domingo, 27 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (4)


Finalmente chegara sábado. O dia estava quente. Hipólito vestiu-se desportivamente e deu-se um leve aroma a pó de talco, por saber que ele enternece as mulheres maduras. Naquele encontro sobrenatural não queria decepcionar. Sorriu na antevisão de uma conversa agradável com uma das deusas que mais admirava. Ela, que só aparecia aos mortais apenas como um par de olhos, deixara que ele a visse inteira e até tocasse a sua carne.

A viagem foi rápida. Parou o automóvel e, de imediato, surgiu uma vestal que o levou até uma porta lateral do templo. Hera aguardava-o. Vestia um quíton de linho branco bordejado por uma faixa de amarelos, violetas e vermelhos, representando pássaros. Na sala duas mulheres com túnicas rosadas teciam um tapete.

- Bom dia, Dr. Hipólito. Bons olhos o vejam!, disse. - Vai ter o privilégio de ser recebido no gineceu, onde só os homens da casa podem entrar! E, ao dizê-lo, as presentes, levantaram-se e fizeram-lhe uma vénia.
Hipólito agradeceu pondo as mãos junto ao peito, e ofereceu a Hera uma romã, símbolo da fertilidade, do sangue e da morte.

Enquanto se dirigia a um canto da sala, onde duas poltronas LC3 de Le Corbusier os esperavam, Afrodite, de uma porta lateral, lançou-lhe um sorriso sedutor, que quase o fez tropeçar. Hera deu-lhe o braço e sentaram-se. Na mesa em frente havia taças com azeitonas, figos e amêndoas e uma garrafa de hidromel. Hipólito sentiu-se tomado por um encantamento e, quando veio de novo a si, a deusa iniciara a conversa.

- Dr.! Chamei-o para lhe dizer o que penso sobre os planos do meu marido. Ele deve-lhe ter falado numa prospecção de mercado com vista a um eventual regresso e num projecto a que chamou “Multidão Solitária”. Não acredite! Ele falou consigo e com mais um ou dois. É da velha guarda. Só ouve quem quer e, mulheres … nunca. Para ele as mulheres são para estar em casa a cuidar dos filhos. Ainda não percebeu que a pílula nos possibilitou entrar em força no mundo do trabalho e de nos tornarmos decisoras sobre o que ele pensa ser o “mundo dos homens”. Na idade de entrarem para a universidade elas são muito mais responsáveis e levam vantagem sobre eles. Já quase não há daquelas que estão à espera de quem as cuide, disponíveis até para as infidelidades. Quando era nova aturei-lhe todas as traições. Agora, se ele voltar ao mesmo, associo-me aos filhos e não o deixamos entrar aqui. Ele que vá dormir onde quiser.
Também lhe quero dizer que, depois de ter inventado o deus único e universal, já não acredito que o Homem queira voltar para nós. Substituíram a diversidade e imaginação que lhe proporcionávamos, pelas histórias rocambolescas dos santos e pouco ficaram a perder.
Para mais, e em termos gerais, o Homem está convencido que é o ser mais inteligente do Universo, por ter dominado parte dos seres vivos da Terra. Se ele pensasse bem, iria ver que em grupo é muito irracional. Há-de morrer no meio do lixo que fizer, a queixar-se de um qualquer fenómeno natural.

- Eu sei, dona Hera!, retorquiu o Dr. Hipólito. – Estou nessa onda! Mas tem de admitir que só agora a globalização pôs a nú as grandes assimetrias entre os países ricos e os países pobres. Vocês, deuses, é que podiam dar uma ajuda, para evitar uma catástrofe planetária. Caso contrário só se safarão aqueles que conseguirem sair da Terra e colonizar um planeta fora do sistema solar.

- Não conte com isso!, respondeu Hera. – O Homem está condenado. Andam para aí uns ficcionistas a dizer que em vez de ir um humano já formado, enviam-se ovos masculinos e femininos congelados, ligados a uma placenta electrónica, que se pode manter inactiva séculos e só se reactivar quando chegar a um destino favorável. E que a sua educação seria garantida por um programa informático. Nem pensar! 
Daqui a 4.500 milhões de anos, quando se acabar o hidrogénio do sol e ele se transformar numa supernova, todos os planetas serão atraídos para lá e … acabou-se. Já viu a quantos anos-luz está a próxima estrela? E ainda por cima com o Universo em expansão! As distâncias de hoje não serão as de amanhã! Para o impedir, nem uma chuva de milagres seria suficiente.

- É por isso, caro Dr., que eu ando a convencê-lo a sair daqui e estabelecermos-nos numa outra galáxia mais estável. Já pesquisei e, na Andrómeda, que fica a dois milhões de anos-luz da Terra, há um planeta que me pareceu cinco estrelas. Tem uns seres vivos engraçadíssimos, inteligentes e amorosos. São de uma originalidade a toda a prova e não têm nenhum deus que os ouça quando estão recolhidos em pensamentos. Tenho-os observado e sempre os vi colaborantes, mesmo nas dificuldades. Pode não acreditar, mas lá não há chicos-espertos! O único senão é o cheiro. A química orgânica deles não é à base do carbono é à base do silício. Eles não notam, mas quem chega …! São vermelhos e voam. Que me diz?

O Dr. Hipólito, rodou o copo nas mãos, levantou os olhos e atreveu-se a perguntar.
- Dona Hera! Já ouviu falar do Big-Bang? Se aquilo que o Stephan Hawking anda para aí a dizer for verdade, então o universo pulsa e, quando ele se comprimir, vai tudo à vida e os deuses também. Estejam eles onde estiverem.

Hera desconhecia aquelas projecções. Incomodada por ser um humano a levantar-lhe o véu desse futuro, foi para a janela e, como se falasse para alguém no exterior, disse: -Dr. Hipólito! Ouviu o que eu lhe tinha a dizer. Sei que o meu marido vai tomar uma decisão para breve. Espero que ela não vá contra os meus desejos, pois uma turbulência nesta casa, ultrapassa as suas paredes. Nós ainda temos muito poder sobre as forças naturais e … quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. É assim que vocês dizem, ou não é!
-Agora venha! Vamos visitar Afrodite que ela parece ter engraçado consigo. Sabe! Zeus pensa que ela é filha dele e da ninfa Dione, mas não é! Ela nasceu da espuma que surgiu, quando Cronos, que era o pai dele, cortou os genitais a Urano e os arremessou ao mar. É por isso que ela é tão leve. Não se preocupe com o Hefesto. Há séculos que estão divorciados.

E saíram para a ágora onde, junto a uma fonte, Hércules se sentava pensativo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (3)


Os dias depois de um evento extraordinário são difíceis para qualquer mortal. Mas quando um deus, mesmo que aposentado, nos dá a honra do seu convívio, os mistérios da vida mudam de significância e o futuro ganha outra dimensão.

Ainda atordoado pelos eventos desse dia, Hipólito, regressara a casa, decidido a só voltar àquele Lar no fim-de-semana seguinte, para se dar tempo para ler umas coisas sobre Organização Política e Administrativa do Estado, Mitologia Grega, parafilias e ciúme patológico. Zeus manifestara-lhe vontade de voltar ao activo e Hera mostrara-lhe temer o regresso das suas infidelidades. A perspectiva era ter de viver no meio de um litígio conjugal de dimensões cósmicas.

A semana não lhe rendera como habitual. Dormira mal e um estranho sentimento de comiseração por aqueles deuses derrotados assomava-lhe frequentemente ao estômago. Evitara as tertúlias com medo de se descair com os colegas e mesmo em casa nunca aflorara o assunto.
Dois dias antes da planeada visita, depois de um árduo dia de trabalho, sentara-se no escritório a ler, quando um trovão seguido por um estranho vento lhe abriu a janela. Levantou-se perplexo, e reparou que no sofá da frente Zeus se sentara, de perna traçada e raio na mão.
- Que é feito de si, meu amigo? Eu sei que em época de férias há muito que fazer, mas podia-nos ter avisado que alterara o esquema das visitas. O Dr. Euclides ia ao Lar duas vezes por semana.
Apanhado de surpresa, Hipólito, quase deixava cair o livro que tinha na mão, mas ao reconhecer a bonomia do visitante, levantou-se, cumprimentou-o com uma larga vénia e foi fechar a porta do escritório. Então justificou-se:
- Peço perdão, mas não me lembro de me ter sido dita essa regularidade. Fiquei com a ideia de só lá ir quando chamado. De qualquer modo, estava a planear uma visita no próximo sábado, com tempo para conhecer os utentes e as vossas especificidades. Há-de convir que não é fácil a um mortal prestar assistência aos sofrimentos divinos, para além de, ao que parece, querer falar comigo sobre assuntos fora da minha arte.
- Esteja descansado, Dr. Hipólito, que não quero fazer de si o Oráculo de Delfos. Quero unicamente a sua opinião. Estou a fazer uma sondagem de mercado, e o Dr. foi um dos seleccionados por ser "opinion leader" na área das ciências da saúde!. E, mudando de assunto, como se quisesse amenizar o ambiente, continuou: - Quando entrei, vi-o a ler um livro de contos do Mia Couto. Eu também gosto muito de contos. São uma arte. Um conto é tão difícil de escrever como um poema. É preciso dar-lhe ritmo da primeira à última linha. São muito eficazes para passar mensagens. Todas as religiões os usam. A Bíblia está cheia deles e a nossa Ilíada também.

