voltaste ao marido com medo da solidão e resististe o mais que pudeste a muita incompreensão. Tentaste encher a vida mas tiveste demasiados azares.
Vais hoje a enterrar vítima de doença remediável, depois de uma semana em que vários médicos não deram conta do recado, por não lhes teres dado as dicas certas a par de algum desacerto do sistema que não te permitiu o acesso a gente mais avisada. Andaste sempre pelos amarelos, quando o teu mal era vermelho. E logo tu, que cumprias as regras de saúde. Lamento! Mas hás-de convir que neste jogo que é a vida, a sorte é fator a ter em conta, e tu não a tinhas do teu lado. Confiaste e evitaste “chatear” quando até tinhas essa permissão. Preferiste o sacrifício, crente em falsas permissas.
Agora só há que lembrar o teu espírito de pássaro que cantou, voou e deixou marca no vento.
Repousa em paz!

domingo, 24 de março de 2013

Novidades ao almoço

(Clique na imagem para a aumentar)

-Então? Novidades!?, digo enquanto me sento à sua frente para almoçar.
Conheço-o há mais de vinte anos e temos muitas horas de trabalho conjunto. Sempre foi “prudente”, porque as paredes têm ouvidos e nesta terra “tudo se sabe”. Olha-me de soslaio e comenta entre dentes.
-Isto aqui é para andar agachado, para não fazer sombra a ninguém! O melhor é estar calado!
E assim vivendo, falando do tempo ou de coisas consensuais, ataco a sopa lembrando a "Cena do Ódio" de José de Almada Negreiros: “Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim, e se por desgraça vem um dia sem jornais, tens de ficar em casa nos chinelos, porque nesse dia, felizmente, não tens opinião p'ra levares à rua".
Vivemos à espera que uma oportunidade nos caia de bandeja, depois de um negócio, uma morte ou de uma demissão, temerosos em apoiar ou em confrontar, não vá uma palavra fazer perigar o nosso pequeno benefício. Assistimos em vez de intervirmos. Como é notícia de jornal, arrisco.
- Você leu a notícia no JN de 10/Março, em que se fala que Cardiologia de Viana colocou um cardiodesfibrilador de 17.000 Euros, numa imigrante ucraniana de 56 anos?
O enfermeiro Ferreira, levanta os olhos do prato e resmunga:
- É porque precisava!
- E você acha bem, que essa massa toda seja gasta num hospital, onde Cardiologia não tem diferenciação em Arritmologia, em vez de a referenciar a Vila Nova de Gaia ou ao Hospital de S. João?
- Ela precisava, não precisava? Então qual é a diferença?, responde, pragmático.
- É que 17.000 Euros é muito dinheiro! Dá para comprar um Renault Clio cheio de extras!
Entretanto o Dr. Policarpo, senta-se a meu lado e não resiste a entrar na conversa.
-Se me permitem, eu também sou de opinião de que este tipo de intervenções deve ser efectuado num Centro de Referência.
O enfermeiro Ferreira, interrompe o ataque ao rojão. De repente sente-se como num interrogatório. Habituado a concordar com as decisões que vêm de cima, manda a experiência que se contenha. Não é por acaso que chegou a enfermeiro-chefe.
- O que é isso?
O Dr. Policarpo, velho médico conhecedor das vaidades humanas e do que pode resultar delas, enquanto se serve da caneca da água, explica:
- Um Centro de Referência é um serviço hospitalar que se diferenciou numa determinada área, e que recebe as situações clínicas mais raras dessa área, de modo a que essa concentração lhe permita uma experiência acumulada. Não tarda que a Europa obrigue os países a que todo o tipo de actividade que exija muita diferenciação, tenha acreditação. Ora quanto mais infrequentes são as doenças, mais apertado será o filtro, e este CDI vai ao arrepio desta tendência. Estes doentes já eram tratados eficazmente em Vila Nova de Gaia e no Hospital de S. João, considerados Centros de Referência em Arritmologia.
Só um país sem rumo se dá a estes luxos. E falar em que há mais 100 para colocar anualmente, só neste distrito, sem ninguém questionar nada, ... é um problema.!.... Estamos a falar de 2,7 milhões de Euros!!
-Calma, Dr. Policarpo! Interrompo. – Você sabe que sempre houve gente a tentar “aparecer”. Aqui até já se fez cirurgia torácica!
Mas o Dr. Policarpo não desarma.
- Assim não temos futuro. Em vez de apostarmos na eficiência que resulta da diferenciação, deixamos que impere a vaidade. Irão colocar um ou dois CDI por ano, certamente a um preço superior e com maior dificuldade de fiscalização pelo Estado, que somos todos nós, os contribuintes.

