terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Lembranças do Olimpo (24)


Há duas semanas que Hipólito não tinha qualquer contacto com o sobrenatural e isso deixava-o inquieto. O que se passava em redor tresandava a terreno. Os dias rotineiros faziam parceria com as notícias que enchiam os meios de comunicação, nacionais e internacionais, onde pontuava a vida mundana de Hollywood, do futebol ou da moda. Quem casava, quem se divorciava ou morria, sem qualquer toque daqueles que os deuses põem nas coisas banais para as transformar em guias para os mortais. Até os doentes morriam previsivelmente de doenças crónicas e tinha-se por garantida a presença diária do presidente da república, na televisão, à procura de “consensos”, ao mais pequeno desequilíbrio social. O Natal enchia as lojas de gente e o “All I want for Christmas is you!” tocava repetidas vezes em todas as ruas.

Hipólito afastou-se do bulício da cidade. Foi até à margem do rio admirar a elegância das taínhas a lutar contra a força da maré, a pensar se esta acalmia não seria aquela que precede os estranhos fenómenos ou as espetaculares intervenções divinas que alteram o curso da História do Homem na Terra, quando Zeus se sentou a seu lado. O médico levantou-se, agradado com a sua presença.
- Oh! Que bom é ver-te! Pensava que te tinhas esquecido de nós!
Zeus, pousou o raio e abraçou-o. -Também folgo em saber que estás bem! Tinha planeado só vir no verão, por causa da gripe, mas o Papa Francisco convidou-me para um Concílio de Deuses e eu não tive coragem de lhe dar uma nega!

- Então, estás a planear um regresso!, sorriu Hipólito, manifestamente feliz.
- Não!, respondeu o deus. – Vim só para não dizerem que sou um ressabiado e que não colaboro, quando é já evidente que a humanidade estar a dar cabo do planeta. O Tema também era apelativo: “Princípios Básicos para as Religiões que formatam o estar da Humanidade - Um novo paradigma”, e achei que a minha experiência podia servir aos deuses mais novos.
- E que tal está a correr esse Congresso, digo ... Concílio?, emendou Hipólito. Zeus não considerou a gafe e continuou:
- Nada bem! Logo nas primeiras sessões começaram as dissidências. O assunto era a "individualidade” e quando alguém defendeu que o homem deveria ser visto como uma abelha de um enxame, com um comportamento essencialmente determinado pelo grupo a que pertence, foi uma salgalhada das antigas!
Depois, como era Natal, o Papa Francisco, mostrou um presépio como símbolo da família. Havias de ver o sururu que se levantou. Que o presépio era só um pedacito da família, que deviam estar ali os irmãos, os tios, os avós, os antepassados e até os vizinhos próximos. O Francisco ainda tentou uma deriva dizendo que ele retratava o fruto do amor entre duas pessoas e que isso era a coisa mais linda que havia, mas já ninguém o ouviu.
À tarde, depois de umas generalidades, decidiu-se que o melhor era entrevistar os CEO das mais importantes instituições da Humanidade e começar pela cultura Ocidental. Ir ao Japão para falar com o Akihito, a Nova York falar com o Guterres e com o Trump, a Londres com a Rainha Elisabeth, a Berlim com a Angela Merkel, à Califórnia com o Bill Gates e a Moscovo com o Putin.
Mas quando se tentou distribuir estas tarefas pelos presentes, um grupo barulhento, desatou a gritar: “O Allahu é que vai!, O Allahu é que vai!”. Estás a ver! Quem queria ir começou a ficar irritado por só falarem naquele. Aos poucos, os deuses, foram saindo “à formiga”, até que o Francisco adiou a sessão alegando que tinha de ir comprar sapatos!

Hipólito estava surpreendido. Sabia que grande parte dos conflitos humanos tinham origem nos deuses, mas nunca pensara que as diferentes interpretações sobre o que é um homem poderia levar à sua exaltação. Zeus cingira a túnica ao corpo como a proteger-se do nevoeiro que entretanto se instalara e Hipólito sugeriu que fossem tomar um chocolate quente a um café que não tinha clientes, àquela hora. - Vais ver como te passa o frio num instante!, e, para estimular a conversa perguntou: - Tu achas que todos os deuses estão a par da evolução tecnológica da Humanidade?
Zeus sorriu. - Claro que estão! O problema não é esse. O problema está na estrutura que têm no terreno. Os Cristãos aceitaram reduzir o número de mosteiros e a passagem de algumas das suas funções para o poder temporal, mas o Islão não quer passar essa influência para um Estado Laico. As madrassas estão instaladas e asseguram emprego a milhares de pessoas. Eles não têm possibilidade de lhes fazer um "upgrade" e torná-los professores de Liceu ou de Universidades. Ia haver muita instabilidade social.

- Mas hás-de convir que, no mundo actual, as histórias dos heróis já não são veiculadas pelo clero. Quem agora dá referências aos miúdos, são os desenhos animados, o cinema e a TV. Soubeste que o Darth Vader foi a figura escolhida para representar o Mal numa das gárgulas da Washington National Cathedral, nos States? Não foi o Diabo! E isso só significa que a catequese foi vencida por Hollywood, pelo menos no Ocidente!
- É um facto!, concordou Zeus. Os personagens religiosos, para uma criança, são menos carismáticos que o Homem-Aranha ou o Skywalker e poucos se interessam pela vida do S. Vicente de Saragoça, mesmo sendo ele o padroeiro de Lisboa. Isto para falar da religião dominante no teu país. Daí que haja quem resista à globalização. Nós gregos, preocupávamo-nos em estimular a imaginação do nosso povo até ao limite. Mas há para aí religiões que funcionam em direcção oposta, porque lidam com populações com muito fraco desenvolvimento intelectual.

- Não tinha pensado nisso!, disse Hipólito, enquanto escorropichava o fundo da taça. - Mas se os fundamentalistas acreditam que conseguem fugir à globalização, estão muito enganados! Ela está para ficar! O melhor é colaborarem no estabelecimento de novas regras, com benefício para todo o planeta e não só para o Homem! Mas mudemos de assunto., sugeriu o médico. - a tua mulher dá-se bem, lá por onde vocês andam?

Zeus sorriu, ajeitou-se na cadeira e chegou-se mais próximo do médico para lhe confidenciar: - Deixou de tomar a pílula! Agora quer engravidar! Adaptou-se completamente àquele estar. Os 14 protões do silício ajudam mais os seres vivos daquele planeta que os 6 de carbono que a vida na Terra usa. Torna-os menos conflituais e sabes como são as mulheres, olham em primeiro lugar para a estabilidade. E por falar nisso!, deitou a mão à cabeça, a lembrar-se de um compromisso. - Fiquei de ir com ela visitar um rio de azoto líquido que existe nas montanhas. E já estou atrasado. Desculpa ter de ir assim tão de repente. Um abraço! , disse e, no mesmo instante, esfumou-se no nevoeiro que assumiu um leve tom azulado.

À porta do Café o empregado perguntou. - Você não estava acompanhado?. Hipólito pagou e respondeu: -Nunca estamos sós. Mesmo que os não vejamos, os deuses estão sempre connosco!.

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