quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A Arte de Morrer


Arte é o correcto conhecimento do que se deve fazer (S. Tomás de Aquino)

Na Idade Média a morte era ao mesmo tempo familiar e próxima. Esperava-se por ela sem dramatismos, pois esta pertencia a uma ordem maior da natureza, a que todos estavam submetidos e contra a qual não havia que sublevar-se.
O problema cingia-se ao que fazer quando a nossa alma, na hora da morte, enfraquecida pelo medo do desconhecido que se afigura, se vê susceptível aos ataques do diabo!”
Deste modo, a morte mais temida era a repentina, por não permitir o arrependimento.
Na hora da morte os “anjos e demónios vinham cercá-lo como se estivesse num tribunal, para lhe fazerem as últimas tentações e demonstrações de graça, para que o seu livre arbítrio decidisse pela fé da graça divina ou pelos medos aterrorizadores do inferno”.
Convinha estar bem preparado para este momento.
Havia que fazer uma série de advertências ao moribundo para que ele pudesse bem morrer: manter a fé em Deus e a obediência á Igreja Católica; arrepender-se e pedir perdão pelas ofensas dirigidas a Deus; penitenciar-se e arrepender-se dos pecados cometidos e guardar firme propósito de não voltar a cometê-los; perdoar a todos os que o ofenderam e requerer a Cristo que perdoasse os seus ofensores; restituir a quem de devido as coisas mal adquiridas; reconhecer e crer em Cristo como único salvador e redentor dos homens. Após ter cumprido essas etapas do processo de purificação da alma, o moribundo devia, ainda, receber os sacramentos da Igreja apropriados a este momento de passagem e confessar-se de livre vontade.
Era conveniente que outras pessoas acompanhassem o moribundo neste momento para o caso de ele se esquecer de algum item.
As dores e o sofrimento eram entendidos como provas (como se no Purgatório estivesse) a ultrapassar com resignação e como um meio para encurtar o caminho para a salvação. Os gestos de desespero eram blasfémias contra Deus.


O Renascimento traz uma postura científica em relação à natureza e aos aspectos práticos da vida.
Em 1687 Isaac Newton na sua obra principal “Os princípios matemáticos da ciência da natureza”, põe fim à crença que supunha a existência de vários mundos (o Céu, a Terra, o Inferno), e substitui-a pela ideia de um espaço único em que todos os corpos interactuam, mas ainda mais decisiva é a concepção de um tempo abstracto e homogéneo, em que todas as coisas podem ser sincronizadas (na Idade Média, o tempo dividia-se entre um além em repouso eterno e um aquém fugaz sempre sujeito a ingerências a partir do além, como era o caso dos milagres).
O tempo de Newton, ao invés, é tão total e absoluto como o espaço. O além já não existe. Em vez disso, o tempo subdivide-se em passado e futuro. O possível deixa de ser algo que irrompe no aquém a partir da presença paralela do além, mas algo previsível no futuro. Não há já espaço para espíritos e demónios e Deus tem de se contentar com o papel de criador.
Faz-se luz no mundo e a História surge como uma ideia condutora, que permite projectar todas as esperanças que até então se tinham encontrado associadas à religião.
No início do Século XVIII, surgem as ideologias em contraponto à religião, com os pontos mais marcantes na independência dos EUA (1783) e a Revolução Francesa (1789). Proclama-se o “individuo com direitos naturais” como liberdade, igualdade, … e a vida terrena ganha valorização progressiva, em detrimento do conceito de “uma passagem da alma pela terra”.

Estes factos mudam o modo de estar perante a morte.
A morte era uma cerimónia pública e organizada – em muitas circunstâncias, pelo próprio moribundo, que presidia e conhecia o seu protocolo.
O seu quarto transformava-se num local público, onde se entrava e saía livremente e onde estavam sempre presentes parentes, amigos e vizinhos. Levavam-se as crianças.
Os ritos de morte eram aceites com simplicidade e cumpridos de modo cerimonial, mas sem carácter dramático ou gestos de emoção excessivos.
As soluções técnicas oferecidas pela Medicina eram de difícil acesso, escassas e facilmente disponibilizadas junto ao leito do doente.