O bacalhau à espanhola, esfria no prato do Dr. Policarpo e a conversa está-lhe a fazer mal. A bem da sua saúde dirijo-me de novo ao enfermeiro Ferreira:
- Oh enfermeiro, já viu o que tem chovido este ano?
E o enfermeiro Ferreira, como que rejuvenesce, para nos contar que as maiores barragens portuguesas se aproximam da capacidade máxima de armazenamento e que só Alqueva, o maior lago artificial da Europa, é suficiente para suprir todas as necessidades durante, pelo menos, três anos consecutivos de seca.
- É bem verdade! Houve dias em que até os cães beberam de pé!
...

sábado, 23 de março de 2013

Um nada mais ao lado



Alexandre, do grego "Αλέξανδρος" (Aléxandros) – aléx – protector, andros – homem: protector do homem.
Alexandre o Grande (356 — 323 a.C), foi o mais célebre conquistador do mundo antigo. Alexandra a Grande (19__ - 20__ d.C.) não conquistou grandes coisas, mas tentou proteger o património de Guimarães e explicou-o.

Retive-lhe as botas.

domingo, 17 de março de 2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Papas

Eu, pecador me confesso.
Não sou muito fã de papas. Considero-as um bom alimento para quem não tem dentes, mas aquela textura com tudo misturado onde nem os olhos nem a boca conseguem identificar os componentes, deixa-me perturbado. Gosto de sentir o que como, sem que os aromas me confundam, e desagrada-me o delicodoce dos seus múltiplos paladares.
Mas gosto de Muesli. Aí até escolho as passas e delicio-me a rilhar os grãos mais duros do centeio. Gosto dele com leite frio, para não amolecerem em excesso e, se a fome é muita, até faço refeição, e boto-lhes dentro pedaços de fruta e iogurte.

Mas papas não! Sejam quais forem. De Maizena, Cérélac, ou as tradicionais de aveia ou de carolo.
Digo-o sem papas na língua porque, embora os alimentos produzidos especificamente para bebés "respeitem o cumprimento de requisitos próprios, nomeadamente quanto à sua composição nutricional, resíduos de pesticidas e rotulagem específica, previstos na legislação", enquanto me mantiver consciente das características do mundo que me rodeia, vou-me manter favorável ao chouriço de sangue, à alheira de caça, à paella e ao cozido à portuguesa.

No fim da vida, se os dentes me faltarem ou o sistema nervoso me trair, talvez faça essa opção, que então, estarei por tudo.

terça-feira, 12 de março de 2013

Cães



“Se non è vero, è ben trovato".  Foi até aqui que a pesquisa e a especulação me levaram.

Desde tempos imemoriais que os cães se associaram ao homem, ajudando-o na caça e na protecção contra inimigos comuns. Esta simbiose, permitiu ao homem seleccioná-los de acordo com as melhores aptidões do seu património genético, promovendo características que actualmente são apanágio das suas diferentes raças. Na Europa, este processo foi francamente desenvolvido no reinado da Rainha Vitória (1819-1901) de Inglaterra. Até então repoduziam-se quase livremente.  

Quando surgiam as grandes fomes, eram frequentemente abandonados  (talvez alguns fossem parar à panela de alguém mais aflito), e Lisboa chegou a ser referenciada, por estrangeiros, pelas suas matilhas de cães vadios devorando os detritos que a população lançava fora.
O cão vadio é uma particularidade dos povos do sul, um “bombo” para os frustrados, que só recentemente mereceu a preocupação geral da população, enquanto o gato vadio manteve o seu estatuto.
Mas adiante. Hoje o assunto é cães e, mais especificamente, na Idade Média, e é bom lembrar que, nesta altura, não havia esgotos, aterros sanitários ou estações de tratamento de resíduos sólidos e que as pessoas “iam a campo” e os cães … também.
Também ao analisar alguns dos quadros onde os pintores da época representaram refeições, não se estranha a presença de cães, nem a ausência de talheres sobre as mesas. De facto o garfo em Portugal foi introduzido no século XVI, na corte de D. Manuel I, e só se vulgarizou em meados do século XIX, no reinado de D. Maria II. Até lá comia-se com as mãos, com eventual apoio de um punhal e de uma colher.

