quarta-feira, 30 de abril de 2014

Belinho


Era sábado e o acaso levou-me ao restaurante “Tiro no Prato”, em S. Paio de Antas, e a um curto passeio pela frontaria da Quinta de Belinho e às histórias que se contam da gente importante que por ali andou no século passado.

A quinta tem brasão das armas da casa Cunha Sottomayor, fundada por D. Paulo da Cunha Sottomayor (1540-1628), fidalgo da Casa Real e grande terra-tenente do Alto Minho.
Família pujante quando o poder se apoiava na posse da terra e na força das armas, que participou em guerras e batalhas aquém e além-mar, e que viu a revolução industrial derrubar-lhe o poderio, por séculos  incontestado.
A última grande figura que aqui viveu foi o poeta  bucólico e saudosista, António Correia de Oliveira (1879–1960), “eleito” de Salazar (1889-1970) e do Estado Novo, que pôs em verso a alma popular, do “doloroso e comovido saber do coração”. 


O poeta, tinha origem humilde. Filho de lavradores pobres, nasceu em S. Pedro do Sul e,  como Salazar, estudou no Seminário de Viseu, que fica a meia distância com Santa Comba Dão.
Não cursou estudos secundários ou universitários. Aos 19 anos, rumou para Lisboa para iniciar a carreira de funcionário público, como amanuense na Procuradoria-Geral da Coroa. Aí escreve em jornais e frequenta tertúlias nos Cafés e Salões da cidade, onde mostra as suas primícias literárias. Aos 33 anos (1912) surge-lhe a oportunidade de fugir à instabilidade política de Lisboa, provocada pela implantação da República (1910) e arruma a vida, casando com a rica viúva Maria Adelaide da Cunha Sottomayor d’Abreu Gouveia, herdeira da Quinta de Belinho e de um coração boníssimo, de sensibilidade vibrátil e lhaneza de trato. 

A soberba vista sobre o mar, desde a Apúlia a Vila Praia de Âncora, entre rosas, lilases e glicínias, avivam-lhe a verve e transformam-no num ” poeta-ermitão” de gosto popular, fervilhante de sentimentalismo, exaltação patriótica e de idealismo cristão.
Frequentes vezes, quando o procuram, os visitantes ouvem da boca dos criados: "O poeta não o pode atender. Está inspirado!"

Em Belinho, fundará um colégio que o fará Grande-Oficial da Ordem da Instrução Pública (1955), título que junta ao de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (1934) por mérito literário. Foi o primeiro português a ser nomeado para um Prémio Nobel, mas o certo é que, apesar dos numerosos textos nos livros únicos do ensino primário e secundário, durante o Estado Novo, a sua bibliografia está actualmente esquecida. Ficou-lhe o nome em ruas (Coimbra, Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Baguim do Monte, S. Pedro do Sul, …), na Escola EB 2,3 de Esposende e nos papéis da venda ao Estado (1916) do antigo “Palácio dos Cunhas” - actual sede do Governo Civil de Viana do Castelo, que fora arrendado para Liceu da cidade, até 1911.
O seu corpo está na capela de Nossa Senhora do Rosário, fronteira ao portão principal da quinta, destinada aos membros da Casa de Belinho.

Se a história do poeta me surpreendeu, a do seu filho mais velho, José Gonçalo da Cunha Sottomayor Correia de Oliveira (1921-1976), foi-me reveladora dos meandros do poder.

Sem ter sido um aluno excelente, licenciou-se, aos 23 anos, em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Aos 28 anos era Director do Gabinete de Estudos do Conselho Técnico Corporativo, passando a Vice-Presidente no ano seguinte. Depois foi Secretário de Estado do Orçamento (1955-1958), Secretário de Estado do Comércio (1958-1961), Ministro de Estado Adjunto do Presidente do Conselho (1961-1965) e Ministro da Economia (1965-1968).
A precocidade com que o poder lhe caiu nas mãos, são mais prova de  fidelidade aos valores dos poderosos da época, que de grande competência. Privava com Salazar. Não casou, nem teve filhos.
Em 1967, a sua progressão política foi travada pelo escândalo Ballet Rose, ao saberem-no envolvido, juntamente com outros políticos das mais altas cúpulas do Estado Novo,  em orgias com crianças entre os 8 e os 12 anos e em práticas de sado-masoquismo. Antes de abandonar Portugal, em 1975, foi presidente do Banco Burnay.
Suicidou-se em 31 de Dezembro de 1976,  atirando-se do sétimo andar de um hotel de Paris.

A Quinta permanece sem a vida de outros tempos. O grande tanque da água está furado, mas a casa ainda é morada da viúva do segundo filho do poeta. Já foi palco para casamentos e baptizados, mas foi sol de pouca dura.
A crise não ajudou e os poetas não andam “inspirados”.

2 comentários:

capitão disse...

in "Escavações de Superfície" - Estudos e Memórias" de António Manuel Couto Viana

O terceiro António que moldou a juventude da minha sensibilidade para a poesia foi António Corrêa d’Oliveira.
Morava a poucos quilómetros de Viana do Castelo, perto de Esposende, em Belinho, ao pé das Antas, onde a família Cunha Sotto Mayor (na Casa de quem ele e o irmão João, dramaturgo de garra, haviam casado) tinha uma quinta histórica, muito vasta, com um solar toucado de rosas. Eram irmãs, as fidalguinhas de Belinho com quem os dois escritores se matrimoniaram: Dona Maria Cândida, esposa do dramaturgo, e Dona Maria Adelaide, esposa do poeta.

