quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
Lar Lembranças do Olimpo (6)
Afrodite caminhava descalça, como a suster o tempo. Uma corda doirada a cingir-lhe a túnica de linho branco era todo o seu adorno e nem uma pintura realçava um traço da sua fisionomia.
Hipólito redimensionava-a no seu sistema límbico, quando lhe assomou à boca o início do poema de Lucrécio “De rerum natura”.
Dos Enéades progenitora, prazer dos homens e dos deuses,
Alma Vénus, tu que sob os deslizantes astros dos céus
Enches de vida o mar portador de navios,
Enches de vida as terras de searas produtoras,
Porque graças a ti é concebido todo o género de seres vivos
E contempla, quando nasce a luz do sol,
Diante de ti ó deusa, fogem os ventos,
À tua chegada afastam-se as luzes do céu,
para ti a terra operosa faz despontar suaves flores,
Para ti sorriem as extensões do mar
E o céu pacificado brilha com luz radiosa.
Hera, foi ao seu encontro, deixando-o dez passos atrás. Saudaram-se e, depois de umas curtas palavras, caminharam na sua direcção, sorrindo.
Hipólito baixou os olhos, quis deitar as mãos ao peito, ajoelhar e até prostrar-se de braços abertos, mas conteve-se e aguardou. Traído pelo rubor da face e com um ligeiro trémulo na voz cumprimentou-a dizendo Kaliméra!
Afrodite decidira impressiona-lo, não por qualquer particular interesse naquele cinquentão, mas para lhe mostrar o poder que uma imagem pode ter sobre os humanos. Depois, também lhe queria falar do seu desencanto, para que ele, saído dali, qual arauto, o desse a conhecer a toda a Humanidade.
Estendeu a mão. Hipólito sentiu-lhe os frágeis dedos e, quando levantou os olhos, ela estava de jeans, sapatilhas e T-shirt branca com a palavra Ágape impressa, a abrir espaço para uma conversa sem constrangimentos.
Entraram no Templo. Na sua ala reinava a harmonia. As colunas encimadas por capitéis e lintéis com baixos-relevos alusivos à criação do Mundo e os frescos nas paredes invocando o encontro entre as mais variadas espécies, de minúsculos invertebrados a árvores de grande porte, lembravam a sua responsabilidade por toda a vida sexuada do planeta.
Sentaram-se. Hera, serviu "cyceon" e pão de cevada e Hipólito atreveu-se a iniciar a conversa.
-Afrodite! Desculpe a curiosidade mas, já que se dispôs a chegar à fala comigo, gostava de ouvir da sua boca esse “desânimo” com os humanos. Custa-me a crer que tenha desistido de todos nós?
A deusa reclinou-se, apanhou os cabelos e amarrou-os num gracioso rabo-de-cavalo, cruzou a perna, levou o copo aos lábios e, depois de um pequeno gole, respondeu-lhe:
- Dr. Hipólito, quando há uma semana o vi aqui entrar, engracei consigo. Parecia o Woody Allen e, como vai ficar entre nós uns tempos, achei por bem disponibilizar-me para esta conversa.
Como já deve saber, deixei de interferir na vida dos humanos. Aguentei muito, mas depois de ler umas coisas sobre ADN, genes e cromossomas, concluí que vocês não têm matriz para as alterações comportamentais que eu idealizara, e não tenho paciência para esperar que o Acaso altere o vosso património genético, para surgir um fenótipo favorável que vos enquadre na vida do planeta. Vós evoluístes no sentido inverso.
- Quer então dizer que não apoia mais a humanidade?
- É um facto. Só estou à espera do dia de sair daqui. Há mais vida para além deste planeta. Hera anda com a ideia de um outro para os lados da Andrómena e, se ela for, vou também!
Hipólito entristeceu na eminência de perder aquele convívio e, como a tentar pôr água na fervura, contrapôs:
- Afrodite, há-de convir que há muita gente boa, disposta a ver no amor uma saída.
A deusa endireitou-se, pôs um ar sério e explicou:
- Dr. Hipólito! Quando Zeus me pediu ajuda para dar um caminho ao Homem que o levasse à perfeição, eles eram uma meia dúzia que conhecia pelo nome. Quando se reproduziram, apoiei-os com gosto nas migrações, eles na caça e elas a tratar dos abrigos e dos filhos. O problema surgiu com a invenção da agricultura. Quando o seu número aumentou, apareceram uns tipos a armar-se em donos disto tudo e acabou a solidariedade entre eles. Desde então tem sido sempre “ò p’ra trás” com o faz-de-conta a dominar as suas relações.
Agora dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, como se fossem possíveis imagens com significância sem uns milhares de palavras que as suportem. Preocupam-se com o “embrulho” sem cuidarem nem do corpo nem da alma.
Trabalham para se parecerem com "modelos". Elas usam tacões para chegar aos 173 cm e passam fome ou apertam-se para ter cintura de 61 e anca e peito de 86. O exercício que fazem não tem intenção de serem fortes. Os mais desesperados enchem-se de adornos. É um verniz de fraca qualidade que os trai ao primeiro movimento. Com eles a coisa é semelhante: carros, futebol e fanfarronices. Na sua linguagem corporal transparece uma fraca saúde mental.
Hipólito concordou. Lembrou-se que toda a movimentação voluntária, tem a modulação do sistema extrapiramidal. Por incrível que pareça, ele é influenciado pela “cultura”. É ele que nos dá individualidade.
Afrodite levantou-se e convidou-o:
-Terminemos o assunto, Dr.!. Venha comigo que eu quero-lhe mostrar uma coisa surpreendente!
Saíram para o terreiro onde um formigueiro ajudava Psique a separar uma massa confusa de sementes de trigo, de papoilas e milho-miúdo, arrumando-as conforme a sua qualidade.
- Vê! Eu tinha-lhe dado esta tarefa de castigo, mas veja a bondade das formigas! A bicharada com menos cabeça que os humanos coopera muito melhor e sem reclamar!
Depois, despediu-se e desapareceu no meio das flores.
Hera, tomou-lhe o braço e perguntou: Ainda tem tempo para uma consulta ao nosso amigo Hércules?
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