domingo, 31 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (10)


Hipólito, pensava: -“É por baixo das grandes pedras que se escondem as maiores cobras!”. Estava ele ali a tomá-los por bem intencionados e, de um momento para o outro, via-os a planear oportunidades para cataclismos, com a maior desfaçatez.
Morava a menos de 1Km do mar, a uma cota de 36 metros. Será que não o poupariam e que todo o recomeço teria por base a gente do interior ou com um HLA favorável a uma resposta imunológica rápida àquelas infecções, quando seria expectável que fossem os mais inteligentes os favorecidos?
Nem sequer decidiam. Punham tudo na mão do Destino. 

Vindo do oriente, o carro dos corcéis negros, aproximava-se em alta velocidade. Hades de cabelo ao vento e Tártaro de asas coladas ao corpo semelhavam um meteorito. Pararam no terreiro levantando uma imensa nuvem de pó.

Hera e Zeus, que entretanto chegara, saíram a recebê-los.
- Oi! Galera! Que tal a viagem! Valeu a pena?, perguntou Zeus, afastando a poeira com um gesto.
- Deu para a despesa, Mano!! Estávamos à espera de um atentado num casamento. Coisa para 300 de uma só vez, mas acabámos num naufrágio no mar Egeu. Tivemos de nos mover rápido. A marinha grega ainda salvou alguns. Morreram duzentos e cinquenta. A maioria  católicos e muçulmanos. Para nós só vêm trinta. São de crianças e de quatro adultos com défice cognitivo.

Hipólito, chegou-se à frente e atreveu-se a perguntar.
- Então há mais deuses, por lá, à cata de almas?
Hades respondeu: - Eles mandam para lá os anjos para as recolherem. Quem está a levar o maior quinhão são os católicos, porque muitas almas acreditam que, se no último minuto, se arrependerem, lhes vai acontecer como ao “bom ladrão” do Evangelho de Lucas.
Nós falamos-lhes na reincarnação. Se eles estiverem de acordo, o Hermes encaminha-os para o Radamanto. Só depois é que são preparados para a viagem. Você sabia que uma bigorna de bronze a cair do céu demora nove dias a alcançar a terra e outros nove até ao Tártaro?

O médico estranhou. – Então o Hades não é todo igual?
- Não! Para os Campos Elíseos vão os heróis, os santos, os sacerdotes e os poetas. A maioria fica no Hades e os maus vão para o Tártaro para serem atormentados. O Tártaro está coberto por três camadas de noites a que se segue um muro de bronze, sem nenhuma abertura. É húmido p’ra chuchu. Péssimo para o reumatismo!
- Então é um Inferno!!, concluiu Hipólito. – Vocês sabiam que o Papa João Paulo II fechou o dele em 1999, e que substituiu o fogo e o enxofre por uma “percepção consciente de rejeição” onde se passa a eternidade separado de Deus?

Tártaro, que até aí se mantivera calado, abriu as asas, deu dois passos em frente e, ignorando Hipólito, dirigiu-se a Zeus:
- O que é que este cromo anda aqui a fazer? Já é a segunda vez que o encontro dentro de casa. Se ele volta a questionar o que quer que seja, sobre a minha actividade ou a estabelecer conceitos morais, frito-o lá em baixo no primeiro caldeirão que encontrar. Em vez de o ouvires, melhor era que viesses  comigo arranjar o poço do Tântalo que está entupido. Qualquer dia chega à água e mata a sede!

 O clínico, encolheu-se atrás de Hera, esperou que ele desaparecesse pelo chão e agradeceu.
- Dona Hera. Vi o caso mal parado! O tipo tem mau feitio!. Eu não o quis ofender. Só perguntei porque, actualmente, as religiões estão a abandonar o paradigma do castigo eterno e a adoptar soluções menos drásticas, como a reencarnação num ser mixuruca, para o obrigar a voltar atrás na evolução e ter de se esforçar vida a vida até ao Nirvana.

- Eu percebi a sua perplexidade. Mas neste momento é isto que temos. Há projectos mais ecológicos para implementar no Inferno, mas obrigam a outras infra-estruturas e a uma organização significativamente diferente.