A conversa informal reposicionara-os. Hipólito olhou Zeus ali sentado, quase humano, e retorquiu-lhe: - Não é todos os dias que um deus nos aparece. Confesso que, apesar da sua benevolência, temo que a minha ignorância vos possa causar incómodos. Houve algum inconveniente em não ter lá ido mais cedo?
- De modo nenhum!. Estão todos na mesma!, respondeu Zeus. – Eu é que, como tinha tempo, decidi dar um salto até aqui para ouvir a sua opinião sobre umas coisas que ando a congeminar!
Hipólito, pousou o livro, virou-lhe as palmas das mãos e respondeu:
- Faça favor. Sou todo ouvidos!

- Ora ainda bem que nos entendemos!, disse Zeus, e, abrindo a túnica, retirou de lá um cartapácio que colocou em cima da secretária. Hipólito leu na capa - “MULTIDÃO SOLITÁRIA – Projecto a implementar na Terra durante o Ano 2016”. Ao fundo tinha o seu nome romano - JÚPITER.
E Zeus continuou: - O meu público-alvo são as pessoas que vivem solitárias nas grandes cidades industrializadas, vítimas da desagregação social causada pela sociedade de consumo.
- Como assim?, perguntou o clínico.
- Dr. Hipólito, pense comigo. A actual família restrita – pai, mãe e 1 filho, cujo ícone é o presépio, só responde às necessidades dos adultos jovens, com saúde, emprego e dinheiro. Já nada tem a ver com aquelas famílias de outras épocas, onde debaixo do mesmo tecto era possível encontrar avós, parentes próximos solteiros e com frequência os filhos casados, netos e outras pessoas agregadas como os criados.
Perdeu-se a natural convivência das aldeias, provocada pela exigência de trabalho gratuito recíproco e quando se chega à idade de procurar emprego, o mais certo é ele estar longe da família e dos amigos. Como resultado o cuidado das crianças, dos anciãos e dos enfermos, tem passado para a responsabilidade do Estado ou para instituições autónomas, como creches, hospitais, Lares ou residências.
Ora é para a multidão que vive fora da tal família restrita, que eu me quero dirigir, organizando-as em grupos comunais onde o lema seja: ajuda, hospitalidade e amizade, integrando pessoas de diferente condição e sexo, debaixo de uma regra, à semelhança do que acontece ainda nos conventos, mas que, em vez de se dedicarem só a actividades pouco rentáveis, se possam dedicar a qualquer profissão.

O Dr. Hipólito, já lera algumas coisas sobre as comunas utópicas da Alemanha e Estados Unidos nos idos anos 60. Nunca as levara a sério e até admirava que se tivessem aguentado alguns anos, sem estarem sustentadas numa forte base material.
Considerava impossível que houvesse gente disponível a abdicar permanentemente de bens pessoais, pois, mais tarde ou mais cedo, os naturais conflitos entre os indivíduos iriam despertar reacções de poder que interfeririam com esses princípios. Para ele eram utopias de intelectuais entusiastas que viam no primitivo comunismo aldeão a possibilidade de alterar as bases das novas sociedades. O que Zeus tinha em mente parecia-lhe coisa semelhante e por isso respondeu que isso já fora testado e que dera sempre mau resultado.

- Sabe Zeus! O que agora se fizer tem de dar lucro em pouco tempo, e esse projecto não me parece rentável por se centrar nos desafortunados. Em minha opinião, deveria envolver em primeiro lugar os ricos, oferecendo-lhes vantagens que despertassem a curiosidade dos pobres. Se começar ao contrário, vão ser necessários uns milhares de mártires para quebrar a natural resistência à mudança. Não se esqueça que o Deus cristão enveredou por esse caminho e que, as circunstâncias acabaram por o levar a fazer vista grossa ao liberalismo selvagem.

- Caro Hipólito. O meu plano de negócio tem um braço na construção civil e um outro na ecologia. Se os acordos de Paris forem para a frente, pode facilmente candidatar-se a fundos da CEE. Ele cumpre os objectivos de redução de emissões de CO2 e prevê a recuperação dos centros históricos das cidades. Não vejo porque é que os financiadores não o hão-de apoiar. E engana-se ao pensar que a multidão solitária só é constituída por pobres. Há muitos ricos disponíveis, se houver garantias de qualidade.
Basicamente o conceito é criar múltiplos “conventos abertos” ao exterior, em que os seus membros possam circular, de acordo com os seus desejos, desde que cumpram a tal “regra”, que mais não é que um padrão civilizacional.
Não se pretende interferir com as famílias actuais, proponho só implementar uma filosofia de convivência naqueles que o acaso e as políticas que estimulam o individualismo, a massificação e a concorrência despiedada atiraram para a solidão.

Nesta altura Zeus entusiasmado, deambulava entre a estante e a janela. Depois parou, abriu o projecto num centro histórico de uma grande cidade de Portugal e chamou o médico para junto de si.
- Está a ver aqui. Nesta zona há imensas casas senhoriais degradadas que urge recuperar. São casas que não têm utilidade para as famílias nucleares e que cumprem plenamente as nossas exigências. Até dão para ter uma horta comunitária.
- Que diz?

Hipólito queria dissuadi-lo. Pareceu-lhe que Zeus parara no tempo e que não tinha conhecimento do que se passara na revolução bolchevique e, para o não ofender, disse:
- Eu só poderia investir nesse projecto se perdesse toda a minha família. Mas ia-me ser muito difícil viver em comunidade com gente adulta que ganhou hábitos muito diferentes dos meus.

Zeus olhou para o tecto, como se pensasse, e respondeu: -É para isso que eu cá estou!. Há que desenvolver a tolerância desde o berço para superar as diferenças culturais. Numa primeira fase terei de disponibilizar uma maior quantidade de milagres. Obrigado!
De seguida, pegou no projecto, despediu-se e desfez-se numa ondulante luz azul que atravessou o tecto ao som do ribombar longínquo de um trovão.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (2)

Dirigiram-se então à câmara de Hera. Zeus afastou um pouco as cortinas, e anunciou-os: - Querida! Chegou o Dr.! Podemos?
A cortina abriu e entraram num imenso quarto com portas laterais a dar acesso a outros aposentos, por onde circulavam jovens serviçais.
Passou por três estátuas representando as três graças - Thalia (juventude e beleza), Euphrosyne (alegria) e Aglaia (elegância) e dirigiu-se à janela onde Hera o aguardava, sentada numa cadeira de ébano com os pés imitando as patas de um leão.

- Boa noite!, cumprimentou o médico. -"Kalispera", respondeu Hera, convidando-o a sentar na cadeira da frente. Zeus afastou-se, dizendo: - Estejam à vontade. Eu tenho que preparar uma disputa com o Destino e não vos quero interromper. Dr.! ela fala pelos cotovelos. Se não tem cuidado, nem amanhã sai daqui.
Hera sorriu, puxou os cabelos para trás, confirmou a saída do marido e iniciou a conversa:
- Dr.! Antes de falarmos da doença, queria fazer-lhe um pedido, que deverá ficar só entre nós. Estive aqui a ver-vos passear lá fora, e pareceu-me que o meu marido simpatizou consigo.

O médico endireitou-se na cadeira, e para melhor garantir intimidade à conversa, inclinou-se, para a incentivar: - Diga dona Hera. Sou todo ouvidos!
- Dr. Hipólito! Há muito que Zeus quer voltar ao activo, não para dar um melhor rumo à humanidade, mas para voltar à gandulice e ir para o meio das jovens fazer-lhes filhos, sejam elas casadas ou solteiras. É isso que ele quer. Embora já não tenha as hormonas no vermelho, como antigamente, mantém-se lascivo e, se eu não tivesse mão nele, teria mais filhos que o padre de Trancoso. Agradeço-lhe que não o incentive. A nossa vida actual não é das melhores, mas viajamos e entretemo-nos, sem aqueles conflitos de outros tempos. Mas como está com pressa. Fiquemos por aqui. Veja o que pode fazer.
E passando ao assunto de saúde, quero dizer-lhe que esta minha tosse, começou há-de haver quinze dias, quando fomos a Marrocos visitar os nossos primos do Egipto - Osiris, Iris e Órus, que também se retiraram e compraram lá uma mansão. São uma gente muito antiga que parou no tempo. Vivem como há cinco mil anos. Nós que éramos para estar lá uma semana, não aguentámos dois dias. Arranjámos uma desculpa esfarrapada e fomos à Lapónia visitar o Odin. Ele tem casa na mesma rua do Pai Natal. Ora, eu não levava roupa para aquelas latitudes. Está a ver! Vir de um calor de assar e entrar naquele gelo … . Sorte foi não adoecermos os dois. Mas ele é feito da pele do diabo e nada lhe pega.

O médico sorriu e, enquanto abria a pasta para tirar o estetoscópio, respondeu:
- Dona Hera! Quanto ao primeiro ponto, quero dizer-lhe que é meu lema não me meter entre os assuntos do casal, para mais sabendo do que o seu marido é capaz! Por favor, ponha-me de fora. Eu vim aqui, por causa da sua tosse, não para resolver conflitos matrimoniais.
- Eu sei!, respondeu Hera. - Mas note que eu só lhe pedi para não o incentivar, não vá o Dr. descair-se e dizer o que não deve. Agora vamos à doença. Quer que eu tire a túnica ou ausculta-me à pescador, pelo decote?

