domingo, 30 de abril de 2017

O amado


As paixões não têm idade. Embora gostemos de o pensar, as nossas vidas não são assim tão diferentes e aquilo que acontece a uma pessoa, acontece a muitas mais. Já o dizia a Dee Dee do Bukowski, que sabia uma ou outra coisa da vida. O Bukowski também, mas talvez menos, já que estava tão convencido da sua excepcionalidade.

A minha velhinha está apaixonada. Tem 91 anos, enviuvou há mais de 30 de um POW da Segunda Grande Guerra, e está perdidamente apaixonada. Para complicar a situação, está apaixonada por um holandês de 66 anos. Sim! Outro cliché! Não só as paixões atacam a qualquer idade, como a partir de determinada altura, os anos de vida já não contam para nada. Somos todos adultos, é ou não é?

Todos os dias, por volta das 8 da manhã, vou até ao quarto da Mrs. R. e abro as cortinas às flores, pesadas e rotas pelo sol e pelo pó. Ela abre os olhos remelosos pela querato-conjuntivite seca e pergunta-me se já tem de se levantar. É que não lhe apetece nada. Está tão bem ali. Pergunto-lhe se não quer tomar o pequeno-almoço e ela, com um ar entre o preguiçoso e o covarde (como na música do Chico), diz que tem muito sono de manhã e pede mais 10 minutos, com o rádio ligado na estação da música clássica. Todos os dias ela faz tudo sempre igual e não se sacode da cama de forma nenhuma. Lá lhe dou os 10 minutos, que na verdade são vários 10 minutos (cerca de 4) e ela lá se dispõe ao pequeno-almoço. E sussurra 'Está-se tão bem aqui!... Será que eu podia, hoje, tomar o pequeno-almoço na cama?'. Há dois anos que Mrs. R. toma o pequeno-almoço na cama, todos os dias, depois de ter tropeçado escadas abaixo - exactamente quando ia preparar o pequeno-almoço - e, na queda, partir o pescoço. Como conseguiu chegar ao telefone, de pescoço partido e do alto dos seus já 89 anos, para chamar a ambulância, é mistério que eu não sei explicar. Caríssimos, eu só falo do que sei e só estou aqui há 1 semana. Isto contaram-me! E quem sou eu para duvidar!

Depois do pequeno-almoço, partilhado com a pequena Lulu Bell, a caniche preta (Oh! angel child!, suspira a Mrs. R.), e de mais uns valentes 10-40 minutos de ronha, são horas de sair da cama. O sonho de Mrs. R. é não ter de sair da cama. Nunca. No outro dia, depois de 3 espirros, perguntou-me se se desse o caso de estar com uma constipação, podia ficar na cama o dia inteiro. Não! Não é opção! As manhãs, ou o que sobra delas, são passadas na drawing room (sala onde nunca vi um lápis de cor, um caderno de desenho ou um pincel), mas onde nos sentamos à frente da lareira e da televisão o resto do dia, entre o "Downtown Abbey" e os numerosos assassinatos que acontecem todos os dias na Inglaterra e respectivos super-detectives - minha nossa, tanta gente morre, todos os dias, nestas terras!!! Felizmente há o Frost, o Morse, o Sherlock, a Vera, o Poirot, a Miss Marple e mais uns tantos inspectores, policias e até a jardineiras do Rosemary and Thyme para prender essa escumalha!. Entre isso, rainhas, Reis e príncipes encantados, há uma presença obrigatória, e é logo o primeiro a abrir a sessão - André Rieu, o amado!
 Mal a encaminho para o sofá, Mrs. R. pergunta - Será que podemos ver o André Rieu? E lá abrimos o youtube e ficamos com as valsas do Mr. Rieu até à hora de almoço, às vezes a tarde toda, às vezes até à hora de ir dormir. André Rieu em Viena, André Rieu em Maastrich, André Rieu no cruzeiro do amor, na Escócia, na Ópera de Sydney. "Isn´t he wonderful, Helêna? don´t you think he´s wonderful?"

