domingo, 26 de fevereiro de 2017

Lembranças do Olimpo (26)


O Arcanjo riu e perguntou: - Mas porquê o Quixote se ele sofre de Demência Fronto-Temporal?
- Porque eu necessito de alguém, consensual, com um misto de agressividade, impulsividade, inflexibilidade, comportamento inapropriado, ilusões e falsas concepções, que possa proclamar liberdades, questionar costumes e proferir inconveniências, com total inimputabilidade.
Ele tem 400 anos de provas dadas, o que é mais que suficiente. Nada como um louco para apontar o dedo à Justiça.

- Então é ele que queres para me questionar?, pasmou S. Miguel, fazendo subir e descer os pratos da sua balança.
- Exactamente!, respondeu Hipólito. – Não é necessário que um homem conheça as razões que o movem quando opta por um de dois caminhos. Querendo, pode mesmo iludir-se sobre os motivos da escolha, atribuir-se virtudes que não possui, inventar pretextos e invocar imperativos ditados pela boa índole, pela rectidão moral, pela fibra ética, pelos princípios. Pode tentar convencer-se de que é o amor que o move e que é a Justiça que o obriga; reclamar-se guardião dos mais elevados ideais e argumentar que a sua defesa justifica o uso de qualquer meio.
O homem vive de enganos. Inventa deuses, persevera em acreditar neles e cuida para que os demais creiam também com tanto ou maior fervor. Não tem ideais, tem humores. E este é o móbil de todas as suas acções, das boas e das más, dos gestos acertados e dos erros. As disposições humanas, por mais volúveis ou ponderadas, constroem os destinos e todas as coisas, ditam sortes e convocam desgraças.

- Vejo que citas de cor o Manuel Jorge Marmelo no “O homem que julgou morrer de amor”.
- Não te sabia leitor, pelo que ainda mais te admiro! Julgava-te um fundamentalista, mas dou a entender-te como alguém à procura de um equilíbrio dinâmico para a humanidade, que sabe que o homem é, de entre todos os animais, aquele que mais se assemelha ao lobo: se devidamente alimentado e vestido, com um punhado de moedas na mão, chega a parecer dócil e assustado, mas se tem a barriga vazia transforma-se num ser selvagem, capaz de renegar os seus deuses e amaldiçoar as suas crenças, sem pestanejar antes de fazer o que julga necessário para ganhar o direito ao alimento que lhe falta, e até de dar caça ao seu pai, irmão ou mestre, o que inspirará gerações e as ensinará a vencer sem olhar a meios, armado apenas de pragmatismo, da determinação e do ódio que faz dos fracos vencedores.

- Fim de citação!, riu o Arcanjo. Hipólito que, com o ânimo, se tinha levantado, voltou a esparramar-se no cadeirão, simulando um grande cansaço.
- Desculpa a referência. Lembrei-me deste trecho porque, de vez em quando, tropeço em colegas de profissão que evoluem para “testemunhas de Jeová da Medicina”, decididos a impor o seu modo de estar não só na profissão, como também no dia-a-dia. Costumam dizer que a Medicina é um “sacerdócio”, mas se lhes pagam menos do que as suas expectativas, passam à peixeirada e esquecem o tal espírito de missão que habitualmente reivindicam.

S. Miguel deu dois passos até à janela, de onde se via o mar.
-Então o D. Quixote é o nº 2, e ficará a representar quem reclama por Justiça quando é beneficiário de leis que protegem os seus privilégios.
- Isso mesmo! E também daqueles que se julgam “top” e se cegam para tudo o resto, transformando-se em martelos que em todo o lado vêem pregos!

Depois despediram-se e Hipólito ficou longos minutos a olhar para a nuvem por onde o viu entrar, a pensar se algum dos outros Arcanjos teria características que os pudessem eleger para os números seguintes.

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