domingo, 1 de junho de 2025

O Ocaso dos Deuses - 45

 


Nessa noite Hipólito mal dormiu, com pensamentos contraditórios no esforço de entender a necessidade que o homem tem de inventar mitos para derrubar outros mitos, sem que os novos acrescentem coisa que justifique, sempre dividido entre o "individualismo" e o "comunismo", entendendo um como o primado do individuo dentro do grupo e outro como o seu inverso, misturando sentimentos altruístas com a intolerância à diferença.

Tomou um pequeno almoço frugal e saiu para um passeio pela floresta, disposto a cumprir o percurso de 10km em pouco menos de duas horas. A meio tomaria um café junto ao Convento de Cabanas, após o que desceria até à praia, regressando a casa pelo passadiço junto ao mar.

Chovera no dia anterior e numerosas poças de água atapetavam o caminho. Ao passar um rego foreiro, onde as pedras brilhavam, a sapatilha escorregou e só não se estatelou porque uma estranha força o susteve. Hipólito olhou para cima e vislumbrou um ser transparente de rosto sorridente a ampará-lo. Agarrou-se a um galho de salgueiro e, quando se conseguiu suster nos pés, atreveu-se a perguntar: - Quem és?

O espectro, de leve tom esbranquiçado que, ao contrário dos fantasmas, tinha a cabeça descoberta, pernas e pés, respondeu:

- Sou a alma do Papa Francisco! Antes de me recolher à Eternidade, vim visitar alguns lugares que remontam ao início da cristandade no Ocidente. Tinham-me falado deste convento e eu quis ver com os meus próprios olhos. Ia a passar e decidi ajudar-te, quando percebi que ias pôr o pé naquela pedra. A queda ia-te deixar muito magoado.

- Obrigado!, respondeu o médico. – Desculpa não te ter reconhecido, mas estás muito mais novo e magro. Eu pensava que as almas se pareciam mais com o aspecto que temos ao morrer!

- Não! As almas assumem o aspecto que a pessoa tem no auge das suas capacidades físicas e intelectuais, embora com toda a experiência da vida.

- Obrigado pelo esclarecimento! Pelo que vejo, mesmo morto, continuas a praticar o Bem. Mais uma vez obrigado!

- Sabes, Hipólito, eu nasci com uma estrutura cerebral que facilita a empatia, enquanto a outros – os psicopatas, sucede completamente o contrário. Sempre me condoí com o sofrimento alheio. Não só o dos pobres, mas também o dos ricos, que esses também sofrem. Às vezes pelo mal que fazem, outras porque o Acaso os trama, principalmente quando pensam que estão seguros. Esta vocação foi-se intensificando e, quando cheguei à idade da razão, estudei o que teria de fazer para conseguir os melhores recursos para ajudar os mais desafortunados. Os pobres são pobres de muita coisa e sair da pobreza não é fácil. São pobres de dinheiro, pobres de educação, pobres de soluções e frequentemente pobres de saúde. Necessitam de quem os guarde e foi para assumir essa missão que escolhi a religião.

- Mas o Deus que escolheste, embora se diga que é “amor”, quando se estuda a Bíblia, principalmente o Velho Testamento, tropeça-se a toda a hora em violência.

- Esquece Deus!, respondeu a alma. - O meu foco esteve sempre no Homem, como ser único, que contém em si tanto o potencial para o Bem, como para o Mal, tudo depende da educação que se lhe for capaz de fornecer. A educação que os governantes disponibilizam não é suficiente e a religião, ao gerir a Esperança de modo diferente, dá outras orientações para que as desigualdades e injustiças não levem a conflitos onde todos perdem.

