domingo, 13 de novembro de 2022

A garra


Olá bom dia! Tenho 70 anos e fui hoje fazer  a vacina do covid, em regime de casa aberta.

Nem =hora e meia demorou todo o processo. Estava sol e vento muito frio, de modo que apanhei uma "ponta de ar"...

Ia preparada para tomar apontamentos das conversas dos meus companheiros, mas... nada. Todos tranquilos e em silêncio. Na fila um ou outro curioso esticava o pescoço e, semicerrando os olhos, percorria a fila em todas as direcções..., mas não comentava. Havia gente bem vestida e gente com a roupinha coçada, mas não dava para saber se eram ricos ou pobres só pelas etiquetas do vestuário. 

Alguns mais incapacitados e tímidos, pediam desculpa para sair da fila e iam-se sentar mais à frente nas cadeiras laterais, vigiando o vácuo que deixavam, para não perderem a vez. Os cabelos eram brancos, cinzentos e acaju e uma mosca pousava no eczema da cabeça do velho que me precedia e vinha lamber a minha mão.

Que dia chato...

Isto não estava certo...

Olhei melhor e compreendi que aquele silêncio doentio não se devia à introspecção própria do acto vacinal, nem ao recolhimento de um templo, pois um quartel da tropa por mais imponente que seja, não inspira qualquer meditação!.

Todos os presentes exibiam na sua mão esquerda, dedos em garra para segurar o telemóvel, fazendo avançar as páginas com o indicador direito. E foi essa mão assim torcida que me fez vir à memória os seguintes factos:

Nas décadas de 70-80 do século passado, a epidemia da toxicodependência e as infecções associadas, quando o regresso da guerra e a descolonização foram acompanhados pela introdução da heroína no nosso meio, pôs-me perante uma nova realidade. 

A adição era garantida e os  jovens cumpriam o ritual de aquecer a droga numa colher com sumo de limão, aspirar para uma seringa que depois seguravam entre os dentes, enquanto garrotavam o braço. Antes de se injectarem, lambiam a agulha como se de um beijo se tratasse. Procuravam  reavivar a sensação da primeira dose que os levara a patamares nunca antes sentidos, mas essa sensação não mais se repetia, acabavam a injectar-se apenas para se conseguirem sentir "normais", passando todo o tempo  entre o torpor da droga e as tentativas de arranjar dinheiro para encher os bolsos do fornecedor. 

O que  viam ao espelho em nada correspondia à realidade. O envelhecimento, os dentes podres, as olheiras a pele escura e sem brilho...

Ao fim de algum tempo a injectar, tornavam-se mestres na descoberta do mais pequeno vaso para se picarem: pescoço, cabeça, pénis, virilhas, dedos..., e se o próprio não lhe chegava, valia-lhes a solidariedade do companheiro.

Uma das complicações que víamos, entre tantas outras, era a garra cubital em que o 4 e 5 dedos se apresentavam em flexão e os metacarpos em extensão, por lesão do nervo cubital ao nível do cotovelo. Sendo um aleijão, alguns faziam da sua exposição um modo de inspirar piedade... 

Estes tempos foram substituídos por outras adições, igualmente nefastas, mas com outros contornos... 

Ao ver toda aquela gente, no Centro de Vacinação, com a mão em forma de garra cubital, totalmente absortos e alheados da vida à sua volta, ainda me interroguei sobre o que aconteceria se o governo sugerisse que tinham que andar com telemóvel e instalar uma aplicação tipo Stayaway Covid.... 

Conclusão: Cheguei a casa com 39.7° C de temperatura.

História de H. G. 

1 comentário:

capitão disse...

Napoleão dizia ter mais medo de uma corrente de ar, que do exército inimigo e um sábio aqui da terra dizia, solenemente: "Quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz!", por isso cuida-te e abafa-te!