André Rieu, para os meus leitores ignorantes, é a super-estrela da música clássica. É a Beyonce do violino, o Bieber da Valsa, o Jagger das Orquestras! É uma estrela! Há-de ser o primeiro a tocar uma valsa na Lua, promete a cada entrevista a partir do seu Chateau em Maastritch, que em tempos pertenceu ao Charles de Batz-Castelmore D´Artagnan, aquele em que o Dumas se inspirou para os famosos mosqueteiros. E oh! She loves him! São horas a sorrir para a televisão, a sonhar com uma valsa nos braços do senhor. "Isn´t he beautiful? Gorgeous!" diz ela.

A minha avó, em tempos, também se apaixonou por uma estrela. Estávamos em 1945 e ela andava de beicinho pelo Francisco José. Reza a história que tinha posters e t-shirts assinadas e que ía a todos os concertos, mas nisto eu acredito pouco - a minha família é muito mentirosa e tem como lema porquê estragar uma boa história com a verdade... foi assim que me contaram e eu juro que prometo que até nem acrescentei um ponto ou outro... Diz que o meu avô, na altura jovem marido ciumento, teve de intervir, e, com uma sacudidela valente, arrancou "o chora" (assim lhe chamava e chama o meu avô, quando esta história vem à baila) lá de casa!

Ora, Mrs. R. já não tem o seu marido para se enciumar e quem me conhece sabe que, sendo membro número um e co-fundadora do Sindicato das Cartas, mesmo estando demissionária há algum tempo (não tendo ninguém se apresentado para o posto), não poderia deixar esta história de amor passar em branco. Vai daí, disse "Oh Mrs. R.! Olhe lá! Isto de ficarmos aqui a babar para o moço, não tem jeito nenhum! Acho que bem, bem, era mandar-lhe uma carta de amor!" Oh a cara dela! "Can we?" Claro que podemos Mrs. R.! Não só podemos, como temos! É proibido, pelos estatutos do Sindicato das Cartas, não enviar as cartas de amor! "E nós sabemos a morada dele?" Saber, não sabemos, Mrs. R.! Mas perguntamos ao google! E vai daí, sai carta de amor para a Holanda.

Reza a história que a Mrs. R. nem sempre foi um amor de mulher. Senhora e dona de uma Manor magnífica e dos 54 hectares em volta, sempre foi de arregaçar as mangas e conduzir o tractor terreno afora e ser ela a primeira a pegar na moto-serra para cortar as árvores abanadas pelos temporais. A Manor, por si só, já lhe daria direitos feudais (isto para não falar dos casacos de peles e dos colares de pérolas e o fino gosto de preferir comer a sopa de lata com colher de prata e não com a de estanho que, por acidente (qual acidente, ignorância! lhe levei no tabuleiro do almoço) mas agora, ali meio abandonada, sem família ou criados por perto, sem ninguém para lhe ouvir as ordens ou clamar as jóias, já não se preocupa com coisas maiores do que a selecção diária de programas de televisão. "Às vezes, esqueço-me de quão próxima sou da família real!", diz-me, quando aparece o príncipe Carlos, de bochechas vermelho reluzente, na televisão. "Está com um ar acabado, o príncipe, não está? Eu sou prima de um barão! Ele era boa pessoa e eu gostava muito dele, mas às vezes ficava louco e a minha avó trancava-o no quarto ao lado do nosso quarto de crianças. Mas ele era realeza e era meu primo!." Agora, raramente se lembra disso e ainda bem, porque às páginas tantas, a minha vida era muito mais complicada e não podíamos mandar cartas de amor ao Rieu, mesmo ele vivendo num castelo na Holanda.

História de  H. G.

domingo, 23 de abril de 2017

O Fim da Lei da Selva


Desde a Idade da Pedra até à Época do Vapor, e do Árctico ao Sahara, todos sabiam que, de um momento para o outro, um vizinho poderia invadir o seu território, derrotar o seu exército, chacinar a sua população e ocupar a sua terra.
Durante a segunda metade do século XX, esta Lei da Selva, foi finalmente quebrada, ou melhor, revogada e, na maior parte do mundo, as guerras nunca foram tão raras.
Enquanto nas sociedades agrícolas antigas a violência era a causa de 15% de todas as mortes, durante o século XX, apesar das duas guerras mundiais, a violência causou 5% das mortes, e no início do século XXI é responsável por 1% da mortalidade global.
Em 2012, morreram cerca de 56 milhões de pessoas do mundo; 620.000 das quais de morte violenta – a guerra matou 120.000 e o crime 500.000.
Por sua vez 800.000 pessoas cometeram suicídio e 1,5 milhões morreram de Diabetes. O açúcar é, actualmente, mais perigoso que a pólvora.


