domingo, 6 de novembro de 2016

Lembranças do Olimpo (21)


Hipólito regressou a casa tentando identificar as árvores por que passava. Carvalhos, castanheiros, faias, salgueiros, cedros, medronheiros, bétulas, eram fáceis. Outras obrigavam-no a parar. Pena não ter trazido o livrinho das autóctones, pensava, embora, mesmo com ele, algumas, por serem de outras regiões ou lhe faltarem elementos distintivos, como frutos, flores e até folhas, ficassem para outras alturas.
Desde pequeno que a natureza lhe despertava curiosidade, fossem seres animados ou rochas. Lembrava-se ainda do espanto com que vira, pela primeira vez, os rifts do fundo do mar que estão na origem da tectónica das placas e também de um livrinho sobre Darwin que o tirara das limitações das crenças religiosas, mas fora o funcionamento do corpo humano, na saúde e na doença, que acabou por vencer e orientá-lo para a profissão.
Embora a teoria lhe interessasse, era pela prática que se media, sem se impressionar com quem recitava de cor as mais recentes “guidelines” e fugia da proximidade dos doentes, nem com quem entendia os actos médicos, como actos de piedade, e escondia a incompetência debaixo de um discurso pseudo-ético-religioso, parasita do trabalho dos pares. Admirava, acima de tudo, um diagnóstico difícil, principalmente se feito com recursos limitados, a que se seguia uma terapêutica eficaz. Era aí que punha a tónica da profissão, embora nunca descurasse o respeito por quem sofre o infortúnio de uma doença.

Chegou a casa cansado. Procurou no frigorífico uns restos que pudessem servir para um almoço tardio, aqueceu-os e acompanhou-os com uma cerveja gelada. Depois estendeu-se na sua Lounge Chair, e adormeceu. Foi nessa precisa altura que Zeus lhe apareceu.

- Que é feito de si, meu amigo!?, perguntou Hipólito, satisfeito, enquanto se endireitava na cadeira e lhe oferecia o "ottoman". – Há meses que não sei nada de vós! Como é que se dão pelo vosso novo planeta?
Zeus sorriu. Já não se vestia à antiga, com o quiton branco. Agora usava calças e uma jaqueta em couro duro, azul-cobalto de tons iridescentes, qual exosqueleto de um insecto, que em nada lhe limitava os movimentos. Na mão mantinha o raio azul e na cabeça os longos cabelos e a barba não escondiam quem ele era.
- Estamos todos bem e activos!, respondeu. –Deixámos de ser deuses de uma só espécie e agora somos deuses de todos os seres vivos daquele planeta. É curioso como aquilo que parecia ser uma carga de trabalhos, nos deu tranquilidade. Já não temos só a forma humana. Agora, ao aproximarmo-nos das diferentes formas de vida, assumimos as suas configurações e tentamos entender-lhes as angústias e expectativas, para as ajudar a aceitar limitações e assim não serem vítimas dos seus desejos. Olhe! O Dionísio, que era Deus do vinho e da vegetação, agora virou entomologista e passa a vida à volta das abelhas e das formigas. Qualquer dia até se esquece do que são uvas. O Eros, de Deus do Amor e do Desejo, agora, interessa-se por harmonizar os movimentos dos asteróides para que as colisões não sejam só obra do Acaso, e o Ares deixou as guerras e agora dedica-se ao jornalismo. Está entusiasmadíssimo com a capacidade de criar movimentos populacionais com as notícias, sejam elas verdadeiras ou falsas. Diverte-se imenso. No outro dia noticiou lá o “Calcitrin MD Rapid” como um medicamento “muito bom para os ossos”, esquecendo-se que aqueles seres têm por base o silício e não o carbono. Muito nos rimos! … Está um “bem-disposto”! Mas a maior parte das notícias que cria, são mais dirigidas a fabricar futuros que a registar o passado. Tem tido imenso sucesso! Agora anda a dedicar-se à necrologia. Sempre que morre um ser vivo, ele inventa-lhe um passado cheio de dignidades, que possa servir de inspiração aos outros seres da sua espécie, para estimular vidas consonantes com os outros seres daquele planeta. Qualquer dia perdem a angústia com a morte e deixam de se virar para nós!, sorriu, enquanto dava um jeito aos cabelos que lhe caíam para a frente dos olhos.

- Pelo que contas, não vejo que estejam a perspectivar um regresso à Terra!, perguntou, como quem afirma, o médico.
Zeus levantou-se, passeou um pouco pela sala, como a admirar os bibelots que repousavam sobre os móveis e continuou, ignorando a interrupção.
- Até a minha mulher está diferente. Ela tinha obsessão por tudo o que se relacionava com sexo. Se eu saísse para fora do seu olhar, ficava inquieta. Tinha uns ciúmes de morte! Naquele planeta fomos obrigados a rever o nosso conceito de “individualidade”, pois o seu sistema combate os extremos, impedindo, em todas as espécies, os muito ricos e os muito pobres, sem contudo impedir que cada um se possa realizar de acordo com as suas potencialidades. Até as grandes árvores têm de deixar passar a luz para que as mais pequenas possam crescer e, se já forem muitas a ocupar um espaço escasso, têm de aceitar não produzir mais sementes.
O Acaso é o único que pode fazer o que quiser, porque é de “outro campeonato”! Naquele planeta é ele o responsável pelos acidentes, dos domésticos aos provocados pela actividade tectónica (tsunamis, terramotos e vulcões). O Hefesto teve de se conformar e, agora, dedica-se à microbiologia. O seu maior trabalho é convencer as bactérias mais patogénicas a só atacarem quando os seres vivos morrem, por velhice ou por obra do Acaso.

- Interessante!, confirmou o médico. – Sinto no teu falar grande satisfação com o que ali encontraste. Parece ser tudo muito “cool”! Mas está-me aqui a parecer que, se a coisa se passar sempre como descreves, daqui a uns anos, vais achar esse planeta muito parado e vais ter saudades da Terra onde estão sempre a acontecer coisas novas. A não ser que o Acaso não durma e faça a vida negra a todos os seres vivos!
- Para já está a ser bom! É como nos Hotéis “cinco estrelas”. O horário de trabalho é de vinte horas por semana e mesmo assim o maior problema é o desemprego. É necessário inventar muitos factos para os manter entretidos a conversar uns com os outros, mas nisso o Ares tem-se mostrado um Às!
Olha, Hipólito! Vou ter que voltar. O Dionísio não está a conseguir fazer com que a lagarta mineira deixe de atacar os citrinos, e ele não frequentou o curso de aplicação de produtos fitofarmacêuticos. Vou ter de o ajudar. Fica bem!
- Até uma próxima!, respondeu o médico. – E volta sempre! Dá os meus cumprimentos a toda essa malta olímpica e um abraço especial à tua mulher, que é uma santa, que mais não seja por te aturar!

E, dito isto, Hipólito acordou com a sensação de estar envolto numa nuvem com um leve cheiro a enxofre. Esfregou os olhos e olhou para o relógio. Eram quase sete da tarde e a mulher ainda não tinha chegado.

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