O Dr. Hipólito mediu tensões, viu a orofaringe, auscultou, procurou sinais de disfunção de órgão e concluiu pela benignidade do quadro clínico. Prescreveu-lhe um antitússico e, quando arrumava o bloco de receitas, Hera segurou-lhe no braço e disse-lhe:
-Dr.! Eu sei que hoje está com pressa, mas, para a próxima, quando aqui voltar, quero que venha com mais tempo. Precisamos de falar.
- Está bem, dona Hera! Para a próxima venho com mais tempo, até porque vou ter de vos conhecer a todos e a funcionalidade desta casa. Respondeu o dr. Hipólito. Mas agora é tarde e a minha mulher deve estar a pensar que me aconteceu qualquer coisa para eu chegar tarde sem lhe ter dito nada. Posso telefonar daqui?

Telefonou. Depois despediu-se e a mesma menina que o trouxe, disponibilizou-se para o acompanhar até à saída dos aposentos, onde Zeus já o esperava. – Então? Perguntou. – Vamos ter outra noite sem dormir ou é coisa de pouca monta?
- Nada de especial. No entanto, caso os sintomas persistam deverá fazer uma radiografia. E dito isto entregou-lhe a receita e dirigiu-se à porta. 
A meio caminho reconheceu Hefesto, que coxeava na sua direcção com o avental de ferreiro e o martelo na mão. Era bem mais feio que alguma vez poderia imaginar, mas transparecia bondade no olhar. Pousou o martelo e questionou-o:  - Dr.! A minha mãe vai melhorar rápido? É que eu tenho de sair hoje para provocar uma erupção no Etna. Vai para um ano que me pediram umas cinzas para fortalecer os vinhedos e eu tinha isso marcado para a semana passada.
- Não vai haver problema! Ela amanhã está boa. Pode trabalhar com calma e por favor, não provoque grandes explosões, como aquelas do Eyjafjallajökull em 2010, que o meu filho regressa de férias e viaja de avião. Boa noite!
Zeus levou-o até ao automóvel e ficou até ver as luzes desaparecerem. Depois, deu um enorme salto e duas voltas ao planeta para se certificar de que Hélio conduzia o carro do Sol na devida órbita em volta da Terra, e voltou ao templo para descansar. Tinha uma ideia para regressar ao activo.   

domingo, 13 de dezembro de 2015

Lar Lembranças do Olimpo (1)


Era verão. Talvez Agosto. A cidade mantinha-se activa, indiferente à ausência dos que rumaram para Algarves e outras paragens, deixando para trás os problemas e as pessoas que deles esperam solução.
Então, exige-se a quem fica, não só um maior esforço, mas também que seja rápido a ler e a decidir as coisas que o acaso lhe põe à frente, se não quer ser surpreendido com o que já não têm solução. Para uns é uma oportunidade. Para outros um sufoco. São estas as regras do jogo nos tempos que vão correndo a que os médicos também não conseguem escapar.

Nesse dia, o Dr. Hipólito, internista de renome, recebera um telefonema de um grande amigo, a pedir-lhe para assumir a assistência a um Lar de Terceira Idade, com o sugestivo nome de Lembranças do Olimpo.
Apontara a morada e a hora 18:30h e, depois de uma jornada em que mal tivera tempo para almoçar, levara-se àquele extremo da cidade. Parou o automóvel onde o GPS dissera “chegou ao seu destino” e olhou em redor. O amplo parque dava acesso a uma alameda de grandes ciprestes, onde estacionava um SUV preto de vidros fumados, que lhe fez lembrar os do filme Matrix. Riu-se para dentro, enquanto pensava: - Devem ser idosos "muito p'rá frentex, os que por aqui param!". Confirmou a morada no mapa do Smartphone e apressou o passo em direcção ao edifício, que mais parecia lhe um Palácio da Justiça que um Lar de Terceira Idade.

As cidades actuais, minoram as grandes construções de outros séculos levantadas à força de suor e músculo, e o corre-corre a que nos obrigamos, só nos lembra que vivemos em cidades milenares, quando alguém nos chama a atenção para um muro em vias de sofrer as "delícias" do camartelo.

Ao Dr. Hipólito, as rápidas passadas dificultavam o entendimento da majestade daquelas paredes, rodeadas por um peristilo de mármore creme. Viera em modo automático, rebobinando os sucessos do dia e só levantara os olhos ao esbarrar com as imponentes portas de bronze, glorificando os triunfos dos deuses do Olimpo.

Identificava, num dos seus retábulos, Deméter semeando uma ceara de trigo, quando uma jovem o abordou, solícita, indicando-lhe o interior. Vinha descalça, envolta numa túnica branca esvoaçante e exalava em ténue perfume a relva recém-cortada. Os cabelos compridos balouçavam-lhe no amplo vão de um decote. Seguiu-a.

Passaram uma segunda porta de sólido castanho, também ela ricamente ornada com o que entendeu serem referências aos quatro elementos – água, terra, fogo e ar, e entraram numa nave imensa, ladeada de seis grandes dosséis, e dominada ao fundo por um trono de ouro e marfim, com múltiplas incrustações de pedras cintilantes, onde um velho o aguardava.
Estava envolto numa manto vermelho, que lhe deixava a nu mais de metade do tórax, tinha a mão esquerda apoiada num ceptro encimado por uma águia e na direita um raio azul, onde assomava o escuro rugoso da ferrugem. Fez um gesto de cabeça sugerindo que se aproximasse.

O Dr. Hipólito subiu um degrau e estendeu-lhe a mão, como a querer cumprimentá-lo, mas conteve-se e dobrou-se numa vénia. Aquele corpo, não escondia a força. A testa enrugada de muitas contrariedades, terminava numa coroa de ramos de oliveira e prolongava-se por um manto de cabelos e barba brancos até ao cavername do peito. O ancião levantou-se e desceu os três degraus, sorrindo, até ao médico e, como se uma familiaridade os unisse há séculos, com voz suave, onde transparecia determinação, informou-o:

-Desculpe não o termos avisado do que iria aqui encontrar. Foi uma situação imprevista. O Dr. Euclides, que nos prestava assistência, faleceu há dois dias, e a minha mulher Hera, anda com uma tosse de não deixar ninguém descansar e, embora ela seja imortal, sofre e faz-nos sofrer.
E continuou: -Já vi que está a estranhar o lugar e, antes que dê azo a cogitações, quero que saiba que este templo é o refúgio que escolhemos depois de termos sido selvaticamente derrotados pelos cristãos, vai para uns mil e quinhentos anos. Temos aqui todas as comodidades, mas falta-nos a adoração dos homens. É esse o nosso maior problema. Estarmos inactivos. Só somos lembrados por meia dúzia de eruditos, nas suas palestras e, de vez em quando, damos orientações em filmes de guerra ou aos desenhos animados, mas já ninguém nos leva a sério e muitos até fazem chacota das nossas aventuras.

O Dr. Hipólito conhecia bem a vida dos deuses eternos. Quando vencidos pelos novos deuses, afastam-se e ficam à espera que o mundo complete um dos seus ciclos e possa reclamar de novo os seus serviços.
Reconhecera Zeus. Conhecia dos livros os seus defeitos e virtudes e tinha-o como um bom deus grego, que tentara jogar com o acaso para estimular o Homem na procura de soluções que lhe permitissem viver em comunidade mas que, como muitos outros, não se apercebera da evolução social e descurara a actualização.

Sentiu o seu braço encaminhando-o para as traseiras da nave, onde verdejava um imenso olival, e entraram num caminho de terra batida que se estendia até ao topo do monte, onde uma pérgula esperava os peripatéticos.

Um deus, nem sempre tem interlocutores humanos à sua medida. Zeus tivera o cuidado de recolher informações sobre ele e, concluindo que seria um bom conversador, aguardara-o, mais para saber a sua percepção da actualidade, que pela doença de Hera.
Enquanto esticavam as pernas pelo trilho e apanhavam os últimos raios daquele sol poente, Zeus reiniciou a conversa. Explicou-lhe as lutas e as cedências que os tinham arrastado para aquela situação. Falou da conquista da Grécia pelos Romanos e de eles lhes terem proposto a alteração dos seus nomes, coisa que a princípio até os lisonjeou, por verem crescer a sua cota no mercado da humanidade, mas que, quando se viram nas mãos dos maus senadores e generais romanos e quiseram lutar, já ninguém os conhecia pelos seus nomes antigos. Atena bem o avisou e nunca aceitou que lhe chamassem Minerva, mas os outros foram-se habituando e só se arrependeram quando se viram cair às mãos da cristandade.