Entretanto Zeus, que ouvira o diálogo, quis completá-la.
- Se ficarmos por cá, o projecto é o da reencarnação para todos, na hora e no ser que foi mais prejudicado pela alma em questão. Por exemplo, aqueles que maltrataram os animais, irão encarnar na maior vítima das suas sevícias. Os banqueiros corruptos irão trabalhar arduamente ao preço de um salário mínimo. O pessoal de saúde displicente irá sofrer de doença prolongada que obrigue a múltiplas consultas e tratamentos. As dondocas vão ver-se uns “escronhos” sem solução pela cirurgia plástica, e por aí afora.
Como não podemos meter gente de fora, vamos ter de dar formação aos deuses do submundo. É esse o problema. São deuses à moda antiga, que gostam de dar uns cachaços e, nestas coisas, há que ter subtilezas. Tem de parecer tudo natural. Manter a expectativa e quando eles pensam que a coisa vai melhorar – Bumba! Mete-se-lhe o testículo na ilharga! Mas adiante, que ainda há-de passar muita água por debaixo das pontes, até esse dossier estar concluído.
Dr. Hipólito, vamos a coisas práticas. Quer vir connosco jantar umas favas com chouriço a Viana do Castelo, à “Porta 93” ?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (9)


Parecia-lhe inacreditável, que tendo os deuses tanto poder, não interferissem com as guerras, mesmo quando solicitados por quem lutava “em seu nome”, pelo que arriscou perguntar:
- Dona Hera! É de tempos imemoriais que antes das grandes batalhas se faça uma missa campal ou qualquer coisa do género, para vos pedir ajuda e até consta que, em algumas, houve aparições decisivas para as vitórias. Vocês não estão nessa?
- Não! Definitivamente! Nós não interferimos a esse nível. Está a ver a quantidade de vezes que a humanidade nos reclama para problemas menores. Até nos pede auxílio para a marcação de um penalty ou na escolha dos números do Euromilhões! Quem trata disso é o Destino. Ele é que distribui as oportunidades. Põe umas à frente dos olhos dos humanos e outras esconde-as onde só os mais espertos conseguem dar com elas. O nosso trabalho tem sido definir quais são as “oportunidades”. O modo como elas são distribuídas é com o Destino.

Para além disso, temos os mortos. O rei Hades, que há pouco viu partir para o Médio Oriente, tem um contrato-programa para cumprir.
Tem obrigação de apresentar um número X de mortes por ano. Tantos destes e tantos daqueles. Uns de doença e outros de morte violenta. Uns mais novos e outros mais velhos. E isso é um grande problema porque os tempos mudam e todos os anos se morre de modo diferente. A tecnologia fez com que, no Ocidente, a longevidade aumentasse e que o número de mortes em jovens esteja abaixo do contratado. A solução encontrada foi criar maiores oportunidades para acidentes rodoviários e em desportos “radicais”, a par de um aumento da resistência aos antibióticos nas doenças infecciosas. Mas não se estão a mostrar suficientes. Se isto fracassar, teremos de criar mais oportunidades para uma guerra. Para já, África e o Médio Oriente, estão a dar um grande contributo com mortes jovens, mas se o seu número reduzir, vai ter de se de ir para uma epidemia ou para uma guerra global.
Os números do contrato têm a ver com a taxa de ocupação do planeta pelo homem.

- Então os reis Hades e Tanatos, foram para lá por causa dos números?
- Claro! Apesar de todo o aparato, exigem-se mais mortos. A estrutura que temos montada não subsiste com estes números. Mesmo que requalifiquemos alguns, há deuses com ameaça de desemprego. Assim como está, não pode continuar. O homem tem de abandonar alguns territórios e o seu número tem de baixar.
Longe vai o tempo em que não havia preocupação com a função social do emprego. Temos de ter empresas eficientes e rentáveis.
- Mas isso é pior que a lei da selva!, exclamou o médico. – O que será de nós humanos!.