In “Homo deus” de Yuval Noah Harari

quarta-feira, 19 de abril de 2017

A espera


Tem 99 anos e está à espera do fim. Não tem doença “de maior”, mas todas as limitações do mundo. É cega, mal se aguenta nas pernas, ouve mal e, recentemente, o Clínico Geral que a segue há vários anos, diagnosticou-lhe “demência”, coisa que eu duvido. Ou melhor, às vezes sim, outras, não! A verdade é que a fúria facilmente se confunde com loucura e a raiva que ela tem, por não ser capaz de dar dois passos, seguir uma conversa ou de apreciar uma belo prato de comida (o paladar também já se foi), tolda-lhe o pensamento. Está zangada com o mundo e, como tal, grita. Se pudesse, batia no mundo. No mundo todo! De preferência com um pau.

Foi uma grande mulher, daquelas de mangas arregaçadas e para a frente é que é o caminho. Casou cedo e, dois dias antes do nascimento da sua primeira filha, já era viúva. O telegrama de guerra, sobre a morte do marido, chegou quando ainda estava deitada na cama do hospital a amamentar pela primeira vez. Casou, anos mais tarde, com o pediatra da filha e nunca mais falou do homem que perdeu na guerra. O novo não gostava e ... para a frente é que era o caminho. Teve mais três filhos de quem foi mãe implacável. Fez de raiz as roupas das crianças, cozinhou para seis, todos os almoços e jantares e bolo para o lanche, trabalhou como assistente do novo marido, fez voluntariado, correu o mundo de auto-caravana e a Europa, à boleia, com a filha mais velha. Não deve ter parado um segundo. Fortíssima, esta mulher!

Quando a conheci, mais ou menos, há um ano, já estava bastante fraca. Acabava de regressar de três meses no Canadá, onde tem dois dos filhos emigrados. Teve um enfarte no dia anterior à viagem de volta e contou-me, a rir-se da confusão que criou, como teve de ser evacuada de helicóptero da ilha de Galliano. Comia com prazer e queria saber tudo sobre tudo. Passávamos os dias, já lentos, é claro, a ouvir a radio BBC-4 e a discutir os direitos das mulheres ou o sentido da vida, a guerra na Síria ou os atletas russos banidos por doping dos jogos olímpicos. Também vimos os jogos olímpicos - ela sentada na sua poltrona com o olho azul pregado no tecto e eu, ao lado, a fazer o relato das acrobacias dos ginastas da team GB. Ela ria e batia palmas.

Agora grita, quando a pontada lhe atinge as costas, 'Turn it off!!!! Turn it off!!! Please! Turn it off!!!' e eu fico sem saber se ela está a falar da dor ou da vida. Quando a pontada lhe atinge as costas (está amansada pelos analgésicos), suspira profunda e sonoramente, como se fosse um pirata 'Aarrrggg!!!!' e depois diz baixinho ' I can't take this anymore!', eu sei que ela está a falar com Deus. Ela que sempre foi ateia, … a falar com Deus!
Os dias, agora, são passados em silêncio, que é a forma mais correcta de se estar numa sala de espera. De vez em quando, há uma impaciência e um grito, um atirar a mesa para o fundo da cozinha. Qualquer interrupção do silêncio, por mais de dois minutos, leva com um 'Aarrrggg!' e … ficamos assim.
Os netos, antes, telefonavam amiúde e ela perguntava sem pudor 'Como vai a vida amorosa?' e, depois do telefonema, perguntava-me o mesmo a mim. E ria-se. Ou franzia a testa, quando era caso disso. Ou resmungava comigo, que assim não ia lá. Agora, os netos já raramente telefonam e ela também já não tem conversa para eles. O telefone incomoda e quase não se percebe o que dizem do outro lado pelo que ela opta por perguntar apenas 'como vão as coisas contigo' sem se importar com a resposta e despede-se 'All good for the next adventures!', que é uma coisa que vai bem com tudo.
De vez em quando pergunta-me 'And what's next?' e a seguir, que vamos fazer? e eu nem sei como responder. A resposta correcta seria esperamos um pouco mais. Depois, almoçamos. E depois, … esperamos. Às cinco, tomamos o chá que já não te sabe a nada. Darás uma golada e dirás 'Obrigada! Não sabe a nada! Não quero mais!' e será mais um pacote de Twinings pela banca abaixo. Depois, … esperamos. À noite recusarás o jantar depois da segunda garfada. 'Muito obrigada! Estava delicioso! Não quero mais!' ou, se estiveres de mau humor, como é frequente no final do dia, dirás 'it's discusting' e empurrarás o prato para longe. Depois, iremos para cima outra vez num ballet difícil, com berros e tropeções, mão esquerda, mão direita, elevador a apitar escadas acima enquanto gritas 'quero sair' e finalmente havemos de ir para a cama e amanhã repetimos tudo outra vez e … esperamos. Mas não posso responder assim, embora ambas saibamos que é verdade. Digo que a filha deve estar a telefonar, ou desconverso perguntando se não quer usar o quarto de banho ou dizendo que hoje falei com a minha mãe e que ela lhe mandou um abraço. Desconverso um pouco até ela se esquecer da pergunta e me mandar um 'Aarrrrggg!', que significa apenas 'Cala-te! Fico melhor no silêncio!' e voltamos a esperar.