No século XX a morte virou tabu. A sociedade cada vez mais tecnológica e concentrada no trabalho, esvazia e dessacraliza a natureza humana onde o homem procura minimizar cada vez mais as suas fraquezas e dessa forma o acto de morrer passa a ser um acto vergonhoso.
No cenário da sociedade globalizada o ideal é que o indivíduo morra sem saber que o seu fim se aproxima, poupando-o à perturbação e à emoção forte causadas pela fealdade da agonia, pois acredita-se que a vida é feliz ou pelo menos deve tomar esta aparência. A família deixa de ser a confidente do moribundo e passa esta função para a equipe de saúde, onde todos fingem optimismo (inclusive o doente), para manter a moral.
Por fim tratam-no como a uma criança a quem se repreende por ser despojado da sua responsabilidade, da sua capacidade de reflectir, de observar e de decidir.

Os progressos da medicina não param de prolongar a agonia, deixando todos incertos quanto à hora em que a morte irá ocorrer.
O hospital é o novo espaço onde se morre, e o médico passa a intermediar os instantes finais do moribundo, numa sociedade em que a família nuclear não tem disponibilidade para a morte por nunca a ter presenciado, por temer o sofrimento do familiar e por medo de que o ambiente familiar fique impregnado de más lembranças.

Nos últimos anos, entre a casa e o hospital surge um outro local onde se morre - os Lares de Idosos.

Os Cuidados Paliativos desenvolvem-se a partir de 1960, para minorar o sofrimento físico aos que a ciência desiste de prolongar a vida.
Mas será que resolvem também as dores do espírito de quem parte?

5 comentários:

Anónimo disse...

Bom...vou então tecer o meu comentário (que, aviso, é longo):
-É interessante que noções da Idade Média se tenham perpetuado até aos nossos dias. Ainda me lembro dos "santinhos" (cromos)que nos davam na catequese com o menino a morrer feliz, rodeado de anjinhos...e a exaltação de tal atrocidade! Isto na 2ª metade do Sec. XX na capital de um país europeu! E lembro-me também dos cerimoniais pré-morte em casa das amigas da minha avó, que me mimavam nos lanches e, de repente, deixava de as poder visitar e via a minha avó (toda de escuro) para lá e para cá, sussurrando com a minha mãe a aproximação do "desfecho".
- De repente passei para o palco, contracenando até ao final...e a morte passou a fazer parte dos meus dias. Primeiro com agitação, depois pouco conformada mas mais adequada, e assim ainda o é apesar do quarto de século de convívio com ela "como inimiga sempre á coca". E nestes anos, vejo como a falta de convívio com a morte teria que dar lugar aos "cuidados paliativos". Rótulo que, não quer, mas poderia, significar "longe de casa". O medo, a estranheza e a repulsa pela negação do "super-homem" impede a aceitação da nossa natureza falível. Nem na doença se pensa, quanto mais na morte.E por ter migrado, também noto diferenças. Os do sul aceitam a doença mas, ai que morra! Os do norte nem conseguem encarar a doença, mais embrenhados em rituais místicos, mal a doença se aproxima já vêem atrás dela a morte. Portanto tem que se morrer longe. Discordo que seja por temer "o sofrimento do familiar" mas sim por não poderem enfrentar o próprio sofrimento: a sociedade só aprova a felicidade! O "Magnólia" é um filme que, revelando os hábitos americanos nos anuncia os nossos, mostrando-nos o que poderemos prever: já não é mau se houver Cuidados paliativos para todos, cuidando melhor ou pior dos "males de espírito"...pouco importará, os 11 filhos que, pensando na velhice, parimos, alimentámos, aturámos amámos ou maltratámos. Dificil vai ser descobrir como naquele momento que, para mim deve ser de bem estar, se vai conseguir morrer(só ou acompanhado) mas BEM!

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
capitão disse...

Nem de propósito, apareceu na minha mesinha de cabeceita o livro: "A morte de Ivan Ilitch" de Lev Tolstoi (1828-1910)que em 90 páginas nos dá um retrato fiel da morte solitária de um homem rico.

Anónimo disse...

A MORTE DE IVAN ILITCH é do que já vi de melhor sobre a morte. Andei anos para o ler e deliciei-me . Claro ...é Tolstoi

wolverine disse...

muito bom.

acrescentaria só que a forma como vivemos a morte, mesmo actualmente em que há uma diminuição geral da influência da igreja, ainda é, quer para crentes quer para não crentes, muito marcada pelos ritos trasmitidos por esta: o silêncio sepulcral, o preto nas roupas e nos rostos, os comportamentos socialmente aceites como próprios e adequados à situação.

quanto ao indíviduo, parece-me que o problema é que a morte é uma coisa que só fazemos uma vez, sem ensaios ou treinos ou ideias de da próxima vez corre melhor.
o conceito heróico do morrer bem, do morrer de cabeça levantada, foi algo que se perdeu em parte e vive quase só nos filmes do antigamente.