- Nós estamos a trabalhar para que vocês tenham uma morte mais precoce. Principalmente nos países industrializados. Não vai haver emprego para todos.
Temos na manga a possibilidade de uma catástrofe natural. O Hefesto já se disponibilizou para provocar uma grande explosão num dos supervulcões. Yellowstone é uma grande hipótese. E o Posídon já falou num megatsunami de proporções apocalípticas provocado por enormes deslizamentos de terras no flanco oeste da ilha La Palma, nas Canárias, com uma onda inicial de quase 2 km, a viajar, como se fosse um avião a jacto, a cerca de 1000 KM /hora. Inundaria o litoral da África Ocidental em cerca de uma hora, o litoral sul do Reino Unido em 3,5 horas, e chegava à costa leste da América do Norte em seis horas, altura em que a onda se teria transformado numa sucessão de pequenas ondas, cada uma com cerca de 30 a 60 metros de altura. É capaz de calcular os estragos?
- Com mil de demónios! Espantou-se Hipólito. -Isso arrasaria a costa leste dos EUA e muitas das principais cidades da Europa. Vocês não tinham coragem para tanto!
- Foi Posídon que falou nisso, mas os textos não foram ainda a concílio. Para já demos ao Destino conflitos menores dispersos e umas pequenas epidemias, que vocês controlaram com alguma eficácia. A SIDA, o Ébola, a Gripe A e agora o vírus Zika, foram coisas para vos testar. Mas estamos a trabalhar numa epidemia em grande, transmitida por via oral, com um tempo de incubação longo como o VIH, para quando vocês derem por ela, já haver mais de metade da população infectada. Mas não se preocupe, que isso são soluções extremas, que só serão entregues ao Destino, se todas as outras se mostrarem ineficazes.

O médico estava siderado. Não queria acreditar que a pressão dos números pudesse levar aqueles deuses a atitudes tão malignas. Voltou-se para Hera e questionou-a.
- Então é isso que nos espera, caso persistamos em ocupar todo o planeta, desrespeitando as outras formas de vida?
- É verdade, meu querido Hipólito! Vocês ainda não perceberam o que se passou com os dinossauros?  
- Mas não é para já! Pois não?

- Talvez não seja no seu tempo. Se quiser saber, terá que falar com Zeus. Ele tem ido a reuniões onde estão os deuses mais importantes e já há planos de contingência para entregar ao Destino. Talvez o rei Hades saiba alguma coisa, porque ele tem de arranjar espaço, para que não haja filas intermináveis nas margens do Aqueronte. Se esperar um pouco, pode ser que ele passe por aqui no regresso. Ele sabe que eu gosto de romãs e as da Síria são espectaculares. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (8)


Hipólito fixava a nuvem no horizonte, quando sentiu um intenso cheiro a enxofre e viu surgir de um buraco do chão um vulto de gigantescas asas negras, a caminhar na sua direcção. Ao passar por si, do nada, apareceu um outro, que o cumprimentou. Trazia um gorro na mão e desapareceu, quando o pôs na cabeça. Depois, entraram, apressados, num carro de negros corcéis e dirigiram-se para oriente.

Entretanto Hera sentara-se à sua frente. Vendo que mantinha o olhar naquela direcção, perguntou: - Reconheceu-os?
- Pareceram-me os deuses do submundo. Hades e Tanatos. Aconteceu qualquer coisa para eles andarem cá fora, cheios de pressa?
- É verdade! Estranho é eles terem saído por aqui, com o Vesúvio mais perto. Estão a aproveitar o facto das Erínias se terem estabelecido no Médio Oriente a tempo inteiro, quando ouviram falar da operação “Tempestade no Deserto”. Foram para lá com a ideia de vingar, punir e perseguir os pecadores, mas estes, em vez de diminuírem, têm aumentado todos os dias.
Estes só lá vão uma vez por semana, porque o Hermes trata de quase tudo. Sorte tiveram os que estão no Tártaro. Agora só são incomodados pelas Harpias, pelas Górgonas e pelos Cyclopes!
- Dona Hera! Não sabia que vocês também andavam por lá! Será que aquela catástrofe tem fim à vista?

- Caro Hipólito! Nós estamos lá desde Alexandre! Temos sede em Jerusalém, mas dispomos de delegações da Líbia ao Paquistão. Jerusalém é um “must” para todas as religiões monoteístas sejam eles Arménios, Coptas, Ortodoxos, Católicos, Judeus, Dominicanos, Franciscanos, Etíopes, Russos, Americanos, Israelitas, Sírios, Assírios, Evangélicos, Carismáticos, Nazarenos, Samaritanos, Hassídicos, Caldeus, Conservadores, Reformistas, Congregacionistas, Pentecostais, Liberais, Jihadistas, Pacifistas, Sionistas, Sefarditas, Maronistas, Zelotas, Fariseus e por aí fora. Nós, somos os únicos politeístas a marcar presença.
- Mas vocês, o que é que lá andam a fazer, especificamente?
- Nós, só retiramos as almas e damos apoio às Erínias. Aqueles longos cabelos de serpentes, grossas lágrimas de sangue e asas de morcego apavoram. Quando aquela gente as vê, passa-se e desata a disparar e a gritar o “Valha-nos Deus!” ou o “Allahu Akbar!” e nem pensa. Em menos de um fósforo desaparecem umas dezenas do número dos vivos.
Não nos metemos em conversações, nem em nada do género. Não temos solução para aquele conflito. Talvez o António Guterres tenha, quando assumir a pasta de secretário-geral das Nações Unidas.
Só um investimento maciço em educação é que pode resolver aquilo. Mas para isso vão ser necessárias várias gerações. O problema da Terra Prometida é o da família depois da morte do patriarca. A conhecida questão das partilhas.

