quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A Reforma e o Tédio



Nas redes sociais, quando encontro alguém da minha geração, o que mais me chama a atenção não é a exuberância das viagens nem o culto da saúde tardia, mas um murmúrio quase permanente de tédio. É curioso, porque muitos desses mesmos que hoje confessam não saber como preencher os dias foram, durante anos, os que mais desejaram ardentemente a reforma — exaustos da “canga”, como lhe chamava um meu avô, e persuadidos de que a simples libertação do trabalho seria suficiente para garantir plenitude.

Na casa dos meus pais chegava, pontualmente, a edição portuguesa das Selecções do Reader’s Digest. Eu detinha-me sobretudo nas pequenas histórias em itálico que encerravam cada artigo: episódios breves, muitas vezes anedóticos, que nada exigiam da mente mas que, unidos, ajudaram a formar o meu olhar sobre o mundo. Uma dessas histórias ficou-me para sempre.

Narrava-se que um homem morrera e subira aos Céus, onde fora acolhido por um pajem de libré. Depois de se apresentar como “um seu criado”, garantiu-lhe que seria capaz de satisfazer qualquer desejo. O recém-chegado, surpreendido com tamanha disponibilidade, pediu o que lhe pareceu mais urgente: uma mulher jovem, num quarto sumptuoso, para um dia de luxos sensoriais.
O criado estalou os dedos, e imediatamente surgiu a loura perfeita, submissa aos seus caprichos. Seguiram-se horas de saciedade, depois longas refeições, bebidas abundantes, despertares tardios. Nos dias seguintes repetiu o programa; mais tarde, cansado da saturação, exigiu viagens — Roma, Paris, Hong Kong, Nova Iorque — e tudo lhe foi concedido. Durante meses, a abundância não teve fim.
Até que, um ano depois, irritado com a própria ociosidade, chamou o criado e pediu-lhe uma simples coisa para fazer. O pajem, num gesto cortês, respondeu que isso era impossível: podia conceder-lhe tudo, menos uma tarefa. O homem indignou-se — “Que Céu é este, onde não se pode fazer nada?” — ao que o criado devolveu, imperturbável: “O senhor não está no Céu. Está no Inferno.”

Compreendi muito cedo que também para mim seria um Inferno. A ausência de ocupação corrói-me o ânimo. Sempre me surpreendeu a serenidade com que alguns se declaram felizes vivendo dias sobrepostos, feitos de televisão, pequenas rotinas mecânicas e uma repetição quase litúrgica do nada.
A reforma, que tantas vezes se imagina como um território de liberdade luminosa, transforma-se frequentemente num espaço onde o tempo se alarga além do suportável. A vida ativa impõe ritmos, responsabilidades, encontros. Subitamente, tudo isso desaparece: os horários tornam-se irrelevantes, a convivência diária esvai-se, a sensação de ser útil desloca-se ou extingue-se.
Quarenta anos de trabalho não deixam apenas experiência: deixam hábito, estrutura mental, uma forma de se estar no mundo. Quando essa estrutura cai, instala-se uma espécie de vertigem silenciosa. O cérebro, privado de desafios, perde agilidade; a memória embacia-se; o humor achata-se; a motivação desfaz-se como um músculo não exercitado.

Contudo, nada disto é inevitável. Há caminhos possíveis — mas exigem imaginação, disciplina e uma certa coragem para abandonar a passividade. Procurar atividades com propósito, dedicar-se à aprendizagem contínua, praticar exercício adaptado, cultivar relações sociais vivas. Tudo isto se torna mais difícil numa sociedade que não desenvolveu uma verdadeira cultura de lifelong learning, apesar de iniciativas recentes como as universidades sénior e a crescente valorização do voluntariado.
Ainda assim, essas portas existem. E, para quem as atravessa, a reforma deixa de ser um deserto monótono para se tornar um novo território de construção de sentido. O tédio não desaparece — mas aprende-se a domá-lo, a transformá-lo em impulso, em curiosidade, em vida.