quarta-feira, 6 de janeiro de 2016
Lar Lembranças do Olimpo (5)
Hércules, incomodado com aquela intimidade, olhou-os de soslaio. O estatuto de semi-deus, não lhe permitia entrar naquela casa. Vagueava pelas imediações e dormia na estrebaria junto aos cavalos de Diómedes, numa esteira, com o retrato do filho à cabeceira.
- Ele anda perturbado!, confidenciou Hera. - Trabalhou demais. Chegou a estar mais de vinte e quatro horas sem ir à cama. Quando veio do Hades, depois de ter capturado o Cerbero, deu-lhe o "burnout". Parece um gazeado! Vai ter de o ver mais tarde, mas por agora, passemos ao largo, não vá ele ver em si um demónio. Dr.! Você não tem destes, lá no Hospital onde trabalha?
Hipólito concordou com um gesto de cabeça. Tinha por essa gente um certo carinho. Reconhecia-lhes o passado e diferenciava-os claramente dos displicentes que se escudavam nos postos a que se tinham alcandorado - cirurgiões arrogantes, ortopedistas que assustavam doentes desprotegidos com vernáculo abastardado, neurologistas incompetentes e outros, que os responsáveis bem conheciam e que, por comodidade, fingiam ignorar.
Hipólito, acelerou o passo e, para não abrir essa chaga onde diariamente tropeçava, mudou de assunto:
- Afrodite veio para estes lados?, perguntou.
Hera percebeu o constrangimento e aceitou a deriva.
- É natural que ande por aqui. Umas vezes passeia-se no seu carro puxado por cisnes, outras vezes transforma-se na estrela d’alva e ateia desejos ardentes nas entranhas de todas as criaturas. Também gosta de se vestir de branco e aparecer em cima das oliveiras. Já foi tomada por Nossa Senhora.
Ultimamente está desiludida depois de tantos anos a lutar para que a beleza e o amor fossem o fermento para que os genes se misturassem nas devidas proporções e o Homem evoluísse. Até meteu o filho Eros no empreendimento, mesmo sabendo que aquilo era trabalho infantil.
Há uns anos afastou-se e, desde então, os jovens não saem dos écrans dos computadores, obcecados com o faz de conta. Já viu como têm diminuído as pontes entre as pessoas?!.
O meu marido quer que ela volte ao activo, como uma verdadeira deusa da fertilidade, do prazer e da alegria, a louvar a mulher-companheira que põe a tónica na jornada e não em objectivos mensuráveis em Euros, nem em carreiras profissionais obsessivas, que culminam em amargura e solidão.
Mas eu não o vou permitir! O Homem é um caso perdido! Gosta de se vestir de puritanismo bacoco quando dentro da sua cabeça borbulham carinhos e amores que não consegue resolver.
- Está a insinuar que a sociedade actual é mais puritana que a que existia na vossa Grécia antiga?
- Com certeza! Vocês passam demasiado tempo a trabalhar. Com a tecnologia que possuem, já deviam ter reduzido a semana de trabalho para as 30 horas. Havia emprego para todos e estimulavam-se as actividades dos tempos livres. Devia ser obrigatório pertencer a um coro, dançar, praticar actividade física regular, tratar de um jardim, ler romances ou qualquer outra coisa fora do âmbito profissional. Vocês quase só trabalham e ganham dinheiro e, quando já o têm, trabalham mais para comprar coisas cada vez mais caras que pouco usam. A vossa saúde mental é um desastre!
Hipólito, sentindo-se atingido, replicou: - Sabe Hera. Estamos na sociedade de consumo onde tudo tem preço e quem manda são os “mercados”. Os políticos não sabem História e são facilmente tomados pelos grandes grupos económicos.
Mas creio que estamos no fim de um ciclo. Talvez, quando as mulheres chegarem ao poder, seja possível dar um novo rumo às sociedades humanas.
Entraram pelo olival. Hera pegou numa rosa e, enquanto constatava a fragilidade das suas pétalas, acedeu: - Talvez! Os lugares de comando ainda são pertença dos homens! Mas não esqueça que não está no genoma masculino aceitar a autoridade das mulheres e que elas odeiam a solidão que o poder acarreta.
Afrodite apareceu ao longe, envolta num halo de luz radiosa. A túnica cingida ao corpo realçava-lhe os seios pequenos. Uma brisa suave afastava os ramos das árvores à sua passagem e as flores brotavam da terra que pisava.
Hipólito parou. Deu a mão a Hera e comentou: -Ela não brinca em serviço! Pode estar desmotivada, mas vem em grande estilo! Por favor, cuide mim! Ajude-me a não gaguejar!
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