Kissinger desceu do púlpito e, ao pisar o último degrau do palco, esfumou-se em tons de azul e branco em direcção ao hexagrama desenhado nas costas da cadeira onde se tinha sentado. Ouviu-se novo toque de trombetas e Phoebe, que tinha retomado o palco, anunciou o novo orador: Xi Jinping. Depois, deu um salto, três mortais de costas e um encarpado e veio sentar-se ao lado do dr. Hipólito.
-Eh lá! Exclamou o médico, enquanto se
afastava. – Era escusado vir nesse rompante para cima de um mortal!
A deusa pediu desculpa e, depois de
bem sentada, justificou-se: - Eu gosto de sentir o pulso ao povo, e estas
minhas entradas servem para lhe estimularem a adrenalina. Você, dali de cima,
pareceu-me um bom exemplar e esse camarada aí ao lado também! Mas vamos ouvir o que Jinping nos vem dizer, que o Kissinger aqueceu um bocado o
ambiente.
Xi Jinping, que estava na mesa entre o
Mao Tsé Tung e o Elon Musk, levantou-se e, em passadas largas, dirigiu-se ao
centro do palco. Estava vestido com roupa tradicional chinesa hanfu, em
tons de branco e preto, bordada a ouro, como a mostrar que a cultura chinesa
tem alternativas ao cerimonial ocidental. Ajeitou o microfone junto
a bochecha e, sem mover qualquer músculo da face, iniciou o seu discurso.
Hipólito pegou no lápis e no papel
para anotar os tópicos, e cedo se apercebeu que ele se iria confinar ao seu “Pensamento”
sobre o socialismo
com características chinesas para
uma nova era. Eram quatorze parágrafos que ele já conhecia, ditos em tom monocórdico e com a
“poker face” que o caracteriza.
Phoebe olhou para o papel vazio e
perguntou: - Então? Não tira apontamentos?
Hipólito respondeu: - Ele não está a
dizer nada de novo! Eu esperava algumas dicas sobre abertura a outros partidos mas, pelo andar da carruagem,
ele não vai por esses caminhos!
A deusa sorriu, condescendente.
- Está a desvalorizar as dificuldades
que ele teve de ultrapassar para criar as infraestruturas que hoje a China
dispõe? Olhe que não há na História da Humanidade ninguém que, em vinte anos,
tenha feito o que ele fez, ainda por cima tendo herdado um partido onde a corrupção
era generalizada. Não foi fácil livrar-se do desperdício e aumentar a influência da
China no mundo.
- Eu não apoio o culto da personalidade que faz perpetuar no poder. O homem já é mais popular que o Mao Tsé Tung. Se morrer o país tem um abalo difícil de recuperar. Respondeu o médico.
- Não se preocupe com isso dr.! Ele está
para lavar e durar. Tão cedo não lhe vai dar um treco. É “pragmático”, tem uma enorme
estabilidade emocional e controla o PC Chinês. Tem tudo para se aguentar.
Xi Jinping, continuava a explanar o seu
“Pensamento” que basicamente consistia em “Garantir a liderança do Partido
Comunista da China em todas as formas de trabalho na China”.
Hipólito virou-se para a deusa e perguntou:
- Será que, com os seus poderes sobre-humanos, não é capaz de perscrutar se o
que ele pensa é independente do que diz?
Phoebe riu-se. - Os pensamentos do
momento, não lhos consigo dizer, mas digo-lhe os que habitualmente o orientam.
Hipólito, cutucou o Harari: - Está
visto. O Jinping não vai dizer nada que não tenha já dito. Mas a minha parceira
aqui do lado é capaz de nos dar outras notícias. Quer ir lá fora connosco?
O professor recusou, alegando que os
deuses enganam frequentemente os humanos e preferia continuar a ouvir o chinês,
porque há coisas ditas nas entrelinhas que fazem toda a diferença e o diabo
está nos pormenores.
Saíram os dois, à formiga, para o
átrio, onde um sofá em pele de girafa os esperava. A deusa sentou-se e
segredou-lhe: - Aqui ninguém nos ouve e até a pele deste sofá é de um bicho
mudo!, brincou. – Mas, respondendo à sua curiosidade, posso-lhe dizer que o Xi
anda num sino, com a Videovigilância e a Inteligência Artificial, que lhe garantem
uma ordem nunca antes conseguida. Ri-se das democracias ocidentais e dos
bloqueios que elas causam às tomadas de decisão. Chama-lhes “sacos de gatos” e aposta
na sua decadência. Para já pretende dominar o negócio dos automóveis no mundo.
Depois vai tentar o mesmo nos aviões e por fim aumentar a importância da China nos serviços. O Xi pensa no sucesso do formigueiro e não se coíbe
de sacrificar formigas. São mil e seiscentos milhões delas. Os conflitos actuais no Médio
Oriente e na Ucrânia, só lhe dão vantagens e espaço para se meter cada vez mais
em Africa. Espere mais uns anos e vai ver a volta que ele ali vai dar. O
"socialismo ao estilo chinês” tem horror à desordem e é pouco preocupado com as liberdades e garantias que tolhem o Ocidente. Ele diz, para si próprio, que África está à espera de quem a arrume!
Hipólito, aproveitou para se
certificar de uma notícia que lera num jornal. – É verdade que nas cidades
chinesas há 440 câmaras de vigilância por cada 1000 habitantes?
- Sim! E, com a ajuda da AI já monitorizam os movimentos dos cidadãos que quiserem, desde criminosos a potenciais opositores políticos. Mas não são só eles. Em Londres também há Videovigilância, só que em vez das 440 câmaras têm 13 por mil e regras bem mais apertadas. Mas o mundo está em rápida transformação e o amanhã é sempre uma incógnita. Vai ver que o "crédito social" vai aparecer noutras regiões para além da China.
Dentro da sala ouvia-se o barulho das palmas.
Hipólito levantou-se e apressou-se para chegar ao seu lugar e perguntou ao
Harari: - Ele disse alguma coisa de novo?