domingo, 3 de março de 2013

À bordalesa

O telemóvel tocou. João, ao confirmar o número de casa, atendeu. Do outro lado a voz insegura da empregada.
- O Sr. Reis chorou e sentiu-se mal. Diz que quer ir ao hospital!
O sogro ficara em casa, junto ao aquecedor, atormentado pelo recente falecimento da companheira.
No velório aos sussurros junta-se o roçagar das roupas e das mãos que o frio obriga. No centro a morta aguarda.
- Vamos!?
Viagem curta. Um lanço de escadas, um corredor e a pequena sala. Uma mesa, um sofá, uma televisão e um aquecedor no máximo. Na cadeira um corpo curvado envolto em almofadas. Já foi andarilho e caçador. Agora as dores tolhem-no. Lembra-se de tudo, dizem, mas repete as histórias que já todos conhecem.
A televisão está desligada e os comandos à mão, que daqui a nada dá o Benfica na SportTV.
- Então Sr. Reis! Sentiu-se mal?
Esboça um soluço. Depois outro menos contido. A filha abraça-o.
Medem-se as tensões arteriais e o pulso. Está no seu normal. Tentam distraí-lo. Primeiro com a televisão. Depois com os prazeres possíveis.
- Sr. Reis! Então ontem foi almoçar fora?
- Como era sexta-feira de jejum, convidei o João e fomos a Entre-os-Rios comer uma lampreia ao Mirante.
- Uma lampreia para os dois? Aos 93 anos?
- Sim! O empregado ainda perguntou se queria arroz, e eu disse-lhe que arroz comia em casa! Foi à Bordalesa e regada com vinho do Douro.
- Sr. Reis! E era sexta-feira de jejum porquê?
- Ora essa! Porque estamos na Quaresma. Entre o Carnaval e a Páscoa, à sexta-feira, é dia de jejum e abstinência. Não se pode comer carne!
- Claro, Sr. Reis!
...

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