O médico anuiu. - São demasiadas interpretações para a mesma coisa e ainda por cima com templos de uns em cima dos templos dos outros. Não é com guerras que aquilo se resolve. Mesmo que alguém reclame vitória, é uma questão de tempo para que o conflito se reacenda.
Vocês já pensaram em mandar para lá o Morfeu e pôr aquela gente com sonhos bons, e tirar de lá o Ícelo?
- Não se meta nisso, Dr. Hipólito!, exclamou Hera. – Espere até ver as consequências da 4ª revolução industrial que ainda agora se inicia. Talvez ela vos dê uma melhor distribuição da cultura e ajude os desfavorecidos a não optar por populistas, mas por programas bem estruturados. A globalização pode levar a benefícios, mas há muito trabalho a fazer. Já leu a conclusão do estudo da Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse relativos a Outubro de 2015? Eles afirmam que, pela primeira vez, a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial, equivale à riqueza dos 99% restantes? Claro que assim é fácil haver lobbies que se sobreponham aos interesses públicos.

Mas adiante, que ainda lhe quero mostrar um foto do Ares a libertar Tanatos das mãos do rei Sísifo. Está linda. Até já pensei em fazer com ela um baixo-relevo para pôr no hall de entrada. A ignorância dos humanos, leva-os a ser atrevidos.
E nós que, de há 2600 anos, andamos a apostar no Homem como construtor de beleza, vemos a meia dúzia de paranóicos pôr de rastos as suas virtudes, Inteligência e sabedoria.
E Zeus ainda a querer voltar! Nem morta!

Entraram no templo, com Hipólito a ruminar aquela ideia.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

sábado, 16 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (7)

Hércules tinha ido para as cavalariças. 
Hera chamou-o: - Hércules! Sei que estás aí! Fazes o favor de vir aqui, que o médico queria ter uma conversa contigo. Não te vão fazer exames, está descansado. É só para ele te conhecer!
Hércules demorou e Hera insistiu: - Anda lá! Não temos todo o tempo do mundo. Despacha-te! Já te disse que é só para falar!
Hércules apareceu caminhando até eles de olhos baixos. Quando chegou, Hera continuou com a reprimenda: - Parece que és burro! Senta-te e fica sossegado. E vê se respondes direito. OK!
Hércules levantou os olhos e disse: -Está bem! Mas a conversa tem de ser curta que tenho de tratar dos cavalos que, hoje, ainda não saíram e estão impacientes. Diga dona Hera o que quer! 
Sentaram-se numa mesa de jardim. Hera fitou o médico e depois Hércules e disse:
- Queria apresentar-te o Dr. Hipólito que vem substituir o Dr. Euclides. Não sei se já te tinha dito que morreu a semana passada. Mas adiante. Eu vou deixar-vos sós, mas queria que lhe contasses as tuas preocupações e anseios. Já sabemos que estás melhor, mas como, de vez em quando, tens recaídas e fazes asneiras de que depois te arrependes, o melhor é que ele te conheça!
E dito isto, transformou-se numa brisa e desapareceu por entre as folhas do jasmim que forrava a pergola onde estavam.