A morte é chata. Nunca mais chega, e a minha amiga, incapaz de se deslocar até à linha de comboio que vemos passar da janela, já não aguenta mais a espera.
Tem uma família maravilhosa. Na mesma aldeia, vive um dos filhos que, religiosamente, a visita pelo menos duas horas por dia. A mais velha, no Canadá, liga todos os dias às sete e veio de propósito, a semana passada, à Inglaterra, para visitá-la durante uma semana. A outra filha liga-lhe três vezes por semana e os telefonemas nunca duram menos de vinte minutos. O mais novo, liga ao domingo no final da tarde. Os vizinhos, malta de quarenta anos, trazem bolo para o chá de domingo. Mas ela já não consegue ouvir ninguém. É muita confusão. O cérebro mete-se no meio e grita 'Aarrrggg!'.
'Turn it off! Turn it off! Please turn it off! You should know how to turn it off! If not call your boss, he certainly knows! Turn it off, please! I can't take this anymore!'.
A vida não é isto. A vida nunca foi isto! A vida é ainda, para ela, uma casa cheia de filhos a brincar no jardim e é injusto que lhe tenham roubado isso. Isso sim, era a vida! Todos a correr à volta dela. Ela a estender a roupa no fundo do jardim e o telefone a tocar - havia um telefone no fundo da casa, para ela poder atender as chamadas do consultório do marido, mesmo quando estava a estender a roupa no fundo do jardim e a correr atrás dos filhos - preciso disto, tenho fome, é uma urgência. Fazer o bolo, alimentar as galinhas, apanhar a fruta das árvores, esquecer o primeiro marido que ela adorava mas de quem nunca mais pôde falar, remendar os joelhos das calças dos miúdos, tratar do marido, que era médico acima de qualquer outra coisa, e ela entendia. Isso era vida. Não isto. Correr, fazer, coser, assar, ouvir, correr, atender o telefone, ajudar nos deveres, correr, estender a roupa, rir, ir ao Canadá, ajudar a construir a casa de férias da filha mais velha, com as próprias mãos, até ser levada para o hospital de helicóptero. Ser importante, ser essencial, ser o centro. Isso era vida! Não isto! Isto, é que não!

Hoje, enquanto a guiava para a cama, agarrou-me as mãos com força - ainda tem muita força, foram muitos anos a ter muita força - cravando as unhas nos meus dedos, como faz quando quer bater no mundo com um pau, mas sabe que não pode. Disse-lhe 'Jean, larga as minhas mãos' e ela apertou ainda com mais força, com o olho azul, muito cego, a olhar para mim cheio de raiva. E eu disse ' Jean! Tenho de coçar o nariz! Se não largas as minhas mãos, vou coçar o nariz na tua cabeça!' e cocei o nariz no ombro dela, com força e ela desmanchou-se a rir e largou as mãos, mais relaxada, feliz por um segundo. Depois, deitou-se e gemeu 'Porquê a mim? Explica-me! Porque é que me roubaram tudo? Os olhos, as pernas, o marido que eu amava quando tinha 22 anos, os filhos, o jardim? O que é que eu fiz para merecer isto? Porquê eu? EXPLICA-ME! Se é assim, prefiro morrer!'


