sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (23)



Uma lareira, um sofá aconchegante, um bom livro e um copo de vinho tinto “para senhoras”, faziam-lhe as delícias nas noites de inverno. Este mais parecia um Outono adocicado pelos ventos de África mas, à noite, bem dentro de Dezembro, manda a tradição que haja recolhimento e que as práticas divirjam das de outras estações.

Hipólito lia um livro de História que lhe apresentava os factos sob uma nova perspectiva e, surpreendia-se por não se ter apercebido de outras narrativas possíveis. A História deve ser lida à luz dos valores e conhecimentos da época, mas sendo ela sempre escrita pelos vencedores, há que manter distância, evitando embarcar na deificação dos lideres, que lhes omite os erros, lhes empola as virtudes e lhes fixa os objectivos em função dos resultados obtidos, a que o Acaso nunca é estranho.

Olhou para o copo. Aquela garrafa de Carbernet Sauvignon da Casa Ermelinda Freitas valia bem os nove Euros.
Pôs uma acha na lareira e voltou ao sofá. De repente, lembrou-se que tinha agendado uma consulta com Jó, para essa noite.
Olhou o relógio. Estava quase na hora. Fechou o livro e aguardou.

Minutos depois, a campainha tocou. Era Jó. Vinha diferente. A túnica nova e a barba aparada, tiravam-lhe o ar miserável do primeiro encontro. A pele já não tinha crostas embora se notassem múltiplas manchas cicatriciais descoradas. Nos pés trazia umas sandálias de couro, amarradas em torno do tornozelo.

- Entra, entra! Que não estás vestido para uma noite como esta. Nem umas meias calçaste!, preocupou-se o médico ao vê-lo naqueles preparos, como se estivesse em pleno verão, nas margens do Eufrates.

-Não te preocupes!, respondeu Jó. - Estou habituado ao sofrimento. O Purgatório é uma provação diária!. O frio é o menos. O pior é a humidade! Então quando há nevoeiro …, entranha-se-me nos ossos e fico tolhidinho de todo!
Hipólito conhecia de cor essas histórias do reumatismo e ainda se tentou a explicar-lhe que um ambiente saturado de água dificulta o aquecimento, mas lembrou-se que Jó não possuía conhecimentos básicos de física e conteve-se. Foi ao móvel onde tinha os copos e trouxe-lhe um que encheu de vinho, enquanto o empurrava em direcção à lareira.
- Aquece-te aqui um pouco, que estás com as mãos geladas! Depois diz-me como tens passado!. convidou o médico.
- Melhorzinho!, respondeu Jó. - Principalmente da pele. Ainda futuro muito, mas nada como dantes! Mas o ambiente também não tem ajudado à minha recuperação psicológica!
- Como assim?, perguntou o médico.

Jó olhou-o suspenso na indecisão de contar histórias do Purgatório a um mortal, ainda vivo, e, por fim, desabafou:
- É que há umas três semanas, mudaram-se para o pé de mim os três pastorinhos! Como deves calcular não são a melhor vizinhança. O Francisco e a Jacinta, ainda se suportam. São crianças e fora o barulho que fazem, pouco chateiam! Agora a irmã Lúcia!... , abanou no ar, repetidas vezes, os dedos da mão direita. - É um cromo de alto lá com ele!. … Anda cheia de vaidades a dizer "Eu é que sou santa! Eu é que faço milagres! Eu é que ponho o sol a dar voltas!"... É um espancamento!!!!!. Passa a vida a dizer que, se não fosse ela, o centro do país só era conhecido pela pêra rocha!
O médico confirmou. - Lá isso é verdade! Ela é figura central no turismo religioso! Mas não contava com ela no Purgatório!? Isso é possível??, pasmou Hipólito.

Jó, meteu a mão cabelos adentro e respondeu com enfado: - O Purgatório está cheio de santos. Muitos deles, se aparecessem hoje, eram rapidamente encaminhados para hospitais psiquiátricos. Olha o S. Simeão "estilita"! Esse também anda por lá meio ganzado!
- Dizes que há santos no Purgatório!, insistiu o médico, a tentar tirar nabos da púcara.
- Ui!, respondeu Jó. – São “paletes” deles! Sempre houve muitas pressões sobre o Vaticano para a atribuição do grau de santo a um paisano excêntrico que, por uma qualquer razão, mais ou menos lógica, conseguiu chamar a atenção da populaça e gerar um movimento tal, que a Cúria não tem alternativa senão a de cavalgar a onda, antes que outros o façam. Uns estão identificados como “santos populares”, como o S. Roque, mas nem sempre assim é. A mitologia cristã é muito complexa. Eu sou de outro campeonato. Pertenço ao Velho Testamento. Infelizmente, a minha história de vida foi alterada, para se tornar exemplo de fidelidade, quando, de facto, ela é exemplo do que se não deve fazer quando nos deparamos com dificuldades, que é entrar em pânico e desatar a implorar a ajuda divina. Os árabes têm um ditado que diz “Deus ajuda quem se ajuda!” e os brasileiros dizem que “Pão de pobre quando cai, é com a manteiga para baixo!”. Naquele tempo não se dizia nada disto! Implorava-se a Deus na desgraça. E foi nesse barco que embarquei!

