domingo, 25 de maio de 2008

Ribeira de Pena 1977


Tinha acabado o curso de Medicina em 1974 e, como a maioria dos jovens portugueses, sentia-me parte da onda gerada no 25 de Abril.

Estivera 2 anos a trabalhar no Hospital de S. João, tinha já algum à-vontade com as principais doenças e o facto de ter uma filha com meses e toda a família no Porto, não constituía obstáculo à minha participação activa naquele serviço cívico que era o Serviço Médico à Periferia.
Iria com a minha mulher, e a miúda ficaria transitoriamente entregue aos cuidados dos meus pais.
Abrimos o Mapa de Portugal na região Norte com o Mapa das Vagas ao lado e, sem nunca lá termos ido, escolhemos Vila Pouca de Aguiar / Ribeira de Pena.

Na manhã do primeiro dia de Fevereiro de 1977, acordamos a distribuição. Iríamos dar apoio ao Internamento e ao Serviço de Urgência do Hospital de Vila Real, a minha mulher e um casal de colegas ficariam no Centro de Saúde de Vila Pouca de Aguiar e eu mais outros dois iríamos para Ribeira de Pena.

Na tarde desse mesmo dia fui pela primeira vez a Ribeira de Pena. O Centro de Saúde funcionava numa casa degradada dos anos 50 com a cozinha a fazer de Sala de Tratamentos e os 3 quartos de Sala de Espera e Consultórios. Um administrativo e uma enfermeira garantiam-lhe a porta aberta e, como não havia mais médicos no concelho, distribuímo-nos por Ribeira de Pena e Cerva.

Depois perguntei por dormida e mostraram-me um quarto acanhado com uma cama de ferro, uma cadeira e um guarda-vestidos desengonçado, na casa da Junta de Freguesia em frente. Rejeitei. O quarto na Estalagem Cabanelas em Vila Real compensava aquele desterro, enquanto não encontrasse mais perto outro poiso com alguma dignidade.

Só mais tarde fiz o reconhecimento. Ribeira de Pena no Inverno era um buraco frio, húmido e sem sol, com a Igreja a dominar pouco mais de uma centena de casas mal cuidadas, onde sobressaíam duas ou três ruínas de casas senhoriais do início do século. Na periferia ponteavam as casas inacabadas dos emigrantes e outras de pedra escura e sem reboco, com o fumo a denunciar lareiras continuamente acesas. Os caminhos degradados distanciavam-lhe as aldeias. A população (~11.000 habitantes) rural, analfabeta e pobre na sua maioria, tinha péssimos hábitos de higiene, pois tomar um banho no Inverno ou até o simples mudar de roupa eram actos temerários.
Para os auscultar ou para lhes observar os corpos, havia de desmontar uma série interminável de camisolas, combinações, espartilhos, casacos, xailes e o que mais houvesse que guardasse o calor, o sebo, o cheiro a fumado e a suor retido de Setembro a Abril, mais a desconfiança ressentida dos GNR, Serviços Florestais, Veterinários, Hospitais, etc... a quem atribuíam os mais diversos oportunismos.

O estar longe de casa, a viver num quarto com uma mala de roupa, com uma filha entregue aos cuidados dos avós e um Marão de curvas a alongar a estrada não se sobrepunham aquele desafio, nem os maqueiros gingões e os médicos desactualizados do Hospital de Vila Real com a ideia maluca de que “para cá do Marão mandam os que cá estão” eram causa de desânimo.
A população agradecia e surpreendia-se quando se decidia a continuidade dos tratamentos mais difíceis nos Hospitais de Vila Real ou do Porto com melhorias onde até então era “morte certa”, pelo que, um mês depois, já alugara um quarto na casa do Chiquinho da Farmácia, com os benefícios da hospitalidade transmontana.

Foi um tempo de desbravar soluções, umas com a funcionalidade instalada, outras com recurso aos expedientes de momento, porque a medida eram os resultados.
Mas foi também a oportunidade para conhecer a intimidade daquela região sustentada pela emigração e pelo transcendente das histórias, o seu modo de entender a vida e o seu modo de aceitar a morte.

Em Fevereiro de 1998 esse tempo acabou. Mais tarde regressei vestido de turista, mas a falta dos dramas, das angústias, dos cheiros e desconfortos tornara tudo frio e desaconchegado, ... irreconhecível!
Nunca mais lá voltei!

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