terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Visita Geral

Era dia de visita geral. O professor seguido do seu séquito de assistentes entrava solene pelas enfermarias do Serviço e perguntava o que se passava com cada doente.
Eu era Interno do 1º ano e como tal deveria saber tudo sobre os doentes e cumprir as ordens. O meu chefe de sala confiava em mim, e como as minhas insuficiências se reflectiam sobre ele, sentia uma dupla responsabilidade.

Na enfermaria um dos doentes tinha bronquiectasias, com grande volume de expectoração.
-“Então que se passa aqui? E que medicação? e … está com fisioterapia? E mais isto e aquilo… e … era bom medir diariamente o volume de expectoração para avaliar a resposta!” e lá se continuou por ali fora.


No fim, fui falar com o homem. –“Você é capaz?. Que sim, que escarrava sempre na caneca que lhe iríamos disponibilizar e, como também estava a medir a diurese, ficou com 2 canecas semelhantes na mesinha de cabeceira.
No dia seguinte a caneca graduada da expectoração estava vazia e a da urina tinha um volumoso sobrenadante de expectoração amarela.
-“Então como é?”.
Tinha-se esquecido. Nos outros dias a cena repetiu-se com o homem sempre a desfazer-se em desculpas e a prometer correcção.

Na quarta-feira seguinte quando o professor e comitiva desceram do céu e passaram na frente da cama, perguntou:
-“Então? O doente tem menos expectoração?
Expliquei a situação clínica e a falta de colaboração na recolha da expectoração e, passávamos ao seguinte, quando olho para trás e vejo o doente, embezerrado, com as duas canecas entre as pernas, a passar cuidadosamente com a mão, a expectoração da caneca da urina para a caneca vazia.
Simulei afazer inadiável, pedi autorização para me ausentar e arrastei um biombo que ali estava para a frente da sua cama enquanto me dirigia a chamar a enfermeira. - Só eu é que vi!...



Breve história da expectoração:
No final do século XIX pululavam as pessoas que escarravam. A expectoração atapetava o solo, as paredes, os lenços e as roupas interiores.
Para dar resposta a este problema de higiene surgiram no mundo ocidental os Escarradores, coisa que já era usada no sudoeste asiático centenas de anos antes.


Em 1840 apareceram pela 1ªvez nos USA e em Inglaterra e tornaram-se populares nos finais do século XIX onde marcavam presença nos Saloons, Hotéis, Lojas, Bancos, e outros locais onde as pessoas (principalmente os homens) se juntavam. Eram na maior parte feitos de latão, mas havia-os de vidro e porcelana e alguns constituiam peças de decoração.

Eram usados principalmente pelos que mascavam tabaco, mas também serviam para apoio aos doentes com tuberculose, pelo que os públicos deveriam conter um anti-séptico (ácido fénico). Como este tinha um cheiro desagradável e era caro, muitos enchiam-nos com serrim, cinzas ou areia.

No final do século XIX a tuberculose era causa de 15% das mortes. Em 1882 Robert Kock descobriu o agente da tuberculose e constatou que os escarros secos eram mais perigosos que os húmidos. Os tuberculosos foram então estimulados a usar escarradores de bolso e as normas de higiene e de etiqueta mudaram.
Nos anos 20 o escarrador caiu em desuso. Para isso também contribuiu o aparecimento da pastilha elástica (1870) e difusão dos cigarros (~1850) em substituição do tabaco para mascar.
Mas na China o seu uso generalizado manteve-se até 1980.

Nota: na era pré-antibiótica (Penicilina - Fleming - 1928
) muitas pneumonias cursavam com destruição parenquimatosa, pelo que os doentes que recuperavam ficavam com bronquiectasias e expectoração crónica para o resto das suas vidas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Majs um retalho da vida de um médico.
Lembro-me de ser frequente o uso dos chamados escarradores, o que devia corresponder a uma necessidade das pessoas na primeira metade do século 20, que já viria do passado.
Ocorre-me perguntar porque, estando o ambiente, nesses tempos, muito menos poluído que actualmente, haveria mais doenças respiratórias a aconselhar o uso desses equipmentos, obrigando a atitudes algo repulsivas

capitão disse...

Há conceitos actuais que necessitam de ser revistos e um deles é o da qualidade do ar que respiramos.

Embora a poluição atmosférica dependente da combustão dos derivados do petróleo tenha aumentado significativamente com aumento das emissões de CO2, a qualidade do ar que respiramos tem vindo a melhorar.

Hoje os grandes causadores de doenças respiratórias são: o tabaco, a poluição “dentro de portas” resultante da combustão de madeiras das lareiras e fogões com má tiragem e a poluição em alguns ambiente fabris com má exaustão.

No século XIX o carvão e madeira usados quer para o aquecimento das casas quer para energia fabril tornava estes ambientes muito mais insalubres e presentes em quase toda a população.
Também o contágio das doenças respiratórias era mais intenso porque as casas estavam frequentemente sobrepovoadas - “há paredes que matam”.
No século XIX mesmo trabalhando no campo "de sol a sol" as 12 horas dentro de uma casa com péssimas condições de exaustão eram determinantes para a existência de doença respiratória.

Isto só para falar do ar porque se formos falar da qualidade da água e das doenças veiculadas pelos alimentos muito havia a dizer.
Mas isso vai ficar para uma próxima.