Graças a um casamento algo abastado, Corrêa d’Oliveira, … pôde dedicar-se à sua obra.

Muito novo, vindo das terras pingues do Vouga para a capital no início do século, o seu talento foi protegido pela cultura da rainha Senhora Dona Amélia, que igualmente se apiedou da sua debilidade física, a sua propensão para a tuberculose, o terrível flagelo da época a que a soberana dedicou muito do seu interesse …
Contam certas más línguas que, conhecendo tal interesse real, Corrêa d’Oliveira, mal avistava a carruagem de Dona Amélia no macadame do Chiado, que ele assiduamente frequentava, logo erguia a gola da sobrecasaca e iniciava um ataque de tosse cavernosa, destinado a comover o coração generoso da rainha. Histórias!

Corrêa d’Oliveira, quando quis dar uma boa preparação escolar aos seus dois filhos, o José Gonçalo e o António, fundou um colégio no seu solar minhoto, o Colégio de Belinho, com soberbas instalações e o passadio de tipo familiar, carinhoso e farto. … Mas o colégio teve a duração das rosas de Malherbe, …

capitão disse...

In "Escavações de Superfície" - Estudos e Memórias" de António Manuel Couto Viana

Poeta que, em 1934, deixaria o Minho da sua Quinta de Belinho, rumo a Lisboa, a ler, perante Salazar, na sessão do Coliseu dos Recreios, encerramento do I Congresso da União Nacional, um longo discurso em verso, “Pátria Nostra”, que significava a sua adesão à política do Estado Novo. No verbo de Corrêa d’Oliveira, Salazar era “O Sereno Escultor Da Imagem Nova sobre a Velha Traça”.
A actuação do Poeta nessa sessão comemorativa, ou comício, descreve-a, talvez com o exagero ditado pela antipatia que Salazar lhe infundia, o escritor Joaquim Paço d’Arcos, no seu livro Memórias da minha vida e do meu Tempo”, ela é um exemplo de que, como afirmava Antero, “a política nunca foi muito para poetas”. Vou ceder a palavra ao romancista:
“ Os oradores sucediam-se e Salazar continuava imóvel, sem que nenhum dele se aproximasse, talvez por imposição do protocolo. Estava ali, parecia que petrificado, a receber o banho lustral da adulação. A certa altura veio ao nosso camarote o governador civil de Viana do Castelo, espécie de apoderado do Poeta, convidar este a descer ao palco para ler a sua anunciada mensagem. O poeta abandonou-nos e a sua esposa, o irmão, a cunhada, Mário beirão, minha mulher e eu vivemos momentos de expectativa e de inquietação. Como iria ele subjugar a multidão, ele que, jamais, na vida discreta e repousada, a enfrentara?
Conduziram-no até junto do microfone, a um canto do palco. E a ladainha dos versos, quase cantados, em louvor da pátria, apologéticos das virtudes ancestrais, da fé na protecção divina à aventura lusíada, de nacionalismo ferveroso – a ladinha, elevada e pura, tombou sobre a multidão que ao começo nem percebeu estarem-lhe a falar em verso e ignorava inteiramente quem era aquele homem, descido do verde Minho, não para pregar o novo credo, mas para exaltar a perenidade da pátria fiel à estrutura cristã.
Ao começo não percebeu que lhe falavam em verso e depois não percebeu coisa nenhuma. Inevitavelmente uns e outros – e eram milhares – começaram a conversar, para deixar passar o tempo. O poeta prosseguia a sua lengalenga, em voz já fatigada, sem se dar conta de que já ninguém o escutava. Pouco a pouco os ruídos da sala foram-se avolumando. Transformaram-se por fim em clamor desordenado. E o Poeta, talvez já consciente do alheamento da assistência, apressava a arenga, saltava páginas, sem que isso alterasse a lógica inexistente da fala, que perdera todo o objectivo, todo o significado, perante aquele charivari ululante.
Foi um espectáculo confrangedor.
À animação ruidosa das conversas, que abafavam completamente a voz dilatada pelos altifalantes, seguiram-se os primeiros impropérios, apelos imperiosos para que o actor saísse de cena. A situação era dramática e pôs-lhe fim o Dr. Salazar, afastando-se pela primeira vez do total imobilismo para, com ligeiro aceno, chamar um funcionário que, aguardando ordens, atentamente o espiava. Disse-lhe umas palavras e o estafeta, muito expedito, foi junto do orador para lhe transmitir o recado. Este, destroçado, a vasta cabeleira branca mais branca ainda à luz dos projectores, a face tensa vincada pela expressão de espanto e de confusão, suspendeu o discurso a meio dum verso com tanto desvelo burilado e ali inacabado, recolheu as laudas grandes do papel forte e sumiu-se do palco como o importuno que quase comprometera a dignidade e o êxito do espectáculo.