Hércules, ainda pensou em ficar calado, mas lembrou-se do que já sofrera em situações semelhantes e disponibilizou-se:
- Olhe Dr.! Quer que seja honesto consigo? Eu já não estou aqui a fazer nada! Gostava era de ir para o Hades, mas ele não me deixam! Querem-me para a manutenção desta casa. Aqui faço tudo. Corto relva, trato dos animais, arranjo os muros, faço os tratamentos às plantas. Se rebenta um cano é logo: - Oh Hércules! Anda cá! Eles são deuses, mas não querem calos nas mãos, nem dores nas costas. Eu, como semi-deus, deveria ser mortal! Ao Aquiles, deram uma morte rápida. A mim, deram a imortalidade como paga dos sucessos nos doze trabalhos a que me obrigaram. Sou o único semi-deus vivo! Até Jesus, que nasceu muito depois de mim, já se foi!
Trabalho para eles a tempo inteiro sem quaisquer direitos laborais. Andam para aí a falar que os humanos já deviam ter horários de 30 horas/semana e, no outro dia, até os ouvi discutir um aumento significativo dos vencimentos e pôr as horas extra pagas em valor decrescente. Um ordenado mais que suficiente para incentivar o consumo em tempos livres e criar ai novos empregos. Está a ver um paisano com um vencimento correspondente a um preço/hora de 30 Euros a fazer horas extra a 5? A ideia nem era má! Mas não se iluda! Aquilo é conversa de políticos a ver se a malta os elege e depois, é o que sabe. A mim deram-me a imortalidade. Boa merda! Não me deixam sair daqui! Se eu fosse para o Hades, algum tempo depois voltava noutro corpo, esquecido de tudo por ter passado pelo Lethes!
Percebe porque é que eu me chateio! Depois dizem que sou agressivo. Sabe aquela frase do Brecht “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.... Dr.! Eu tenho os cavalos para tratar. Vou ter que ir. Continuamos a conversa noutro dia. Está bem??!!

Hipólito levantou-se, para se despedir, enquanto o questionava:
- Se a realidade é como diz, dou-lhe toda a razão. Mas a versão deles não é essa. Nela, você cria problemas onde não os há e não é “fiável”.
- Dr.! É o problema das “narrativas”! Por mim, aconselho-o a ter cuidado. Eles estão a pensar abandonar o planeta. Deixe-os ir. Talvez assim me dêem a mortalidade. Até lhe dava uns chouriços de javali que guardo há séculos. O bicho era de Erimanto. Deu enchidos para dar e vender e eu já não como como dantes. Prefiro carnes brancas.

Despediram-se. Hipólito ficou agarrado à mão direita e voltou a sentar-se. Esperou até que ele saísse com os cavalos, negros e fogosos e acenou-lhe um adeus. Hércules montava em pelo. Eram mais de cem e a  nuvem de pó era tal, que os encobriu.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (6)


Afrodite caminhava descalça, como a suster o tempo. Uma corda doirada a cingir-lhe a túnica de linho branco era todo o seu adorno e nem uma pintura realçava um traço da sua fisionomia.
Hipólito redimensionava-a no seu sistema límbico, quando lhe assomou à boca o início do poema de Lucrécio “De rerum natura”.

Dos Enéades progenitora, prazer dos homens e dos deuses,
Alma Vénus, tu que sob os deslizantes astros dos céus
Enches de vida o mar portador de navios,
Enches de vida as terras de searas produtoras,
Porque graças a ti é concebido todo o género de seres vivos
E contempla, quando nasce a luz do sol,
Diante de ti ó deusa, fogem os ventos,
À tua chegada afastam-se as luzes do céu,
para ti a terra operosa faz despontar suaves flores,
Para ti sorriem as extensões do mar
E o céu pacificado brilha com luz radiosa.


Hera, foi ao seu encontro, deixando-o dez passos atrás. Saudaram-se e, depois de umas curtas palavras, caminharam na sua direcção, sorrindo.
Hipólito baixou os olhos, quis deitar as mãos ao peito, ajoelhar e até prostrar-se de braços abertos, mas conteve-se e aguardou. Traído pelo rubor da face e com um ligeiro trémulo na voz cumprimentou-a dizendo Kaliméra!

Afrodite decidira impressiona-lo, não por qualquer particular interesse naquele cinquentão, mas para lhe mostrar o poder que uma imagem pode ter sobre os humanos. Depois, também lhe queria falar do seu desencanto, para que ele, saído dali, qual arauto, o desse a conhecer a toda a Humanidade.

Estendeu a mão. Hipólito sentiu-lhe os frágeis dedos e, quando levantou os olhos, ela estava de jeans, sapatilhas e T-shirt branca com a palavra Ágape impressa, a abrir espaço para uma conversa sem constrangimentos.