-Sabe Dr. Hipólito, esta relação dos deuses com os homens nunca foi estável. Nós, deuses, temos de estar muito atentos, pois uma pequena ocorrência pode ter consequências dramáticas. Eu devia ter fortalecido a equipe e pôr no banco alguns dos meus deuses mais dados a extremismos. O Dionísio já não era bem visto na Grécia e quando virou Baco, em Roma, e o deixei organizar os bacanais, ele fez aquilo da pior maneira. Era “tudo ao monte e fé em deus” e a malta do poder começou a olhar para nós “al revés”, como se fossemos todos farinha do mesmo saco, e a coisa foi de mal a pior, até o Imperador Constantino em 321, começar a proteger os cristãos. Aí tivemos de fugir, porque logo que sentiram as costas quentes, desataram a inventar mentiras sobre nós e a profanar os nossos templos. Foram tempos terríveis. Nas aldeias e nos locais mais remotos ainda nos conseguimos aguentar uns séculos, a planear um regresso, mas quando chegou a Inquisição, ficaram todos aterrorizados e deixaram de querer saber de nós. Nem o deus dos Cátaros, que era feito da mesma massa, resistiu. Sabe! Pode-lhe parecer conversa de velho, mas só quando, em 1624, o Papa Urbano VII mandou fundir as placas de bronze que forravam o Pantéon em Roma, que era a casa de todos nós, para construir o baldaquino na Basílica de S. Pedro, é que perdemos a esperança de um dia voltar a ter quem se nos dirigisse nas aflições.

Chegaram à pérgula onde crescia um jasmim de cheiro tão aveludado, que Eros o teria usado nas suas setas para enfeitiçar os amantes, e sentaram-se, recebendo a aragem fresca do fim da tarde.
E Zeus continuou: -Naqueles dosséis, que viu no templo, dormem os meus familiares: a minha mulher Hera, os meus irmãos Poseidon, Deméter, Atena e Apolo, e os meus filhos Ares, Artemísia, Hefesto, Afrodite, Hermes e Dioniso.

A minha mulher, passa o dia sozinha. Já nem tem ciúmes de mim. Está chata e ressona. Então agora que constipou, incomoda toda a gente com a gosma. O meu filho Dionísio, que gerei na minha própria coxa, está com cirrose e mais amarelo que um canário. O que lhe vale é ser eterno. Não lê nada para se actualizar com as novas tecnologias da produção e comercialização do vinho. Se um dia nos chamarem de novo, vou ter de arranjar alguém fora da família para lidar com o assunto. O meu irmão Poseidon está cheio de reumatismo. Eu bem o avisei para se afastar da humidade dos oceanos, mas ele gostava das tempestades, o que é que eu ia fazer. Agora é aguentar e cara alegre. Cortou o dente do meio do tridente e usa-o como muleta. Assim, mantém alguma memória do passado, mas quando está chateado ainda sai e faz uma asneira, como aquela do tsunami no Japão.

-Mas voltemos antes que o sol se ponha, que eu quero que observe a minha mulher. Se a convencer a ir à Ítaca umas semanas era óptimo. Ela gostou da ilha quando lá fomos dar uma mãozinha ao Ulisses. Há lá cinco hotéis. Se for convincente, ela vai aceder.

O Dr. Hipólito ouvia e tentava enquadrar o discurso de Zeus naquilo que conhecia dos livros, sabendo ele que os livros são um reflexo da realidade filtrada pelos olhos do narrador, semelhante a uma árvore espelhada na superfície de um lago, que não é exactamente igual à própria árvore, e quando surgiu a oportunidade, questionou-o:
- É curioso que ainda tenha vontade de voltar ao activo. Deve ter observado que o mundo nos últimos cinquenta anos sofreu modificações difíceis de integrar em qualquer das antigas religiões e que se exigem deuses com outras atitudes. O vosso historial belicista é um problema e a tipologia do vosso bucólico não se enquadra bem no turismo rural. Falta-vos know how em smarphones, na política de inclusão de minorias, em globalização, e isto para não falar de problemas mais específicos como política de emprego nas sociedades competitivas, onde a robótica tende a substituir o trabalho manual.

Zeus ouvia interessado, anuindo com a cabeça, enquanto segurava na mão a fralda da túnica para a não pisar ao subir os três degraus que davam acesso ao vestíbulo do templo.

-Concordo consigo, mas não se esqueça que somos deuses e que aquilo que fazemos pode ser interpretado pelo Homem de modos muito diversos. É uma questão de falarmos com os exegetas de serviço e tomarmos conta dos meios de comunicação social. Isso para nós é mais fácil que para um partido político, e o Dr. Hipólito há-de convir que a população actual pouco exige aos poderosos. O nosso grande problema está nos outros deuses.
- Mas a quais se refere especificamente?
- Aos dois que actualmente mandam em meio mundo. Ao Deus cristão e a Alá. O cristão tem a maior multinacional do planeta e o muçulmano tem uma franchising sem padrão de qualidade, que alicia quem precisa de um livro único para resolver todos os problemas.
- E não tem medo dos deuses que andam pela China e pela India? Olhe que eles influenciam muita gente.
- Não! Esses deuses são inclusivos, não exclusivos como estes. Temos tido vários contactos com eles, não oficiais, e até já tivemos um plano para uma parceria. Eu dava uns mitos e eles, outros. Coisas a chamar a atenção para a pobreza e para o cuidado com o planeta, mas não andámos para a frente, porque eles queriam que eu afastasse definitivamente os meus deuses mais controversos, como o Ares, a que os romanos chamavam Marte, e o Dionísio. Mas também o Poseidon, por causa das moções. Dizem que ele tem tendência para o exagero e não confiam. Aquela malta do oriente é mais dada às contemplações e querem deuses mais zen.

Sentaram-se nas escadas que dava acesso ao trono. O Dr. Hipólito percorria com o olhar os dosséis de grosso veludo grená, quando Zeus lhe perguntou: -Acha que a crise de valores que actualmente assola a humanidade poderá constituir uma oportunidade para nós, ou será que vamos ter de esperar mais?
-Não sei! Respondeu o médico. – A vossa imagem não é das melhores. Há histórias que lutam contra vós. Eu, por exemplo, sou discípulo de Esculápio, e mantenho vivo, como símbolo da minha profissão, o seu bastão, e nunca irei esquecer que fostes vós que o mataste por ele ter ressuscitado um paisano com o meu nome, só porque achaste que ele tinha pensamentos demasiado grandiosos para um homem. Mas há outros que se queixam de outras coisas. Se vocês aparecerem de novo, ou vêm apoiados num marketing agressivo, ou estais feitos. Para além disso, pelo que disseste e vejo, muitos de vós perderam a Esperança e a força para arrastar multidões.

Zeus, coçou os cabelos enquanto pensava na resposta seguinte. De facto Atena ficara muito perturbada com as derrotas. Perdera o escudo e passava o dia a fazer crochet. Ares, a quem os romanos chamavam de Marte, se já não era bom da cabeça quando estava activo, não melhorara com aquele repouso. De vez em quando, punha-se a gritar para as paredes a dizer que elas não sabiam quem ele era, e era ele que o tinha de acalmar com o raio. Hefesto, ainda dominava o ferro, mas nada sabia das novas ligas e de plásticos. Nem com Afrodite podia contar. Ela que fora a deusa do amor, vestia-se unissexo e raramente usava saias. Só poderia contar com o Hermes que, por ser patrono dos ladrões e guia dos mortos, se mantivera sempre ocupado. Para mais aquelas asas nos pés tornavam-no extremamente ecológico.

Levantou-se das escadas, atirou a túnica para cima do ombro esquerdo, e enquanto dava a mão ao Dr. Hipólito para o ajudar a levantar, olhou-o nos olhos e disse: - Acho que tem razão. Vou ter de dar uma volta no staff. Com este não me safo. A solução está nas Parcerias!.
E dito isto avançou até ao bar onde Dionísio experimentava cocktails. Zeus pediu um daikiri e o médico, depois das apresentações e de um longo aperto de mão, pediu um guaraná.
De seguida, encaminharam-se para o exterior para apreciar o ocaso. Zeus ia contar a história de Faetonte, mas o Dr. Hipólito, pôs-lhe a mão no braço como a dizer-lhe que já a conhecia e que o momento deveria ser aproveitado para uma reflexão sobre o que tinham acabado de falar, e assim ficaram até o sol desaparecer no horizonte. Então o médico levantou-se e disse: -É tarde! Eu tenho a minha família à espera e fiquei sem carga no telemóvel. Hei-de vir cá mais vezes e com mais tempo. Agora vamos lá auscultar a sua esposa a ver se consigo dar com o remédio sem ter de recorrer a meios auxiliares de diagnóstico.
E dirigiram-se ao dossel nº2.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Pós-operatório


Quando se juntam cirurgiões apressados a doentes surdos, é mais que provável surgirem cenas pouco aconselháveis a ouvidos sensíveis. A história tem décadas e foi passada numa enfermaria de cirurgia de um hospital central do Porto, onde o vernáculo tinha honras de erudição.
Uma idosa, meio surda, recuperava de uma cirurgia abdominal. O cirurgião (Dr. C.G.) aproxima-se, seguido do seu séquito, e pergunta-lhe: - “A Sra. tem tido gases?”, e a doente, responde: - Não! Sr. Dr.! Eu cozinho a carvão!
Espantado com a réplica, o Dr. C. G., para não lhe deixar dúvidas, questiona-a, então, em sonora voz: - “A SENHORA PEIDA-SE?”, ao que esta lhe responde no mesmo registo: - “Oh Sr. Dr.!!!! ... Como um cu aberto!”
...
E tudo está bem, quando acaba em bem!

domingo, 29 de novembro de 2015

O irmão do Facadas



E ao fim de meia hora, chegou o “Facadas”. Registou o irmão que estava como “laranja - não identificado” e entrou no gabinete. Finalmente havia uma história.

