domingo, 6 de outubro de 2024

Lembranças do Olimpo - 34

 Kissinger desceu do púlpito e, ao pisar o último degrau do palco, esfumou-se em tons de azul e branco em direcção ao hexagrama desenhado nas costas da cadeira onde se tinha sentado. Ouviu-se novo toque de trombetas e Phoebe, que tinha retomado o palco, anunciou o novo orador: Xi Jinping. Depois, deu um salto, três mortais de costas e um encarpado e veio sentar-se ao lado do dr. Hipólito.

-Eh lá! Exclamou o médico, enquanto se afastava. – Era escusado vir nesse rompante para cima de um mortal!

A deusa pediu desculpa e, depois de bem sentada, justificou-se: - Eu gosto de sentir o pulso ao povo, e estas minhas entradas servem para lhe estimularem a adrenalina. Você, dali de cima, pareceu-me um bom exemplar e esse camarada aí ao lado também! Mas vamos ouvir o que Jinping nos vem dizer, que o Kissinger aqueceu um bocado o ambiente.

Xi Jinping, que estava na mesa entre o Mao Tsé Tung e o Elon Musk, levantou-se e, em passadas largas, dirigiu-se ao centro do palco. Estava vestido com roupa tradicional chinesa hanfu, em tons de branco e preto, bordada a ouro, como a mostrar que a cultura chinesa tem alternativas ao cerimonial ocidental. Ajeitou o microfone junto a bochecha e, sem mover qualquer músculo da face, iniciou o seu discurso.

Hipólito pegou no lápis e no papel para anotar os tópicos, e cedo se apercebeu que ele se iria confinar ao seu “Pensamento” sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era. Eram quatorze parágrafos que ele já conhecia, ditos em tom monocórdico e com a “poker face” que o caracteriza.

Phoebe olhou para o papel vazio e perguntou: - Então? Não tira apontamentos?

Hipólito respondeu: - Ele não está a dizer nada de novo! Eu esperava algumas dicas sobre abertura a outros partidos mas, pelo andar da carruagem, ele não vai por esses caminhos!

A deusa sorriu, condescendente.

- Está a desvalorizar as dificuldades que ele teve de ultrapassar para criar as infraestruturas que hoje a China dispõe? Olhe que não há na História da Humanidade ninguém que, em vinte anos, tenha feito o que ele fez, ainda por cima tendo herdado um partido onde a corrupção era generalizada. Não foi fácil livrar-se do desperdício e aumentar a influência da China no mundo.

- Eu não apoio o culto da personalidade que faz perpetuar no poder. O homem já é mais popular que o Mao Tsé Tung. Se morrer o país tem um abalo difícil de recuperar. Respondeu o médico. 

- Não se preocupe com isso dr.! Ele está para lavar e durar. Tão cedo não lhe vai dar um treco. É “pragmático”, tem uma enorme estabilidade emocional e controla o PC Chinês. Tem tudo para se aguentar.

Xi Jinping, continuava a explanar o seu “Pensamento” que basicamente consistia em “Garantir a liderança do Partido Comunista da China em todas as formas de trabalho na China”.

Hipólito virou-se para a deusa e perguntou: - Será que, com os seus poderes sobre-humanos, não é capaz de perscrutar se o que ele pensa é independente do que diz?

Phoebe riu-se. - Os pensamentos do momento, não lhos consigo dizer, mas digo-lhe os que habitualmente o orientam.

Hipólito, cutucou o Harari: - Está visto. O Jinping não vai dizer nada que não tenha já dito. Mas a minha parceira aqui do lado é capaz de nos dar outras notícias. Quer ir lá fora connosco?

O professor recusou, alegando que os deuses enganam frequentemente os humanos e preferia continuar a ouvir o chinês, porque há coisas ditas nas entrelinhas que fazem toda a diferença e o diabo está nos pormenores.

Saíram os dois, à formiga, para o átrio, onde um sofá em pele de girafa os esperava. A deusa sentou-se e segredou-lhe: - Aqui ninguém nos ouve e até a pele deste sofá é de um bicho mudo!, brincou. – Mas, respondendo à sua curiosidade, posso-lhe dizer que o Xi anda num sino, com a Videovigilância e a Inteligência Artificial, que lhe garantem uma ordem nunca antes conseguida. Ri-se das democracias ocidentais e dos bloqueios que elas causam às tomadas de decisão. Chama-lhes “sacos de gatos” e aposta na sua decadência. Para já pretende dominar o negócio dos automóveis no mundo. Depois vai tentar o mesmo nos aviões e por fim aumentar a importância da China nos serviços. O Xi pensa no sucesso do formigueiro e não se coíbe de sacrificar formigas. São mil e seiscentos milhões delas. Os conflitos actuais no Médio Oriente e na Ucrânia, só lhe dão vantagens e espaço para se meter cada vez mais em Africa. Espere mais uns anos e vai ver a volta que ele ali vai dar. O "socialismo ao estilo chinês” tem horror à desordem e é pouco preocupado com as liberdades e garantias que tolhem o Ocidente. Ele diz, para si próprio, que África está à espera de quem a arrume!

Hipólito, aproveitou para se certificar de uma notícia que lera num jornal. – É verdade que nas cidades chinesas há 440 câmaras de vigilância por cada 1000 habitantes?

- Sim! E, com a ajuda da AI já monitorizam os movimentos dos cidadãos que quiserem, desde criminosos a potenciais opositores políticos. Mas não são só eles. Em Londres também há Videovigilância, só que em vez das 440 câmaras têm 13 por mil e regras bem mais apertadas. Mas o mundo está em rápida transformação e o amanhã é sempre uma incógnita. Vai ver que o "crédito social" vai aparecer noutras regiões para além da China. 

 Dentro da sala ouvia-se o barulho das palmas. Hipólito levantou-se e apressou-se para chegar ao seu lugar e perguntou ao Harari: - Ele disse alguma coisa de novo?

- Não! Disse o que já sabemos. É dos que nunca abre o jogo! Não disse nem uma graça e só por uma vez esboçou um sorriso. E você? Tem novidades?

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Marca



Uma “marca” é um rótulo aplicado a um produto, que conta uma história sobre ele, que até pode ter pouco a ver com as suas especificidades, mas, ainda assim, o público habitua-se a associar um ao outro. 

José Estaline, polo agregador de um dos maiores cultos da personalidade a que a História assistiu, sabendo que Vassili, o seu filho problemático, se aproveitava do apelido para atemorizar e intimidar, repreendeu-o. - Mas eu também sou um Estaline!, respondeu Vassili. 
- Não! Não és!, respondeu o ditador. – Eu próprio não sou Estaline. Estaline é o poder soviético, é o seu rosto nos jornais e nos retratos; não és tu nem sou eu! 

José Estaline sabia que os indivíduos, à imagem dos produtos, também se podem constituir como “marca”. Um bilionário corrupto pode ser rotulado como defensor dos pobres; o maior imbecil pode ser vendido como génio; um guru que abusa sexualmente de seguidores pode ser apresentado ao mundo como um santo casto. O público crê estar conectado ao indivíduo, mas está ligado à história que lhe contaram sobre o ele e, o mais das vezes, a distância que vai de uma coisa à outra é gigantesca. 

In “Nexus” de Yuval Noah Harari 

“No man is a hero to his valet”, dita um velho provérbio inglês.
Como “não há grandes homens para o seu criado de quarto”, há que criar uma “marca” para aqueles que se quer promover.