sexta-feira, 9 de junho de 2017

Lembranças do Olimpo (29) - Jeová




Hipólito regressou a casa a matutar no sucesso da história de Jesus. Aquela profecia “maluca” da eminente vinda do Reino de Deus e que Ele iria impor a sua vontade “tanto na Terra como no Céu”, fora capaz de agregar as vontades que visavam igualizar os homens, numa altura em que Reis, Imperadores e Sacerdotes alegavam estreita familiaridade com os deuses, de quem emanava o seu poder. Era ainda esse movimento que, depois de 2.000 anos de voltas e cambalhotas, fundamentava o Humanismo actual. Até à revolução tecnológica do último século, a Igreja Católica estivera na crista da onda do conhecimento, mas desde então passara a andar a reboque, a reagir às novidades, em vez de ser ela a criá-las, sem nunca abraçar os movimentos de igualdade de género ou da defesa dos animais e só muito recentemente, com o Papa Bergoglio, é que parece ter acordado para os grandes problemas ecológicos do Mundo.

Ora estava o médico nestas conjecturas, quando um clarão apareceu por entre as nuvens do fim do dia. Exactamente como vira na banda desenhada dos catecismos. Um céu de fim de dia, com um corredor de luz a espreitar pelas alvas nuvens, por onde um enorme bando de pombas brancas descia, precedendo uma alva figura humana cintilante, com um báculo na mão e uma mitra bordada a ouro, cravejada de esmeraldas. A sua barba branca dava continuidade ao longo cabelo esvoaçante. Ao vê-lo descer na sua direcção, Hipólito abriu as janelas e o deus instalou-se na poltrona do fundo da sala que, de imediato, se transformou num trono recoberto por um baldaquino, muito semelhante ao do Papa no Vaticano.

- Boa noite!, disse-lhe o médico. – Calculo que sejas Jeová! Sê bem-vindo a esta humilde casa!
- Boa noite!, respondeu o deus. – Era para ter vindo mais cedo, mas tenho tido tantos afazeres por esse Universo fora, que o tempo não me chega para nada. Já me arrependi de ter criado o Big-Bang! Quando estava tudo concentrado no mesmo ponto, era mais fácil, agora com o Universo em expansão, o ter de andar do mais infinito para o menos infinito, para lhe dar alguma ordem, é uma canseira das antigas.
- Calculo!, disse o médico. – Mas com tantos afazeres, o que é que te trás até este grão de areia do deserto?
- Nem sei! Ouvi a tua conversa com Jesus e não resisti a propor que me entrevistasses. Como deves calcular, eu tenho muito trabalho organizativo, mas, de vez em quando, gosto de fazer trabalho de campo e ouvir o que a criação a quem atribui livre arbítrio, pensa.

Hipólito embora pouco impressionado, com aquela entrada apoteótica, sentiu-se lisonjeado. Puxou uma cadeira, pediu autorização e sentou-se.
- Antes de mais, quero-Te dizer que é um privilégio receber a Tua visita. Mas era escusado teres investido tanto na encenação da tua entrada. As técnicas de multimédia actual conseguem uma realidade virtual multi-sensorial semelhante. Quanto ao baldaquino, espero que ele seja virtual e não como o da Basílica de S. Pedro, feito com os antigos bronzes do Panteão de Roma que o Papa Urbano VIII mandou derreter.
- Ok!. Disse Jeová. E de imediato toda aquela parafernália desapareceu, para dar lugar a um idoso, bem-humorado, com um cajado na mão, sentado no seu sofá. – Esta tipologia de aparição, está programada desde que entreguei as Tábuas do Dez Mandamentos a Moisés. Como tem funcionado, deixei de me preocupar com a sua actualização. Mas agora, que chamaste a atenção, acho que está na hora de um upgrade! Vou pensar nisso.

Mas vamos à entrevista, que é o que me traz cá. Podes fazer três perguntas, senão eu fico aqui uma eternidade e há coisas que ficam por fazer. Aqui na Terra, o que se não faz no dia de Santa Luzia, faz-se noutro dia, mas no Céu, não há a mesma relação com o tempo e é melhor não deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.
Hipólito sorriu ao vê-lo citar, ironicamente, os ditados populares. Depois, endireitou-se na cadeira e fez a primeira pergunta:
- Já que te disponibilizas, gostava de saber a Tua opinião sobre a Cúria, sediada em Roma?
Jeová, deitou a mão à cabeça. – É um grande problema! Cada vez é mais difícil inspirá-los em soluções que lhes dêem credibilidade! Então agora com o Papa Francisco a querer aumentar a componente social da Igreja e o Bento XVI a minar-lhe, sorrateiramente, o projecto defendendo um forte poder central, baseado em abstracções teológicas que consigam unir cada vez mais os fiéis, a coisa está mais difícil.
- Mas Tu não consegues impor uma norma que os convença?
- Não posso, por imperativo organizacional. Decidi que na Terra, o Homem tem livre arbítrio e que Eu só trato dos ambientes, criando dificuldades ou facilidades para ele superar, mas, pelo caminho que estou a ver as coisas irem, ele vai mesmo dar cabo do planeta!.
- E Tu não te importas, tendo-o feito a Tua imagem e semelhança?
- Não! O Jorge Sampaio disse “Há mais vida para além do Orçamento!” e eu digo “Há mais vida para além da existente na Terra!”. Esta forma de vida aqui existente, com base no Carbono, é comum no Universo, embora menos frequente que aquela que tem por base o Silício.
- Já ouvi Zeus falar nessa! Diz que esses seres são mais dóceis e previsíveis que os da Terra. Até se transferiu para um desses planetas!
- Ah! O Zeus! Esteve cá?
- Sim! Desistiu dos projectos na Terra. Agora anda feliz num planeta da Galáxia Adrómeda. Só cá vem arejar o escritório e pouco mais. Mas voltemos aos teus Papas vivos. Apoias algum em especial?
Jeová corrigiu-o. – Não te esqueças que também sou Deus dos Judeus, dos Ortodoxos, dos Protestantes e de muitas outras seitas. Mas como tu estás mais interessado nos Católicos e no que se passa no Vaticano, informo-te que não apoio nenhum deles. Ambos têm razão. O Francisco é mais terra-a-terra, mas a ficção sempre foi mais importante que a realidade e o Ratzinger luta por uma narrativa motivadora, e isso pode ser mais decisivo que resolver pontualmente alguns dos problemas das comunidades onde o clero tem influência.
É esse equilíbrio entre a componente vertical e a horizontal das religiões que é necessário gerir.