A enfermeira do INEM que trouxe o doente, pouca informação dera. A VMER encontrou-o à porta de um café, com grande espasticidade e desvio conjugado dos olhos para cima, amarfanhando um velho trapo amarelo de limpar as mesas, junto à boca persistentemente aberta, onde pontuavam três únicos dentes meios podres. Sinais vitais normais. O irmão, o tal “Facadas”, que estava junto, não aparentava muita preocupação e pedira para lhe telefonarem quando ele estivesse bem.

- Faça o favor de se sentar! O que é que se passou?
- É assim! Ele bloqueia! ... Mas isso é mais … da … “ugia” … da … cabeça!
- Hoje esteve consigo o dia todo?
- Não! Ahhh! Eu vou-me embora no domingo. Para França! … Trabalhar na construção civil!
- E ele? Trabalha?
- Ele ... não faz nada! ... Está reformado! Do remédio da cabeça!
- É epiléptico?
- Ai não sei! Isso aí …!
- Você está sempre em França?
- Eu estou de vez em quando e ... hoje, convidei-o para jantar e ele … bloqueou! … Que ele bloqueia mesmo!
- Então, você não vive com ele e só o convidou para almoçar?
- Ahh! Oui!
- E então o que é que aconteceu?
- Nada. Bebeu uma garrafinha de água, que ele não bebe álcool e ... bloqueou!
- Mas teve movimentos esquisitos?
- Ai teve! Mas o que eu não achei graça, foi mandarem dois carros do INEM para lá!
- Porquê?
- Dois carros? Eu só disse que o meu irmão não estava bem. Que começou a revirar os olhos em branco. … Por amor de Deus!
- Então ele estava a revirar os olhos?
- De que maneira!
- E há quanto tempo está você em Portugal?
- Ora vamos lá ver. … Quatro meses!
- E nesse tempo você deve-o ter visto várias vezes. Ele andava bem, a falar direito?
- Isso… !!! … Eu vou-lhe ser sincero! … Aqui há uma coisa! ... A senhora dele não fala com nós! Pode ser minha mãe. … E eu sou mais velho que ele! … É uma senhora já de idade! … Dói muito! … Nem à morte do meu pai veio! ... Mas sou o único e disse-lhe: Anda embora comer! Mas come devagar! … O Sr. Dr. sabe o que é um leão? … É ele a comer!
- Mas ele engasgou-se?
- Não! Não se engasgou! Eu pedi à senhora do Café para chamar o 112, e ainda não percebo porque mandaram dois carros do INEM! … Hay que pagar, ...  aãã!!!!, e pode haver pessoas a…
- Não “hay que pagar” nada, esteja descansado!
- É que … eu já o vi! E … daqui a bocado, … ele está bom!
- E quando ele está bom, o que é que ele faz?
- Então é assim! … Quer que lhe explique? … Quando recebe a reforma dele, anda tudo bem. Quando acaba o dinheiro e não há cigarros, pronto … “bareia”!
- E ele não toma medicamentos?
- Ui! ... de que maneira!?
- E hoje terá tomado?
- Não lhe posso dizer nada. … Isso não sei! Mas a Maria dele, trabalha aqui perto, e sabe os remédios.

O “Facadas” é coveiro de nove cemitérios. Diz que fez o teste de “coveiro profissional”” e que, de vez em quando, “também veste o fatinho” para as cerimónias, mas o trabalho não é regular, e vai para França “ganhar o seu”, porque “ele não cai do céu”. À saída disponibilizou-se para avisar “a Maria dele”, mas não foi necessário, porque se fez o diagnóstico de síndrome extrapiramidal dependente do haloperidol, que o doente trazia num dos bolsos, e que reverteu completamente com 5 mg de Biperideno.


A graça da história é que, apesar de alcoolizado, o “Facadas” deu as dicas para o diagnóstico e, uma hora depois, o doente estava a caminho da sua Maria, com a Nota de Alta dirigida ao psiquiatra, para reduzir a dose ou suspender o haloperidol, para acabar aquele “bloqueio”.

domingo, 22 de novembro de 2015

A Insónia


-Ãaiinnnn! Ãaiinnnn! Ãaiinnnn! Ãaiinnnn! Gemia na cadeira de rodas à entrada do Serviço de Urgência. Atrás, uma jovem gorda, constrangia-se com aquele queixar insistente. Ao lado, um velho magro de barba branca de quinze dias, todo vestido de preto, espreitava para dentro de um consultório, como que a pedir urgência para aquele sofrimento.
O médico interrompe o registo anterior e aceita, de imediato, aquela “pulseira laranja”.
- Faz favor de entrar! Só um acompanhante, por favor! O outro terá de esperar lá fora!
Acertam-se. Fica o chefe do clã e a filha da doente sai para o exterior.
-Sr. Dr.! Dê-lhe um Arpesgic! Sr. Dr.! Que ela está com a dor. Já da outra vez só passou com Arpesgic!
O gemido mantém-se, continuo, envolvido em inquietação. É uma hipertensa medicada também com ansiolíticos. Tem história de frequentes cefaleias com as mesmas características e com forte componente psicossomático. Há suspeita de incumprimento terapêutico e o exame neurológico é normal.
- Vá ali à sala da frente, que a enfermeira vai dar-lhe o Arpesgic e mais um comprimido. Depois vai deitar-se numa maca até melhorar! Pode ir até lá, que eu já falo com a enfermeira!
Confirma-se a efectivação dos cuidados e passa-se ao doente seguinte, que há gente continuamente a chegar.
Uma hora depois, junto à maca da doente, está o chefe clã a segurar-lhe na cabeça e dar-lhe bofetadinhas na face. A filha, assustada, parece não saber o que fazer. A doente, sonolenta, tenta perceber o porquê de a terem assim acordado.
-Oh homem! Deixe a mulher descansar! Porque é que lhe está a dar bofetadas na cara? pergunta o médico.
-Sr. Dr.! Ela estava a ter uma Insónia! Sr. Dr.! Já da outra vez foi igual, também lhe atacou a Insónia. E quando lhe dá a Insónia ela fica quase sem falar!, responde ser interromper os gestos, que já é alvo da atenção de metade daquele corredor.

-Já percebi! Mas deixe-a descansar e dormir um bocadinho, que esse tipo de Insónia não é perigoso e passa se ela dormir. Deixe-a ficar aí quietinha e espere lá fora que é a vez da filha ficar com ela. Está bem?! Eu vou ficar aqui por perto. OK!

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Higiene CUrrecta



Comecemos por uma anedota com mais de 30 anos.

Um dia, depois de um confronto físico de dois miúdos, o “perdedor”, despeitado, dirige-se ao outro, ameaçando-o, entre lágrimas:
- Vou dizer ao meu pai que me bateste. Vais ver o que vais levar!
E aí começa um diálogo, com dedos no ar, a ver quem ganha.

-E eu, … vou dizer ao meu, que é polícia, e ele vem e bate no teu!
-Mas o meu pai é … muito grande e ... fuma muitos cigarros!
-E o meu também fuma e … deita fumo pelo nariz e tudo!
-Mas o meu pai é mais mau que o teu e ... até deita fumo pelo cu!

Aí o “vencedor” pára para pensar e, antes de se dar por derrotado, questiona-o:
-Olha lá! Tu viste mesmo o teu pai a deitar fumo pelo cu?

Ao que o pequenote, responde timidamente:
-Ver, ver, não vi! Mas vi 
nicotina nas cuecas dele!

Ora é aqui que eu quero chegar. A qualidade do papel higiênico não impede a deposição desta "nicotina" na roupa interior. É necessário água e mais qualquer coisa. Ponto final.

A Europa do Sul deu espaço ao bidé. Os muçulmanos e hindus optaram por uma torneira junto à sanita (e a mão esquerda) ou um jacto que sai do seu interior. Os anglo-saxónicos, ao que parece, optaram por toalhetes.

Seja como for, o banho checo é obrigatório para quem gosta de andar limpo e é fundamental para os que padecem de hemorroides. Além do mais, o uso da água nestas abluções, economiza papel, o que diminui a pegada ecológica.

E tudo isto porque me disseram que alguém da administração do Hospital onde trabalho, decidiu que um chuveiro (para 1 banho diário) que facilmente poderia ser adicionado ao equipamento existente, deveria sacrificar um bidé, já lá instalado.

domingo, 15 de novembro de 2015

"Professor Doutor"



Profissionalmente, estava longe de ser brilhante. O doutoramento culminou uma amizade com uma doença, como se ela fosse um refúgio para as dificuldades do primeiro projecto em que se metera.
Nada contra, mas o título de "Professor" para um doutoramento, que mais não é que uma "competência", para quem não se dedica primeiramente ao ensino, é, na falta de melhor entendimento, uma incorrecção linguística.