Ora é neste contexto que vemos os cães a rondar a mesa,  à espera de qualquer sobra. Mas não lhes descuremos outra utilidade. Na ausência da indústria do papel e com os dedos completamente engordurados, por um qualquer assado, três soluções se aprontavam como fáceis ao paisano em questão. 1: Limpá-los ao pão e comer o pão, 2: Limpá-los à toalha ou à roupa, 3: Dá-los a lamber ao cão e atacar de novo o prato, depois de os passar já limpos pelas calças. Das três, e atendendo aos conceitos higiénicos da época, estou em crer que a terceira prevalecia.

domingo, 10 de março de 2013

"Amor"

A médica chama-o pelo telefone e aguarda. Segundos depois entra um jovem adulto. Veste desportivamente. Está cuidado e ao convite senta-se. Foi enviado ao Serviço de Urgência por suspeita de doença venérea.
Refere disúria e um corrimento amarelo pelo pénis de há dois dias, “um pús, que lhe deixa tudo colado!”. Nega relacionamento recente suspeito. A última relação sexual foi há uma semana, com “o namorado”. Costuma ter cuidado mas, desta vez, como ele ia de viagem e era uma despedida, “no meio daquela loucura, … não olhou a nada!”.
Confirmada a gonorreia, é-lhe prescrita medicação e dado carta para o médico de família proceder ao despiste de outras doenças sexualmente transmissíveis, enquanto o sensibiliza para elas.
Não parece preocupado.  "Faz análises cada seis meses e que têm estado sempre bem". Mas desta vez pensava que fosse pior do que “só tomar remédios”. Quem o mandou, “assustou-o bem”. Disse que tinha de ir já à Urgência, “porque iam ter que lhe meter uma coisa pelo coiso acima”. E já mais sossegado confessa:
-Sra. Dra! O meu coiso é uma coisa muito importante para mim! ... Eu gosto muito do meu coiso!.
E, embora mais descansado face ao tratamento, uma nova preocupação lhe assoma ao pensamento.
-E agora? Durante quanto tempo é que eu não posso ter relações?
É-lhe explicada a necessidade de esperar o resultado das análises e da sua repetição algumas semanas mais tarde, para além do estudo ao namorado que, ao que parece, está fora.
Aí a sua fisionomia muda. Levanta-se, enquanto pega na receita e na carta, e diz:
-Mas é que ele vem hoje! E o pior é que eu faço anos no domingo. E sabe Dra! Eu não concebo fazer anos sem poder fazer amor …!
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domingo, 3 de março de 2013

À bordalesa

O telemóvel tocou. João, ao confirmar o número de casa, atendeu. Do outro lado a voz insegura da empregada.
- O Sr. Reis chorou e sentiu-se mal. Diz que quer ir ao hospital!
O sogro ficara em casa, junto ao aquecedor, atormentado pelo recente falecimento da companheira.
No velório aos sussurros junta-se o roçagar das roupas e das mãos que o frio obriga. No centro a morta aguarda.
- Vamos!?
Viagem curta. Um lanço de escadas, um corredor e a pequena sala. Uma mesa, um sofá, uma televisão e um aquecedor no máximo. Na cadeira um corpo curvado envolto em almofadas. Já foi andarilho e caçador. Agora as dores tolhem-no. Lembra-se de tudo, dizem, mas repete as histórias que já todos conhecem.
A televisão está desligada e os comandos à mão, que daqui a nada dá o Benfica na SportTV.
- Então Sr. Reis! Sentiu-se mal?
Esboça um soluço. Depois outro menos contido. A filha abraça-o.
Medem-se as tensões arteriais e o pulso. Está no seu normal. Tentam distraí-lo. Primeiro com a televisão. Depois com os prazeres possíveis.
- Sr. Reis! Então ontem foi almoçar fora?
- Como era sexta-feira de jejum, convidei o João e fomos a Entre-os-Rios comer uma lampreia ao Mirante.
- Uma lampreia para os dois? Aos 93 anos?
- Sim! O empregado ainda perguntou se queria arroz, e eu disse-lhe que arroz comia em casa! Foi à Bordalesa e regada com vinho do Douro.
- Sr. Reis! E era sexta-feira de jejum porquê?
- Ora essa! Porque estamos na Quaresma. Entre o Carnaval e a Páscoa, à sexta-feira, é dia de jejum e abstinência. Não se pode comer carne!
- Claro, Sr. Reis!
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