-Vejo que fizeste um esforço para interpretar os erros da tua vida!, confirmou Hipólito. – Apesar de tudo, tiveste sorte, porque Deus deu-te novo gado e novos filhos! Mas, já que me abriste a curiosidade, ao falares do Purgatório, eu gostava de saber se viste lá santos portugueses? O S. Teotónio? O D. Nuno Alvares Pereira? E os mártires de Viana do Castelo – a Revocata, o Teófilo e o Saturnino?
Jó deixou a cadeira e sentou-se no tapete. Hipólito acompanhou-o.
- Temos este hábito de nos sentarmos no chão!, justificou-se. E depois, enquanto passava a mão pelo tecido, anotou. - Belo tapete! É bem macio! É português?
- Sim! respondeu o médico. – É de Beiriz. Cem por cento lã. Em Portugal só se fazem tapetes em dois locais. Em Beiriz e Portalegre. Embora chamem tapete ao que se faz em Arraiolos, aquilo, na verdadeira acepção da palavra, é um “bordado”.

- É engraçado como as palavras perdem significância, quando se divulgam para fora das camadas mais eruditas da população. Um tapete tem uma urdidura muito diferente da de um bordado. Mas, respondendo à tua pergunta sobre os santos portugueses, também aqui as palavras ganharam diferente significância e a população começou a chamar santo a todos os que, de algum modo, se identificaram com o seu sofrimento, sem qualquer aval da cúria romana. É assim que aparecem os “santos” mártires, os “santos” bispos (também chamados doutores da igreja), e santos como o Nuno Álvares Pereira, que de “estratega e génio militar”, aos 64 anos, depois de enviuvar e ter perdido os filhos, se tornou “humilde monge”, no imponente Convento do Carmo, por si mandado construir, em 1389. Só foi reconhecido beato em 1918 e santo em 2009, depois da sua suposta intervenção na recuperação «milagrosa» de uma úlcera de córnea provocada por óleo de fritar, que deveria ter demorado um ano a sarar e que sarou em apenas três meses.

- Como é que sabes isso tudo?, inquiriu Hipólito. – Podes ser de outro campeonato, mas estás bem actualizado!
Jó sorriu. – Foi um acaso!, explicou. – Como a Lúcia, no meio das suas vaidades se comparou com o Santo Condestável, dizendo que ele quase não tinha devotos, eu fui ver quem era o personagem. Depois, como tu vives em Viana do Castelo, procurei os santos dessa região e só encontrei o São Teotónio. Quanto aos mártires por que perguntaste, devem ser uma invenção. Uma coisa como as antigas relíquias.

Agora era a vez de Hipólito sorrir. – Fiquemos por aqui, senão ainda acabamos a falar dos 14 prepúcios de Jesus que circulavam pela Europa na Idade Média! Se estás melhor, vais manter o tratamento e aguardar a consulta de psiquiatria, que eu agendei para o início do ano!
Levantaram-se. Hipólito foi à cozinha e trouxe um pequeno embrulho que lhe meteu entre as mãos. – Tens aqui uns sidónios, da Confeitaria Flôr, para a viagem de regresso. Vais ver que são dos melhores que aqui se fazem! Não comas tudo de uma vez, que eles também são bons no dia seguinte.
Jó agradeceu. – Deixas-me sem jeito! Não pago a consulta e ainda por cima, me dás prendas!
- Quando ficares bom, se te lembrares de passar por cá, traz umas costeletas de carneiro, para degustarmos em conjunto e fazermos as honras a uma pomada que eu ali tenho para as circunstâncias especiais.

Abraçaram-se. A noite estava fria e aceleraram as despedidas.
- Até uma próxima!, respondeu Jó, desfazendo-se em fumo.
- Vai com calma, que o mundo não acaba amanhã!, disse Hipólito, enquanto pensava: A eternidade é uma chatice!

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