O médico anuiu, sem deixar de lembrar que na história do Vaticano é mais fácil encontrar alianças com os poderosos, que empenho na defesa do povo e que, ainda agora, parte significativa do dinheiro que recebe é utilizado para ostentação de poder

O espectro baixou os ombros contristado por ter de dar a mão à palmatória e replicou: - O comum das pessoas necessita de ver essa ostentação para acreditar na força de Deus. As catedrais são a prova mais evidente. Quando foram construídas, as condições habitacionais das populações eram precárias, mas foram elas que chamaram ao cristianismo muitos fiéis. Eu quis alterar várias políticas do Vaticano, mas o poder de um Papa é muito limitado. Aqui para nós, eu cheguei a pensar em acabar com o celibato dos padres, na ordenação das mulheres e até em alargar a algumas permissões para o aborto, mas as forças que ia despertar eram de tal monta, que o mais certo era ser assassinado por um dos meus mais próximos. Mudar o rumo dessas políticas é como manobrar um porta-contentores no estuário de um pequeno rio. Tem de esperar a maré e ter muito apoio de rebocadores, senão encalha e perde-se tudo.

- Percebi a imagem!, disse o médico. – Mas os tempos andam acelerados e o Vaticano arrisca-se a ficar para trás. Já poucos jovens vão à missa de domingo e os que ainda vão pouco percebem do que lá estão a fazer.

- Mas vão e rezam em conjunto, mesmo não percebendo o que estão a dizer!, atalhou Francisco. - E rezar em conjunto dá um ritmo que nos acerta com os outros. É semelhante ao que se passa nos festivais rock com a popstar da época ou a apoiar uma equipe num grande estádio de futebol! É outra “dimensão”. Passamos a ser parte de um outro ser muito maior que nós.

Agora foi a vez e Hipólito relembrar: - Sabes com que idade é que eu analisei o Credo que aprendi na infância? Tinha mais de 60 anos!. Até lá só papagueei aquilo. A consubstancialidade do Pai, passou a intrigar-me, porque quem não acredita nela é “herético” e porque Maria é posta de fora. O “criado, não gerado” não dá espaço à maternidade. A mãe, uma mortal, tem uma gravidez que leva a termo e, no fim, não é “vista nem achada” e fica Deus inteiro no masculino – Pai, Filho e Espírito Santo. Nada de feminino. Só depois é que veio o culto “Mariano”, com Nossa Senhora a “andar por aí”, a aparecer a crianças e pastores, porque ascendeu ao céu em corpo e alma e como tem de andar com o corpo, não pode sair da atmosfera terrestre. Ela não morreu. Entrou num “estado de dormição”. Se ela raramente põe os pés na terra, para que lhe serve o corpo. Era melhor andar como tu, só em espírito.

- Isso é irrelevante!, respondeu Francisco. – A minha preocupação primordial sempre foram os pobres e eles gostam de histórias como essa, onde uma cura milagrosa, ou coisa do género, de um momento para o outro, lhes possa mudar a vida. Pastoras a casar com príncipes, o Euromilhões de sexta à noite, o bom Samaritano que que arrisca a pele desinteressado, o Jó que depois de todas as provações recebe novas terras, novas mulheres, novos burros e camelos, e por aí afora. É que se não lhe dermos estas histórias onde a Esperança aparece quando menos se espera, outros virão com outras história que os atiram uns contra os outros e só não se comem se não puderem.

O médico baixou os olhos, em sinal de concordância. E Francisco continuou: Nos últimos anos, os políticos americanos vieram com slogans para tentar inspirar os pobres a sair da sua pobreza, com o “You can make it, if you try!” do Obama e o “Make America Great Again” do Trump. Do primeiro, já se viu que o resultado foi despertar um sentimento de culpa a quem não teve sucesso, pois “talvez” não tivesse tentado o suficiente, do segundo, para já, o que se vê é o aumento da fortuna pessoal de meia dúzia de oligarcas americanos, Trump incluído.

O médico engoliu em seco e achou por bem parar aquela troca de razões e convidar Francisco para um café, junto ao convento, para depois fazerem uma visita conjunta por aquele espaço recentemente renovado.

Francisco aceitou. Meteu-lhe os braços nos sovacos, elevou-o uns metros e assim foram, em linha recta, pelos ares, para o edifício. É que Francisco ainda queria visitar o convento dos Capuchos em Sintra e não queria te4 que correr. 

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