Texto de H.G.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Psiquiatria


*
Após ruptura afectiva com a namorada, há um ano e meio, retomou os consumos alcoólicos e de cannabis. Há dois meses intensificou-os depois de ler um post no Facebook dela, que interpretou como uma mensagem que lhe era dirigida.
Então, começou a ter insónias e a ouvir vozes. "- Ouço a mãe dela a dizer para a matar!"
Abandonou o trabalho e veio para Portugal com esse objectivo. Comprou um bidão de gasolina para pegar fogo "a ela, ao seu novo companheiro e à família dele!".
Continua a ouvir a voz da falecida, como "um eco na cabeça", a dizer para matar a filha.
"-Ela já teve um acidente de viação! Eu rezei e o acidente aconteceu! Até me senti melhor! Só depois soube que não morreram!"
Considera-se capaz de influenciar, com o pensamento, o destino de outras pessoas. Assegura que já anteriormente as suas ideias se concretizaram: "Eu dei uma semana à mãe dela, e ela morreu na semana a seguir!".
Nas últimas noites tem tido insónia total.
Está orientado, calmo e colaborante. Atenção captável e concentração mantida. Aspecto e vestuário cuidados. Discurso espontâneo e coerente, centrado na ruptura do relacionamento amoroso. Humor disfórico. Mantém ideação homicida. Nega outro tipo de actividade alucinatória.

*
32 anos. "Solteiro e descomprometido!". Vive com os pais. Sempre praticou desportos. Define-se como "muito inquieto, distraído e de extremos". Tem curso profissional. Há algum tempo, trata de cavalos. -"Sempre fui muito sensível. Os cavalos até se põem-se de pé para brincar comigo!”
Relata pensamentos confusos. Não sabia nada e começou a ler livros sobre o poder da mente “positiva” e teve um despertar espiritual. -“Coisas que me interessam, sou capaz de ler!”.
Começou a perceber cheiros e sinais, e a ter capacidade para interpretar os animais. Já há dez anos, ao passar por Fátima, sentiu uma espiritualidade muito forte.
Namorou e traiu a namorada várias vezes. Agora não, porque teme um castigo de Deus.
Tem um padre amigo, a quem está mais ligado. Gosta de passear pelas Igrejas, para ver como as põem para os fregueses.
Diz que se emociona com facilidade. Ontem “foi o pior dia da sua vida!”, por causa do falecimento de um gato. Di-lo cabisbaixo e até choroso.
Mantém consumo de cannabis, embora receie que o fumo possa atrair o mal. Não o quer suspender porque lhe causa elevação do espírito e porque um naturopata lhe disse que havia uma pessoa perto que ficava com todo mal que ele fizesse.

*
Casado. Tem 2 filhos. Trabalhou na construção civil. Desempregado há 4 anos.
Comprou uma mota pesada há uma semana e, desde de então, está em conflito com a esposa. Diz que ela o culpa de não ajudar com as despesas de casa e de ter gasto todo o dinheiro com a mota. Além disso, a esposa terá comentado a situação com um vizinho, o que lhe desagradou.
Ontem, depois de mais uma discussão, deu "um golpe em cada pulso" e tomou os medicamentos dela.
Sente-se "péssimo"... porque as coisas, em casa, não funcionam bem! A esposa não lhe fala, bloqueou-lhe as contas e hoje enviou-lhe uma mensagem a dizer que quer a separação. Refere não ter intenção de vender a mota, porque ... "não é pessoa de se rebaixar!"
Está colaborante e orientado. Tem aspecto cuidado, postura defensiva, contacto ocular escasso. Fácies triste. Humor depressivo. Discurso escasso e pobre, embora coerente. Timbre baixo. Sono e apetite regulado. Juízo critico mantido.
Já foi seguido em consulta de psiquiatria por perturbação de personalidade.