- Queres dizer que uma pequena alteração na liturgia católica podia trazer mais benefícios para a Humanidade, que colaborar com os políticos na resolução dos problemas do dia-a-dia dos fiéis?
- Sim! Eu construí o Homem para viver na “Esperança” de … “um dia” as coisas irem melhorar, mesmo que esse dia seja depois da sua morte. E essa narrativa pode não ter nada a ver com a realidade. Só tem de ser motivadora, capaz de se replicar e de agregar as novas inovações tecnológicas. O Francisco quer ser exemplo de humanidade e preocupa-se em estabelecer pontes entre a heterogeneidade do pensar dos povos e das suas religiões, mas esse passo só tem eficácia duradoura se for apoiado numa boa história.
- Entendo! Respondeu Hipólito. – E Fátima? Estás a par com o que se passa?? Como é que o entendes?
- O culto de Nossa Senhora como elemento no movimento para a igualdade de género é muito positivo, mas esta vinda do Francisco a Fátima foi um sapo que ele teve de engolir para dinamizar o turismo religioso. Foi como a recepção ao Trump. Devia ter-se posto em cima dele, para não ficar com aquela cara de “looser” na fotografia. Também esta coisa de canonizar a torto e a direito, não lhe vai ser favorável. Então a dos pastorinhos, não lembra ao demónio.
- Tens de concordar que aquela Cúria, que ele herdou, não o ajuda. Interrompeu Hipólito, que tinha um fraco por Francisco.
- Aquela Cúria é um saco de gatos! Não ajuda nem um nem outro. O Banco do Vaticano também não! Um Banco faz o jogo do dinheiro e esse jogo nem sempre é limpo. Um Banco pode ir à falência por uma desatenção ou passar de uma situação de aperto para uma de desafogo por causa das tais “fake news”, de que fala o Trump. Lembras-te do Horta e Osório ter sido convidado, em Março de 2011, pelo governo inglês, para dirigir o Lloyds Bank, que fora apanhado dois anos antes, nas malhas da crise do “subprime”? Mal tinha assumido funções, meteu baixa por dois meses, por … “exaustão”!!!! Logo que a notícia se espalhou, os mercados “reagiram” e venderam-se muitas acções a baixo preço!
- Queres dizer que aquela notícia foi “fabricada”, com esse propósito?
- Não estou muito dentro dos factos que tornam os mercados “nervosos”, como dizem os vossos políticos de direita, mas são notícias destas que estimulam os especuladores e fazem alterar os preços. O Horta e Osório sabia-o bem e, nesse jogo do compra e vende, um Banco pode ganhar milhões!

- Já vi que te não queres comprometer! Achas então que a solução para a crise do Cristianismo, nas culturas mais avançadas, passa pela construção de uma história integradora da imensa variedade de descobertas tecnológicas, num sistema politico global que promova bem-estar?
- Sim! É essa história que é necessário inventar para dar Esperança, pois é ela que alimenta o cérebro humano. Depois, é bom que haja alguma protecção para o corpo, contra o tempo, as doenças e alguma comida. Haja a tal história e tudo se suporta! Os bens materiais podem esperar!
- Então vamos à última pergunta. Disse o médico. – Achas que os exegetas ainda conseguem extrair dos Evangelhos essa tal história que os torne, de novo, actuais?

Deus sorriu. Pousou o cajado no chão, levantou-se e depois de dar três passos pela sala, virou-se para a janela e respondeu. – Estou em crer que tal não é possível. Talvez nos livros apócrifos haja histórias virgens das milhares de interpretações a que os Evangelhos canónicos já foram submetidos e que dêem a possibilidade de uma leitura que altere os discursos teológicos. Se não houver, os profetas de Silicon Valley vão dominar a filosofia do mundo moderno e dar início a uma nova religião baseada em fluxogramas - o Dataísmo.

Deu meia volta e dirigiu-se ao médico que também se tinha levantado.
- Acabaram as perguntas! Vou ter que ir! Qualquer dia apareço-te, de novo. Fica prometida uma outra encenação.
E dito isto, saudou Hipólito e dissolveu-se no ar, deixando na sala um leve aroma a lírios do campo. O médico esfregou os olhos. Mal tinha almoçado e já sentia um rato no estômago.

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