Para que se  desfaçam dúvidas, informa-se:
Em Portugal, doutor significa que se doutorou. Os apenas licenciados, como os licenciados em Medicina, em Farmácia, Filosofia, etc., são também doutores. A diferença está no seguinte; para os doutorados, doutor é um grau académico; para os licenciados doutor é um título. 
Na linguagem escrita, há quem distinga o doutorado, escrevendo doutor (com todas as letras); e para o licenciado, dr. (em abreviatura).
Quando o doutorado é professor universitário, costuma-se, às vezes, distingui-lo com o tratamento de professor doutor.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O Morto Adiado


Está no caixão, no meio da sala, confortável depois do banho, vestido com um fato que há décadas lhe não servia, de camisa branca e com aquela gravata preta para aos funerais dos outros. Puseram-lhe entre os dedos um terço de plástico, mesmo sabendo-se que só ia à igreja nos rituais e que mal sabia recitar um Padre-nosso.
Configura um pequeno presépio, “como manda o figurino”. Um menino Jesus, em grande, rodeado de flores. Aos pés, um pequeno painel com o seu nome e uma fotografia dos tempos em que era alguém. A família em redor, os amigos dispersos pela capela mortuária misturados com “conhecidos”, que ali foram por não terem mais que fazer, que o tempo da reforma também serve para isso.
Está morto há mais de vinte e quatro horas. Para ser preciso, e depois de analisados todos os registos hospitalares, poder-se-ia dizer que esteve ausente deste mundo dois anos, quatro meses e cinco dias, depois de um acidente vascular cerebral lhe ter baralhado todos os sentidos e o ter deixado a aguardar que aquele corpo ficasse sem força para lhe prender a alma.
Desse tempo, onde todos os sons lhe pareceram iguais e em que não entendia os porquês daquele mal-estar que a tempos se exacerbava, não tem memória precisa. Só depois do último suspiro e de ter visto o médico a preencher a sua certidão de óbito, é que começou a organizar-se de novo. Quer sair em paz deste mundo, pelo que decidiu ficar até ao final do seu enterro para saber o que se passou. Tivesse morrido na hora do AVC e tinha o problema resolvido, mas tanto tempo depois, sem ter consciência de si, fá-lo questionar da “utilidade” de lhe terem prolongado esta pseudo-vida.
Pairou pela capela e aproximou-se das conversas ao lado do seu caixão. Percebeu que esteve sempre internado em hospitais, em Unidades de Cuidados Continuados e num Lar, porque a sua família não tinha condições para lhe garantir os cuidados que o corpo exigia. Ouviu falar de médicos, de enfermeiros, de inúmeros exames, das sondas, das fraldas e das algaliações, e da falta de lugar para tamanha Esperança e quase concluiu que ele não passou de uma “área de negócio” para os prestadores de cuidados de saúde, que multiplicaram análises, exames, observações, remédios e internamentos, para o manterem todo esse tempo a respirar. Depois olhou para os olhos chorosos da sua companheira e sentiu-lhe o desamparo agravado pela perda da sua reforma que tanto a ajudava nas coisas do dia-a-dia – tanto dinheiro gasto inutilmente consigo, que poderia ter sido aplicado no bem-estar da sua ex-família -, ao menos essa prolongou-se.
Ouviu da boca do padre as palavras da circunstância e um texto de S. Paulo sobre a ressurreição e a vida eterna, lido com tal alegria, que deve ter causado a algum dos assistentes uma estranha vontade de morrer, não por desânimo com a vida, mas por entusiasmo com a morte.
Ouviu os sinos, assistiu ao descer da sua urna e acompanhou os últimos assistentes à porta do cemitério. Depois, voltou à campa e pasmou com a pequena flor despercebidamente deixada pela sua primeira namorada e preparou-se para subir às pastagens celestiais, onde os cálices transbordam, os jugos são suaves e os fardos muito leves.

Atrasado, mas com o sentimento de ter cumprido uma missão, deu três piruetas no ar e apontou, definitivo, à constelação de Centauro, que era aí que lhe estava reservada a Eternidade.
E ... nunca mais se ouviu falar dele.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Tondela - Benfica


30 de Outubro/2015, à porta do Estádio Municipal de Aveiro, as televisões entrevistam adeptos, em directo.
-Que pensa do jogo?, pergunta o repórter a um paisano do Tondela.
- Vai ser um jogo difícil. Vai ser assim como o ... Elias contra o ...
Golias!

Fiquei esclarecido. Ganhou o Golias 4 a 0.

domingo, 1 de novembro de 2015

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Carta a Marcello Caetano


Caro Marcelo:
Decidi escrever esta carta para sinalizar os 35 anos da tua morte real, seis anos depois da tua morte política.
Lembro-me de ti nos telejornais em banhos de multidão e nas “Conversas em Família” para nos doutrinar, até ao dia em que, de repente, caíste, dizendo uma frase estrondosa: “Rendo-me, para que o poder não caia na rua!”
Nessa altura, eu não sabia o que era o poder “na rua”. Só depois do PREC e das guerras civis nas colónias da Europa em toda a África, é que o entendi e passei a olhar-te como um académico crente num regime que recusava a nova moda mundial que ditava a autodeterminação dos povos e a alternância do poder.
Atiraram-te para primeiro-ministro quando já não havia solução. Um General num beco, envolto em denso nevoeiro, à mercê de vozes que o confundem, a tentar espaço no apoio dos fracos, até eles se cansarem e lhe virarem as costas.

A realidade atraiçoa quem dá "o seu melhor" quando a máquina já resvala e não há tempo nem mãos para lhe alterar o rumo. O regime estava em vias de extinção. Tu cumpriste-lhe o destino, qual mamute lanoso do Holoceno.

Foi a Esperança que te substituiu. Uma Esperança esfarrapada, a tomar medicamentos estrangeiros, a braços com “mercados” e “investidores” internacionais, impossibilitada de decidir por si, mas, apesar disso, melhor que a água choca onde pretendias que nadássemos.

Estive a ler os teus anos no Brasil até a morte te apanhar, de surpresa, encurralado pela vida, amargurado, solitário e com dificuldades económicas.
Devias saber ser esse um destino possível dos primeiros-ministros dos países do terceiro mundo, quando os regimes se eternizam no poder. É dos livros. Há uma altura em que o Povo dá ouvidos aos que perderam a Esperança, e exige aos poderosos que se arrastem na lama em que se julgam atolados. Só Cincinatus o interiorizou.

Tens mausoléu no Cemitério de S. João Batista, no Rio de Janeiro, onde o mármore roxo te acalma as recordações das múltiplas traições, bem longe deste Portugal que semanas depois de publicamente te aclamar, quis sumariamente acabar com os teus dias.

É a vida!

Fica bem!

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

La vie de Adèle



Adèle Exarchopoulos é uma actriz rara, capaz de sugar uma vida com o olhar e, ... fala francês.
Abdellatif Kechiche, o tunisino que escreveu, produziu e dirigiu o filme "La Vie d'Adèle", fixou-lhe os olhos, os lábios e o sorriso e condenou-nos a admirá-la para todo e sempre, neste filme improvável.
Deus nos dê fôlego!

domingo, 18 de outubro de 2015

Futurologia em Medicina



É para aí que nos vão levando. Não tarda que os médicos estejam a preencher quadros à semelhança do que já fazem os enfermeiros.

A “coisa” terá semelhanças com o seguinte esquema:
Finda a observação, o médico deve dirigir-se ao computador e escrever, em locais próprios, os diagnósticos “prováveis”, os “definitivos” e os "indeterminados" de cada doente.
Após o “enter” irão aparecer no écran, as opções terapêuticas para os diagnósticos anotados, já com as doses ajustadas à idade, às alergias ou às insuficiências de órgão identificadas. 
Depois de escolher nas soluções disponíveis, o plano terapêutico será instituído, mas antes terá de justificar a preferência pelas que não estão nas primeiras linhas.

O “gestor”, semanalmente, irá analisar a "produção": o número e variedade de diagnósticos efectuados, os gastos, a iatrogenia e o cumprimento das NOCs, para depois dar uma nota de “eficiência”.

Esta será a época do “You are as good as your last performance”, em que qualquer gestor recém-formado num curso nocturno, porá em causa décadas de reconhecida vida profissional.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Mártires


Viana do Castelo, tem os seus mártires na fachada da Igreja dos Santos Mártires, popularmente chamada “Igreja das Ursulinas”. 
Tem S. Bartolomeu dos Mártires, por ter vindo aqui morrer na paz do Senhor, e que tinha Mártires no nome por ter nascido nessa antiga freguesia de Lisboa.
Não tem Rua dos Mártires da Pátria, nem dos Mártires da Liberdade, nem tão pouco dos Mártires da Arménia.

Os "seus" mártires - Teófilo, Saturnino e Revocata, não andam pelas suas freguesias. Aí pontuam mártires estrangeiros. Santa Luzia de Siracusa na Sicília, Santa Leocádia de Toledo, Santa Eulália de Mérida, São Lourenço de Valência e São Paio de Córdova, Santa Quitéria da Aquitânia e São Sebastião de Narbone em França, Santa Cristina da Toscana e São Martinho de Todi na Itália, São Pedro, São Bartolomeu e São Tiago da Palestina, São Romão de Antioquia e São Mamede da Cesareia na Turquia.

Alguns morreram muito jovens – Santa Quitéria aos 15 anos, Santa Cristina aos 12, Santa Eulália aos 14, Santa Luzia aos 21, Santa Leocádia (bela e muito jovem), São Mamede aos 15 anos e São Paio aos 13, todos eles nos primeiros 4 séculos da nossa Era. 