*
Trazido, algemado, pela GNR, por agressividade.
Há dois dias que está descontrolado. Ameaça matar os pais.
É já seguido em Psiquiatria. Tem consumos regulares de haxixe e má adesão a terapêutica. A mãe diz que recusa ou finge tomar a medicação.
Está verborreico e com discurso incoerente.
Acha que o mundo é uma luta entre as boas e as más energias, onde, às vezes, ganham as más.
Refere que foi uma “pequena confusão”. Sentiu coisas muito desagradáveis. Que os pais estavam possuídos. A mãe, pelo dono da TMN, que controla as linhas de telefone e o pai pelo dono da Google.
Tinha chegado a casa contente, com a cabeça cheia de pensamentos muito bonitos... de rir, de amor, de comédia. Foi para o quarto fumar e soube-lhe tão mal, que achou que podia ser algum veneno...

domingo, 9 de abril de 2017

Lembranças do Olimpo (28) - Jesus



Jesus, não apresentava qualquer sinal de tortura. Vestia uma túnica impecavelmente branca que contrastava com a tez bronzeada, de uma vida exposta ao tempo. Esboçou um sorriso afectuoso e respondeu:
- Ia a caminho do Vaticano, quando encontrei o Arcanjo Miguel, que me disse que tu andavas a identificar mitos que possam ser úteis a uma Religião futura. Como quero participar nela, apressei-me a vir ter contigo. Parece que já tens dois – ele e o Quixote. Será que eu podia ficar com o nº 3?
Hipólito surpreendeu-se e, para não dar parte de fraco, aumentou a parada.
- Meu caro Jesus! A tua história é muito imprecisa. O que consta nos Evangelhos, foi escrito mais de sessenta anos após a tua morte e por quem terá ouvido o que os apóstolos disseram de ti. É muito diz-que-disse, de pessoas com interesse em te glorificar. Não há fontes históricas romanas, porque o teu impacto imediato foi “demasiado insignificante”.
- Eu sei! Respondeu Jesus. – Mas pergunta o que quiseres que eu, se ainda me lembrar, respondo-te!. E, dito isto, reclinou-se na cadeira, simulando estar numa sessão de psicanálise.

- Então, antes de começarmos, diz-me se aquilo que eu penso saber de ti, é verdade! Nasceste em Nazaré. Eras um judeu praticante, que leu as Escrituras. Foste baptizado por João Baptista. Fizeste um ministério, de cerca de dois anos, nas aldeias rurais da Galileia e, nas duas últimas semanas, na Judeia, mais precisamente, nas festas da Páscoa, em Jerusalém, onde entraste montado num burro, copiando o profeta Zacarias. Alguns dos teus seguidores aclamaram-te como “Messias” e “Filho de David”. Foste ao Templo e viraste as mesas dos vendedores de pombas sacrificiais e dos cambistas, enquanto os insultavas de ladrões. Depois escondeste-te, e Judas denunciou-te. Foste preso e julgado por blasfémia, pelo sacerdote Caifás, que era a autoridade máxima dos judeus, que depois te enviou a Pilatos, por ser só ele que podia decretar a pena de morte, e que deu seguimento ao seu pedido.
- Confirmo, respondeu Jesus e Hipólito questionou:

- Desculpa a minha ousadia, mas gostava de saber se, com a tua pregação, pretendias, mesmo, dar início a uma nova religião?
- Se queres uma resposta simples, ela só pode ser: Não! Já ouviste falar no “efeito borboleta”? A minha profecia de que estaria próximo o Reino de Deus na Terra, foi capaz de mobilizar muitos dos descontentes. Inicialmente foram só os judeus que se sentiram ultrajados com a execução de João Baptista, mas, depois da minha morte, com o trabalho do Paulo junto dos gentios, o mito do Reino do Deus foi muito mais agregador de boas vontades que a da miríade de deuses pagãos que os romanos apoiavam.
- Mas se o Reino de Deus, que tu profetizaste, nunca chegou, como é que ele se transformou numa religião?
- É o tal efeito borboleta, onde um pequeno facto (no caso uma ideia) consegue incorporar outros e outros, até atingir uma grande dimensão. O Velho Testamento continuou activo, mas, agora, não só para os judeus. Para incluir os gentios, teve de rever algumas das leis mais “fundamentalistas”, como a que impedia o trabalho ao sábado, o consumo de carne de porco e outros alimentos considerados impuros e a obrigatoriedade da circuncisão. Depois, aos poucos, foi integrando os valores individualistas da cultura ocidental, até ao actual “American way of life”! Não sei se sabes, mas muitas culturas, ainda agora, secundarizam o indivíduo à sociedade, coisa que o cristianismo não promove.