Entraram no Templo. Na sua ala reinava a harmonia. As colunas encimadas por capitéis e lintéis com baixos-relevos alusivos à criação do Mundo e os frescos nas paredes invocando o encontro entre as mais variadas espécies, de minúsculos invertebrados a árvores de grande porte, lembravam a sua responsabilidade por toda a vida sexuada do planeta.

Sentaram-se. Hera, serviu "cyceon" e pão de cevada e Hipólito atreveu-se a iniciar a conversa.
-Afrodite! Desculpe a curiosidade mas, já que se dispôs a chegar à fala comigo, gostava de ouvir da sua boca esse “desânimo” com os humanos. Custa-me a crer que tenha desistido de todos nós?

A deusa reclinou-se, apanhou os cabelos e amarrou-os num gracioso rabo-de-cavalo, cruzou a perna, levou o copo aos lábios e, depois de um pequeno gole, respondeu-lhe:
- Dr. Hipólito, quando há uma semana o vi aqui entrar, engracei consigo. Parecia o Woody Allen e, como vai ficar entre nós uns tempos, achei por bem disponibilizar-me para esta conversa.
Como já deve saber, deixei de interferir na vida dos humanos. Aguentei muito, mas depois de ler umas coisas sobre ADN, genes e cromossomas, concluí que vocês não têm matriz para as alterações comportamentais que eu idealizara, e não tenho paciência para esperar que o Acaso altere o vosso património genético, para surgir um fenótipo favorável que vos enquadre na vida do planeta. Vós evoluístes no sentido inverso.

- Quer então dizer que não apoia mais a humanidade?
- É um facto. Só estou à espera do dia de sair daqui. Há mais vida para além deste planeta. Hera anda com a ideia de um outro para os lados da Andrómena e, se ela for, vou também!
Hipólito entristeceu na eminência de perder aquele convívio e, como a tentar pôr água na fervura, contrapôs:
- Afrodite, há-de convir que há muita gente boa, disposta a ver no amor uma saída.

A deusa endireitou-se, pôs um ar sério e explicou:
- Dr. Hipólito! Quando Zeus me pediu ajuda para dar um caminho ao Homem que o levasse à perfeição, eles eram uma meia dúzia que conhecia pelo nome. Quando se reproduziram, apoiei-os com gosto nas migrações, eles na caça e elas a tratar dos abrigos e dos filhos. O problema surgiu com a invenção da agricultura. Quando o seu número aumentou, apareceram uns tipos a armar-se em donos disto tudo e acabou a solidariedade entre eles. Desde então tem sido sempre “ò p’ra trás” com o faz-de-conta a dominar as suas relações.
Agora dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, como se fossem possíveis imagens com significância sem uns milhares de palavras que as suportem. Preocupam-se com o “embrulho” sem cuidarem nem do corpo nem da alma.
Trabalham para se parecerem com "modelos". Elas usam tacões para chegar aos 173 cm e passam fome ou apertam-se para ter cintura de 61 e anca e peito de 86. O exercício que fazem não tem intenção de serem fortes. Os  mais desesperados enchem-se de adornos. É um verniz de fraca qualidade que os trai ao primeiro movimento. Com eles a coisa é semelhante: carros, futebol e fanfarronices. Na sua linguagem corporal transparece uma fraca saúde mental.

Hipólito concordou. Lembrou-se que toda a movimentação voluntária, tem a modulação do sistema extrapiramidal.  Por incrível que pareça, ele é influenciado pela “cultura”. É ele que nos dá individualidade.
Afrodite levantou-se e convidou-o:
-Terminemos o assunto, Dr.!. Venha comigo que eu quero-lhe mostrar uma coisa surpreendente!

Saíram para o terreiro onde um formigueiro ajudava Psique a separar uma massa confusa de sementes de trigo, de papoilas e milho-miúdo, arrumando-as conforme a sua qualidade.
- Vê! Eu tinha-lhe dado esta tarefa de castigo, mas veja a bondade das formigas! A bicharada com menos cabeça que os humanos coopera muito melhor e sem reclamar!

Depois, despediu-se e desapareceu no meio das flores.
Hera, tomou-lhe o braço e perguntou: Ainda tem tempo para uma consulta ao nosso amigo Hércules?

domingo, 10 de janeiro de 2016

Frases de hoje



e     ...    "Palpites não se discutem!"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (5)


Hércules, incomodado com aquela intimidade, olhou-os de soslaio. O estatuto de semi-deus, não lhe permitia entrar naquela casa. Vagueava pelas imediações e dormia na estrebaria junto aos cavalos de Diómedes, numa esteira, com o retrato do filho à cabeceira.