Os seus ícones lembram os que deram a vida para defender a “verdade”, uma verdade questionável à luz de outras fés, bem como o modo de a fazer valer. 

Com a tónica actual posta na "Inteligência emocional”, isto é, na capacidade de reconhecer a par dos próprios sentimentos, os sentimentos dos outros, e ter a capacidade de lidar com eles, orientamos a disponibilidade para o martírio para as consultas de Psiquiatria.
Recusamos entender os mártires no Islão, principalmente quando tomamos conhecimento de crianças atiradas para a morte a gritar Allahu Akbar (Deus é Grande) e vemos os mártires dos nossos dias, como vítimas das circunstâncias - os judeus no Holocausto, os Arménios de há 100 anos, os tutsis no Ruanda de 1994, os soldados no desembarque nas praias da Normandia ou os civis apanhados na guerra da Síria.

Quem radicaliza o gesto e se dispõe a morrer para não "apostasiar a sua fé", fica sem espaço.
Hoje, a um santo exige-se um currículo e o exemplo de compromissos com as outras Fés, para que, mantendo a sua, possa contribuir para a paz neste mundo globalizado.

Faltam ícones desses para o lembrar.


Nota:
A igreja dos Santos Mártires, popularmente chamada “Igreja das Ursulinas” é um pequeno templo do século XVIII, apenso a um grande edifício que serviu como convento sob a denominação de “Colégio do Senhor das Chagas”, regido por freiras devotas a Santa Úrsula.

domingo, 4 de outubro de 2015

Nossa Senhora da Cabeça


No distrito de Viana do Castelo, Nossa Senhora da Cabeça, tem romaria em Freixieiro de Soutelo -  V. Praia de Ancora, em Cortes – Monção e em Cristelo-Côvo – Valença.
Tem Santuário, capelas, um Parque Natural e uma Área de Lazer, com restaurante e centro náutico.

No Brasil, é venerada na Catedral do Rio de Janeiro e na cidade de Perdizes, depois de, em 1948, ter livrado de grave doença, o lojista Sr. Aristonides Afonso do Prado, e ele para ali ter levado uma sua imagem.
Nos dois países as orações diferem e a imagem também.

Em Portugal é representada com a mão na cabeça para protecção de quem tem dores de cabeça e para os filhos que não estão bem na escola, no Brasil com uma cabeça na mão, respeitando a sua História maravilhosa.


O pico da Cabeça é o mais alto da Serra Morena na Andaluzia, Espanha. Lá vivia um soldado das Cruzadas, Juan Alonso de Rivas, que ficara mutilado de um braço na guerra contra os infiéis. Por isso se tornou pastor.
Juan era devoto de Maria e, enquanto apascentava as ovelhas, rezava pedindo-lhe protecção.
Em 12 de Agosto de 1227, foi alertado por uma grande luz e por um sininho vindos do
cume do monte. Aproximou-se. N
uma gruta, viu uma imagem de Nossa Senhora, e uma voz vinda do Céu pediu-lhe  para ir ao povoado de Andujar falar da sua visão para que todos se convertessem e construíssem naquele lugar uma igreja.
Juan, com medo de que não acreditassem nele, pediu a Nossa Senhora que lhe desse um sinal e  viu o seu braço refeito.
O vigário de Andajur e todos correram para o pico da Serra da Cabeça para verem a imagem e venerar Nossa Senhora. Ela passou a ser chamada ali de Nossa Senhora da Cabeça. Trouxeram a imagem para o vilarejo, até que fosse construído um grande templo em sua honra e toda a região se converteu e passou a peregrinar à  Serra Morena.
Vários milagres começaram então a acontecer. Um condenado, que jurava inocência, pediu-lhe um milagre, e, na hora de sua execução, chegou um mensageiro do Rei trazendo o perdão, dizendo que haviam errado no seu julgamento. O homem mandou fazer uma cabeça de cera e depositou-a aos pés da imagem em agradecimento.
Por este motivo é representada segurando uma cabeça em suas mãos.



sábado, 3 de outubro de 2015

Rua da Judiaria

Primeiro era uma rua sem nome. Quando, a oligarquia cristã, na segunda metade do século XV, disputou os espaços nobres da cidade aos judeus, e os obrigou a viver em zonas circunscritas na periferia do agregado urbano, começou a ser denominada Rua da Judiaria - uma das "ruas do arejo" de Viana do Castelo, perpendiculares às ruas principais que iam "de monte a mar".

Assim se manteve até os anos a degradarem e começar a ser povoada por uma marginalidade dedicada à prostituição e passar a ser conhecida por Rua dos Sete Ais.
Em Janeiro de 2008 a  Câmara rebaptizou-a com o nome de Amália, por ela ter cantado a cidade, e muitos vianenses insurgiram-se contra este "upgrade", por lá respirarem casas dos judeus antigos, com os seus símbolos gravados nas ombreiras ou padieiras das portas.










































Desculpa Amália, mas essa rua é deles, mesmo que já lá não morem, e tu ... ali, não passas de uma intrusa.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O sono de Deus


Tinha já passado uma eternidade quando Deus se dispôs a uma nova etapa na sua já longa vida. Não que estivesse cansado de dar ordem ao Universo, mas por considerar ter já conseguido alguma estabilidade nos sistemas construídos, e que a contínua expansão do espaço teria como natural consequência um risco diminuto de colisões entre a matéria.

Há muito tempo que pretendia experimentar o sono, os sonhos e vivenciar um acordar como se tivesse estado noutra dimensão, por considerar que eles o poderiam ajudar a entender a loucura dos seres que concebera, e que persistiam em perseguir objectivos que não lembram ao Diabo, sabendo Ele, como ninguém, que o Diabo é capaz de tudo e mais alguma coisa, e até daquilo que ainda não foi feito.
A oportunidade chegara imperiosa, e, sem delongas, que um Deus, não necessita de ponderar as decisões, chamou o Acaso e a Esperança e comunicou-lhes:
- Chegou o tempo de experimentar o sono e o sonhar! Até agora, tenho-me ocupado de tudo o que tem acontecido neste Infinito que gerei. Vocês são novos e estão frescos, peço-vos, que é como quem diz - ordeno-vos, que tomem conta do Universo, até eu acordar!

E, como um imenso urso imaterial a responder a premência de um sono secular, arredou-se para um canto do Universo, embrulhou-se num punhado de galáxias e expandiu-se, desaparecendo numa imensa nuvem de antimatéria..

Esta vontade de Deus, surgindo assim do Nada e sem qualquer envolvência prévia, deixou-os perplexos. Sempre O tinham visto activo, um "Workaholic" circundado de estrelas, galáxias, átomos, partículas e buracos negros, constantemente a transmutar matéria em energia ou a comprimir ou a expandir o Tempo, e nunca lhes passou pela cabeça que alguma vez Ele se iria afastar do controle dos ventos, das marés e de todo o movimento das ondas com que tinha povoado o Cosmos.

Sabiam serem insondáveis os Seus desígnios, mas aquela responsabilidade dada assim de chofre, sem uma formação, sem normas, procedimentos ou paradigmas, que lhes servissem de Guião, e ainda por cima para um tempo de sono indefinido, pareceu-lhes uma insensatez divina. Mas manda quem pode e obedece quem deve, e Ordens de Deus não se discutem. Bem vistas as coisas, eles estariam na graça do Senhor, e com um pouco de espírito positivo tudo se havia de arranjar.

O Acaso, apesar de ter sido, até então, pouco determinante no evoluir dos factos, tinha mundo e muita prática. Poderia pensar-se que lhe seria difícil manter um rumo ou dar sequência a uma ideia, mas tal nem lhe assomou à cabeça, para orientar os seus planos. Faria o seu melhor, que é como quem diz, faria tudo ao acaso, com toda a seriedade, pois não era seu apanágio folgar em serviço. Também não sabia o que era dormir pelo que lhe era fácil estar presente em todos os fenómenos do Universo, o que era, só por si, uma inegável mais-valia. Quando Deus acordasse iria ver diferenças. Um desarranjo aqui, outro acolá, mas também havia de ver coisas a acrescentar à sua infinita obra. Por si, ficaria satisfeito se na balança do Deve e do Haver, após tudo somado, o fiel não pendesse para nenhum lado.

A Esperança, estava menos convicta em assumir aquela realidade. Nunca tinha trabalhado. Desde que fora criada, passara o tempo a embelezar-se com grinaldas e tiaras e a experimentar uns panos esvoaçantes a colar-se ao corpo quando se expunha aos ventos cósmicos e, de vez em quando, a riscar uns caminhos luminosos, uns corações entrelaçados, umas pombas esvoaçantes, uma luzes no escuro, algumas ao fundo de longos túneis, sem nunca os expor ou sequer tirado das gavetas onde, qual poeta, timidamente as guardava temerosa dos olhares mordazes.

Os seus passos titubeantes não pareciam adequados a tão ciclópica tarefa. Aparentava uma menina no primeiro dia de aulas, com o Livro do Destino nas mãos, mas quem estivesse atento, poderia vislumbrar-lhe um laivo de altivez, daquela que impregna os que se presumem predestinados, só por terem sido chamados a funções que julgam grandiosas.

De facto, a peça haveria de se afirmar melhor que a amostra, ao optar, logo de início, por ignorar o mundo inanimado e dedicar-se exclusivamente aos seres vivos, e dentro destes, de modo muito especial, ao Homem.