Hipólito estava surpreendido. Sem querer perder a oportunidade, arriscou: - Queres então dizer que, no teu ministério, induziste pessoas a acreditar em coisas que se não verificaram!
Jesus não se importunou e respondeu, calmamente. – Sim! De facto, eu profetizei que estava eminente a vinda do Reino de Deus e que Ele iria impôr a sua vontade “tanto na Terra como no Céu”. Estava convencido que o ia fazer, que eu era o Seu último enviado, e que me dera autoridade para falar e agir em Seu nome. Só depois de estar umas horas na cruz é que caí em mim. Foi então que Lhe perguntei “Pai! Porque me abandonaste!”. Mas a mensagem que passou para a posteridade não foi essa. Foi que Deus ama cada individuo, independentemente das suas imperfeições e que deseja o regresso mesmo do pior de todos. Foi esta “inversão de valores”, onde “os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, que deu mote para que os poderosos se pusessem ao serviço de todos, com compaixão e sem grandes juízos.

- E para fazer valer a tua, era mesmo necessário teres morrido na cruz?
- Não estava nos meus planos. Eu, era um homem marcado na Galileia, onde o Herodes Antipas me chegou a considerar uma reencarnação do João Baptista. Quando entrei em Jerusalém já o Caifás estava de sobreaviso, de modo que, quando soube que os meus seguidores me saudaram com “Hosanas!”, me chamaram explicitamente “Filho de David” e aclamaram o “Reino” que estava a chegar, embora a manifestação fosse modesta, as forças de segurança passaram de alerta amarelo a laranja, que passou a “vermelho” quando entrei no Templo e derrubei as mesas dos cambistas e os bancos dos vendedores de pombas e comentei: “A minha casa será chamada casa de oração, … mas vós fizestes dela um covil de ladrões!”.

O médico ia de surpresa em surpresa. Ainda sem compreender a lógica de todo aquele processo, perguntou, como quem afirma: - Então, depois de uma afronta destas ao Templo sagrado de um povo, que tinha por Lei princípios ditados por Deus a Moisés, no dia em que celebravam em comunidade a Pessach - a "Festa da Libertação" dos hebreus da escravidão no Egipto em 1440 (a.C), que era a sua principal festa, a que todos os indivíduos do sexo masculino deviam participar, o que é que tu esperavas?
- Já te disse. Esperava que Deus surgisse do Céu, com os seus anjos, com grande poder e glória, e impusesse o seu Reino na Terra.

Hipólito, não resistiu e comentou: - Basicamente eras um escatologista radical que esperava que Deus interviesse na História, à semelhança do que dizia o Velho Testamento, onde Ele abrira o mar Vermelho, produzira maná no deserto e derrubara os muros de Jericó!
Jesus calou-se. “Escatologista radical” era um termo para pensar. Já lhe tinham chamado “exorcista” e “milagreiro”, mas “Escatologista radical” … . Endireitou a cadeira e sugeriu: - Se me vais aceitar com esse epíteto, prefiro o de “catalisador de efeito borboleta”, pois creio que foi o Deus que ajudei a criar que permitiu o desenvolvimento tecnológico do Ocidente, fundamental para que no mundo actual a Humanidade possa viver com algum bem-estar.

O médico concordou. – Ficas com o nº3.
Depois, saiu do automóvel, para se despedir.
- Essa coisa de procurar "fora da caixa", às vezes resulta, mas raramente beneficia o primeiro a fazê-lo.!, disse-lhe Hipólito. -Se encontrares o S. Paulo diz-lhe que eu admiro a sua coragem em levar a tua história a Roma. Aquilo é que foi meter uma lança em África.
Jesus, deu-lhe a bênção e subiu, ao som de trombetas, por um raio de sol que passava por entre as nuvens que, lentamente, se desvaneceram no ar.