- Ele anda perturbado!, confidenciou Hera. - Trabalhou demais. Chegou a estar mais de vinte e quatro horas sem ir à cama. Quando veio do Hades, depois de ter capturado o Cerbero, deu-lhe o "burnout". Parece um gazeado! Vai ter de o ver mais tarde, mas por agora, passemos ao largo, não vá ele ver em si um demónio. Dr.! Você não tem destes, lá no Hospital onde trabalha?

Hipólito concordou com um gesto de cabeça. Tinha por essa gente um certo carinho. Reconhecia-lhes o passado e diferenciava-os claramente dos displicentes que se escudavam nos postos a que se tinham alcandorado - cirurgiões arrogantes, ortopedistas que assustavam doentes desprotegidos com vernáculo abastardado, neurologistas incompetentes e outros, que os responsáveis bem conheciam e que, por comodidade, fingiam ignorar.

Hipólito, acelerou o passo e, para não abrir essa chaga onde diariamente tropeçava, mudou de assunto:
- Afrodite veio para estes lados?, perguntou.
Hera percebeu o constrangimento e aceitou a deriva.
- É natural que ande por aqui. Umas vezes passeia-se no seu carro puxado por cisnes, outras vezes transforma-se na estrela d’alva e ateia desejos ardentes nas entranhas de todas as criaturas. Também gosta de se vestir de branco e aparecer em cima das oliveiras. Já foi tomada por Nossa Senhora.
Ultimamente está desiludida depois de tantos anos a lutar para que a beleza e o amor fossem o fermento para que os genes se misturassem nas devidas proporções e o Homem evoluísse. Até meteu o filho Eros no empreendimento, mesmo sabendo que aquilo era trabalho infantil.
Há uns anos afastou-se e, desde então, os jovens não saem dos écrans dos computadores, obcecados com o faz de conta. Já viu como têm diminuído as pontes entre as pessoas?!.
O meu marido quer que ela volte ao activo, como uma verdadeira deusa da fertilidade, do prazer e da alegria, a louvar a mulher-companheira que põe a tónica na jornada e não em objectivos mensuráveis em Euros, nem em carreiras profissionais obsessivas, que culminam em amargura e solidão.
Mas eu não o vou permitir! O Homem é um caso perdido! Gosta de se vestir de puritanismo bacoco quando dentro da sua cabeça borbulham carinhos e amores que não consegue resolver.

- Está a insinuar que a sociedade actual é mais puritana que a que existia na vossa Grécia antiga?
- Com certeza! Vocês passam demasiado tempo a trabalhar. Com a tecnologia que possuem, já deviam ter reduzido a semana de trabalho para as 30 horas. Havia emprego para todos e estimulavam-se as actividades dos tempos livres. Devia ser obrigatório pertencer a um coro, dançar, praticar actividade física regular, tratar de um jardim, ler romances ou qualquer outra coisa fora do âmbito profissional. Vocês quase só trabalham e ganham dinheiro e, quando já o têm, trabalham mais para comprar coisas cada vez mais caras que pouco usam. A vossa saúde mental é um desastre!

Hipólito, sentindo-se atingido, replicou: - Sabe Hera. Estamos na sociedade de consumo onde tudo tem preço e quem manda são os “mercados”. Os políticos não sabem História e são facilmente tomados pelos grandes grupos económicos.
Mas creio que estamos no fim de um ciclo. Talvez, quando as mulheres chegarem ao poder, seja possível dar um novo rumo às sociedades humanas.

Entraram pelo olival. Hera pegou numa rosa e, enquanto constatava a fragilidade das suas pétalas, acedeu: - Talvez! Os lugares de comando ainda são pertença dos homens! Mas não esqueça que não está no genoma masculino aceitar a autoridade das mulheres e que elas odeiam a solidão que o poder acarreta.

Afrodite apareceu ao longe, envolta num halo de luz radiosa. A túnica cingida ao corpo realçava-lhe os seios pequenos. Uma brisa suave afastava os ramos das árvores à sua passagem e as flores brotavam da terra que pisava.

Hipólito parou. Deu a mão a Hera e comentou: -Ela não brinca em serviço! Pode estar desmotivada, mas vem em grande estilo! Por favor, cuide mim! Ajude-me a não gaguejar!