domingo, 16 de novembro de 2008

Incurável























-"Oh Dona Maria! Você continua com as Tensões muito altas! Tem tomado a medicação?"
-"Não Senhor Dr.! é que o meu corpo não se dá com medicamentos!"

Foi assim nas quatro consultas, em que cheirei a naftalina e ouvi as frases dissonantes vestidas de solenidade, daquela mulher pequena, obesa e meio careca, até lhe diagnosticar Perturbação de Personalidade, e a enviar para uma Consulta de Psiquiatria.

Era a primeira filha de um oficial da marinha mercante (cronicamente ausente) e de uma dona de casa com terrenos agrícolas arrendados. Teve uma infância com tudo o que uma menina bem nascida numa cidade periférica na 4ª década do século XX, podia aspirar.
A mãe deslumbrara-se com o seu crescimento e ela, com todo aquele espaço, adoçara a irmã na sua vontade e isolara-se dos que entendia inferiores.

Quando o pai regressou para morrer de tuberculose, viveu a ineficiência dos tratamentos como culpa da assistência e acentuou a superioridade moral com que já olhava os defeitos dos outros.

Nos meses seguintes, entristeceu-se na Igreja e caíu oferecida na casa do padre da freguesia que, surpreso e pouco expedito, lhe fez avisar a mãe.

A vida está cheia destes equívocos. A realidade atraiçoa-nos e dá-nos versões diferentes de acordo com a posição do observador e, quando a menina Maria viu a irmã à porta, só uma ideia lhe aflorou para lhe marcar o resto da vida.
-“Seguiste-me? Tu seguiste-me! Não te perdoo, nem que viva mil anos.!", disse no desespero da fuga, enquanto o padre petrificado, respirava.
Aquela frase e a morte da mãe, dois anos depois, isoloraram-na definitivamente, deixando as duas irmãs a partilhar a casa de costas voltadas.

E era assim que tudo ainda estava trinta anos depois: a irmã numa metade da casa com o marido e ela na outra a desconfiar de todos e a falar com frases feitas.

-“Oh! Dr. Freud! Então isto não tem tratamento! Ela também não cumpre as tuas prescrições?”, ainda insisti.
Responde-me de lá o Psiquiatra: “Ouve lá! Tu curas o cancro?”

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