Hipólito regressou a casa. Tinha que dormir sobre aquela conversa, para a conseguir integrar no que sempre lhe fora dito. Era muita informação para um só dia.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Milagres


Desde sempre que as pessoas esperam milagres em caso de doença ou outros azares.

São três as alternativas:

1: Pedir directamente a Deus, ou a um dos muitos deuses do mundo pagão.
É muito barato e, aqueles que rezam com regularidade, verificam que, de vez em quando, a oração é eficaz, pois algumas doenças curam espontaneamente e "não há mal que sempre dure! ...".
A ajuda divina pode ser pedida em privado ou em público. O deus grego, Asclépio/Esculápio, que se especializara em curas, tinha santuários em todo o mundo mediterrânico.

O bastão de Esculápio

2: Pedir a um indivíduo particularmente piedoso ou dotado, habitualmente designado como “carismático”, com capacidade especial para influenciar Deus.
Há pessoas que se especializaram em exorcismos e dedicam-se às doenças do comportamento que entendem como possessão demoníaca. Outros dedicam-se ao controle do ambiente. Honi, o desenhador de círculos, que viveu no 1º século AC, na Palestina, era conhecido pelas orações bem sucedidas a pedir chuva, o que, numa região sujeita à seca, levava muita gente a orações e a jejuns colectivos, que, algumas vezes, resultavam. Mas Honi era particularmente eficaz. Uma vez desenhou um círculo, colocou-se dentro dele e rezou: “Senhor do universo, os Teus filhos voltaram as suas face para mim, porque, aos Teus olhos, sou como um filho da casa. Juro sobre o Teu grande nome que não me vou mexer deste lugar enquanto não tiveres compaixão dos Teus filhos!”, e começou a chuviscar. Mas Honi não ficou satisfeito: “Não rezei por uma chuva destas, mas por uma chuva de boa vontade, de bênção e de graça!”. Então começou a chover com mais intensidade e durante tanto tempo que alguns habitantes de Jerusalém foram para o monte do Templo, que estava no ponto mais alto. O fariseu que era chefe naquele dia, teve uma posição ambígua em relação a Honi e ao seu feito: “Se não fosses Honi, declarava-te anátema! Mas o que hei-de fazer contigo? Importunas Deus e Ele faz o que tu queres, tal como um filho importuna o pai e ele faz-lhe a vontade!” – Honi tinha um relacionamento íntimo com Deus.

3: Pedir a um Mágico. Os mágicos não fazem milagres devido à sua relação especial com um deus. A magia baseia-se na aplicação particular de uma cosmogonia, segundo a qual existe uma Grande Cadeia de Seres na qual tudo está ligado e que a manipulação de determinados elementos comuns, influenciam os seres imediatamente acima e assim sucessivamente, até à divindade.
É possível alugar um mágico e fazer com que a divindade cumpra os nossos desejos.
Quando a magia tem por fim prejudicar alguém, tem o nome de “Magia Negra”, quando visa a cura de doenças ou outros males, tem o nome de “Magia Branca”                                                  


sábado, 1 de abril de 2017

S. Pedro de Verona


Pedro Mártir - Verona (1205-1252). Era filho de uma família cátara. Entrou para a Ordem dos Dominicanos e, de 1230 em diante, pregou contra a heresia, especialmente contra o Catarismo.

Em 1234, o Papa Gregório IX nomeou-o Inquisidor Geral para o norte da Itália, onde ganhou fama de "Zeloso Demolidor das Heresias".

Como tal, deve ter participado na Cruzada contra os Albigenses (1209-1244) que se caracterizou por grande violência contra aquelas comunidades pacíficas, que viviam no norte da Itália, no reino de Aragão, no condado de Barcelona e na região do Languedoque, a sul da actual França, onde morreram milhares às mãos do Santo Ofício, muitos deles queimados em "autos de fé", unicamente por professarem uma crença diferente da sua.

Quando um grupo de cátaros o matou, numa emboscada, com um machado na cabeça, caiu de joelhos, molhou o dedo no seu sangue e escreveu no chão: "Credo".



Pedro foi canonizado pelo Papa Inocêncio IV em 9 de março de 1253, a mais rápida canonização feita por um papa.