Digamos que o Acaso passou a ser omnipresente em toda a construção divina e que a Esperança só pontualmente aparecia a dar cor à ordem natural das coisas, sempre que um animal em aflição a invocava, na expectativa de que ela pudesse influenciar o Acaso, ou no mínimo, ajudá-lo a manter um rumo mesmo que pejado de escolhos e contrariedades.

O Acaso, mais activo, mostrou-se perito em pôr à prova os mais inteligentes, enquanto a Esperança, foi nos desfavorecidos que formou o coro de seguidores. Embora ricos e pobres a invocassem, foram estes últimos que mais beberam das suas irrealidades maviosas e dos prazeres perpétuos, de aquém e além-túmulo com que beatificamente os mimoseava.

O Acaso fez de tudo. Jogou com o Espaço, com o Tempo, com a Matéria e a Energia, interpenetrando uns nos outros para que nenhuma lei fosse universal, e criou tempestades capazes de eriçarem os cabelos dos Einsteins enquanto o comum dos mortais o ignorava, como a um cheiro que, por persistir, se deixa de identificar. Deleitava-se com o ser capaz de, com o bater de asas de uma borboleta no Iucatão provocar uma tempestade no mar da China, ou em provocar um “el niño” de pasmaceira numa galáxia ou num buraco negro com um punhado de neutrões atirados para cima de um horizonte de eventos.

A Esperança, queria uma vida menos complicada. Cedo compreendeu que o tempo estava do seu lado e que não teria prazo para dar respostas loucas, à multitude de solicitações que a toda a hora lhe apareciam vindas do Cosmos, com uma especial predilecção por um pequeníssimo ponto da Via Láctea a que chamavam Terra. As que dali saíam eram tantas e tão variadas, que a teriam rapidamente saturado, não fora a sua pronta decisão em montar naquele planeta duas secções para gerir a população de uns seres erectos chamados Homens, que arengavam ter sido feitos à imagem e semelhança de Deus. Idealizou uma para a gestão das coisas terrenas e outra para as confabulações sobre uma vida para além daquela que estava a ser vivida.
Os seus longos períodos de ausência no espaço interestelar, não lhe permitiam meter “as botas no terreno” e implementá-la, para que se evitassem abusos e, quase de imediato, para além das naturais disfunções associadas ao início de uma qualquer actividade, surgiram os oportunistas que acumularam os dois pelouros.

Uma meia dúzia, mas os suficientes para lhe dar um mau começo. Ao aperceberem-se que o sucesso lhes poderia advir só do facto de distrair os aflitos das suas aflições, passaram a bombardeá-los com um imaginário de irrealidades até lhes aturdir os frágeis espíritos para que passassem a quase desejar que uma morte libertadora lhes desse acesso a uma vida infinita de luz suave e prazeres comedidos, a troco de uma Fé cega e do cumprimento das suas regras, enquanto identificavam todo a restante humanidade como Infiel e merecedora de uma morte eterna de dor e sadismo inimagináveis.

Mas nem todos aproveitaram a pouca vigilância da Esperança para desgraçar os seus conterrâneos. Felizmente que alguns, a par da atenção às súplicas dos seus fiéis, mantiveram um olho no que o Acaso lhes punha no caminho, conseguindo assim abrir as pistas da evolução humana e o conforto dos infelizes. Têm nome na Ciência, na Religião, na Política, nas Artes e em todas as actividades humanas, mas há que procurá-los com atenção, porque raramente ocupam os pedestais, por não lhes terem dado acesso aos papéis onde se escreve a História.

...

Muito tempo passara e Deus ainda dormia, num sono feliz, povoado de sons, imagens e sensações divinas a que os mortais nem pela imaginação têm acesso, quando o Acaso, no meio das suas elucubrações, lhe fez passar uma estrela cadente pelo interior de um sonho, como se um mosquito zunisse à orelha de um mortal.
Instintivamente, Deus afastou suavemente a Via Láctea e, enquanto se ajeitava, teve um vislumbre do planeta Terra, mais precisamente num pedaço de terra em forma de bota no meio de um pequeno mar.
Ainda ensonado reparou que num minúsculo ponto, sensivelmente a meio, numa cidade a que chamavam Vaticano, havia um mar de gente, que ele não conhecia de lado nenhum, a falar dele como se o conhecessem há milhares de anos.
Ainda se tentou a aconchegar na galáxia Andrómeda e retomar aquele sono reparador, mas, como se uma pulga lhe tivesse picado atrás da orelha, prestou atenção ao que ali se dizia.
De um lado uma cúria gorda discutia o sexo aos anjos e pouco mais, do outro, um punhado de gente tentava falar dos deserdados deste mundo.

Sentou-se, coçou os longos cabelos, chamou a Esperança e rouquejou: - Que é que tu andaste a fazer? Será que também estiveste a dormir? Depois reconsiderou. Fora Ele que fizera frágeis os seres vivos, como se quisesse testar se a teoria de Darwin levaria algum dia o Homem até si, e também a Esperança, que sem nenhum poder, nada poderia fazer para alterar o rumo à ordem natural das coisas.

Esticou o manto de estrelas onde se estirara, chamou o Acaso e ordenou: -Põe ali uma meia dúzia de oportunidades, só para ver no que dá!
E dito isto, arrancou do fundo da alma um enorme bocejo, e desapareceu pelo canto mais longínquo de uma Singularidade.

Era 13 de Março de 2013.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

GPS


O meu GPS, de há 35 anos, para fazer domicílios no Porto em associação a este pequeno mapa.

domingo, 27 de setembro de 2015

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Futurologia.


Era eu pequenino quando um "Almanaque", do início do século XX, que estava na arrecadação da casa da minha avó, me caiu nas mãos. Dele, ficaram-me dois desenhos. Um com a "casa do presente" com a sua cocheira, o outro com a "casa do futuro" com um hangar para um "dirigível", como lhe chamavam. As habitações eram semelhantes e lembravam as casas antigas da avenida do Brasil, na foz do Douro.

Há uns dias, deu-me para futurar que as casas do final deste século teriam uma plataforma para um drone de transporte, guiado por GPS, a que se acoplaria uma cabine. Teriam um programa que imitaria o comportamento dos peixes num cardume ou o dos estorninhos nos bandos, para não colidirem, e não exigiriam aprendizagem para serem manobrados, para além da programação dos destinos.
Teriam autonomia para 50 Km e funcionariam como Táxis aéreos.


domingo, 13 de setembro de 2015

O Cerne e o Alburno



Sou absolutamente contra a AUSTERIDADE  e desesperadamente a favor do RIGOR.
E dito isto, passemos ao cerne.

O fundamental para qualquer animal é a alimentação que lhe permita crescer e manter-se saudável, um abrigo onde possa descansar em segurança e a possibilidade de se poder reproduzir, para se  perpetuar depois da morte.
Estas três condições constituem o ambiente favorável que qualquer progenitor deve garantir.

Numa sociedade humana moderna, a maioria da população, conta também com o Estado para lhe assegurar estas condições e centra-se essencialmente na sua valorização dentro do grupo, e olha para a fome e para insegurança como perigos longínquos. Quanto à reprodução ... "temos tempo!".

Para conseguir lugar de destaque e obter índices que lhe permitam o reconhecimento dos outros, há que se meter por um dos caminhos já existentes ou arriscar abrir outros não trilhados e ser o primeiro, nem que seja a dar a volta ao mundo em cima de um skate. São opções individuais com toda a legitimidade, desde que não interfira com o bem-estar do próximo, pois o que fizer só irá  "animar a economia".

Outra coisa é quando se gasta o dinheiro dos outros, seja ele dos contribuintes, depositado em Bancos Privados ou de um patrão desatento. Aí não pode haver desperdício e as contas têm de estar certas com o acordado. Os luxos, se os houver, devem estar previamente estabelecidos, porque a norma é a eficácia e não a vaidade.
No Estado, viaturas oficiais "topo de gama" e luxo nos gabinetes oficiais, só para a Presidência da República e Primeiro Ministro, mas com despesas de representação muito bem justificadas. Ponto Final.

Por isso pasmo quando ouço falar de Austeridade na Administração Pública, onde eu esperava ouvir Rigor e responsabilização de todos os que, por incompetência ou desleixo, malbaratam os recursos que lhes estão disponíveis.
Por exemplo: gostava de ver auditorias sobre a ADSE, ADMG e outros subsistemas de Saúde que, actualmente, sustentam as múltiplas clínicas que proliferaram a empolar tratamentos e exames auxiliares de diagnóstico para compensar (e não só) o fraco preço da consulta.
Isso seria Rigor e não Austeridade.

Gostava de sentir um Rigoroso controle dos gastos dos Ministérios, Autarquias e Empresas Públicas, que as impedissem de fazer obras desnecessárias ou impossíveis de manter.
Mas acima de tudo gostava que se tivesse aprendido alguma coisa com o nosso passado e se tivesse identificado quem nos propôs e facilitou os desmandos que nos levaram a ficar reféns de uma dívida impagável, para poder decidir um caminho mais saudável.

Não é com austeridade que nos resolvemos. É com Rigor e Responsabilização.
É esse o cerne! A Austeridade é ... o carnaz!