sexta-feira, 6 de junho de 2008

Eu e os Óbitos


1981 - Verão - 12:30h. Vou buscar a miúda à Escola Primária e apresso-me para o almoço no Refeitório dos funcionários da Caixa de Previdência, antes de ir para a Consulta na Póvoa de Varzim. Tenho de ser rápido.
À entrada sou surpreendido por um cangalheiro:
-"Doutor, doutor!! Por favor! "
- "Que é?"
- "Por favor, antes de almoçar, passe a Certidão de Óbito daquela doente que foi ver ontem à noite, a sra. X!. Lembra-se? "
- "Lembro-me que ela estava mal! Agora é você que me está a dizer que ela morreu!"
- "Oh doutor! Ela morreu pouco depois do Dr. ter saído e está tudo à espera da Certidão para as formalidades legais.!"

Esta coisa dos óbitos tem histórias que não lembram ao diabo. Quando estava no Serviço Médico á Periferia em Ribeira de Pena e morria alguém nas aldeias mais longínquas, como não fazia sentido prejudicar os 24 doentes da consulta, andar horas aos solavancos para ir ver um morto, escrever uma página e voltar, o cangalheiro trazia um documento do Presidente da Junta de Freguesia com as suas presunções quanto á causa de morte e a afirmação de "morte por motivos não violentos", e eu passava a Certidão de Óbito com um diagnóstico que não ficasse mal àquele desconhecido.
Quando em casa contava a história, ouvia sempre uma reprimenda da minha mulher por não cumprir as normas e confiar num papel que não era legal e como tal, se houvesse problemas com a Justiça, era eu quem estava à perna!.
E até havia histórias, como aquela de um mancebo que se livrara da tropa com uma Certidão naquele estilo e que fora descoberto quando, anos depois, queria tirar a Carta de Condução, ou outra de um taxista que se disponibilizara para ir buscar um morto a uma terriola de França, e que fora parado na fronteira com o dito sentado no banco de trás no meio de dois paisanos. Calculo que alguém do lado de cá se iria disponibilizar para uma Certidão e embora se tivesse falado em morte natural, nada impedia que o não fosse.

Lá, eu tinha justificação para não ir ver o cadáver antes da Certidão, no centro da segunda cidade de Portugal pareceu-me inaceitável fazê-lo!.
Como o tempo era curto, pesei tudo e respondi:
- "Está bem! Eu passo! Mas primeiro vou identificar o cadáver, e só o posso fazer depois das 18:00h! Onde é que está o corpo?"
- "Está na casa mortuária da Igreja de Cedofeita!"
- "Está bem! Eu apareço lá quando acabar a consulta!"

e apressei-me para o almoço.

Fiz a Consulta e à hora prevista estava na Igreja, na expectativa de encontrar o corpo acompanhado por um ou dois familiares, fazer o que tinha a fazer e ir embora sem mais, mas tive de abrir espaço numa sala de gente consternada que, com surpresa, que me viu entrar de calça branca e T-Shirt garrida, a cumprimentar a família, sacar do estetoscópio, auscultar a morta durante três minutos e sair de caneta em punho para dar caminho legal à situação.

Só à saída é que fiz o ponto da situação.

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu e os óbitos temos uma relação difícil.

Sim, eu sei que é natural, e que é a "lei da vida" e que quando nascemos, começamos logo a morrer... e mais isto e mais aquilo, que a sabedoria popular é incomparável.
Mas é superior a mim. Eu e os óbitos temos, de facto, uma relação difícil.

Não é que eu tenha tido muitos óbitos. E que desses, todos eles tenham sido absolutamente devastadores para mim do ponto de vista emocional.

Também não posso dizer que essa relação difícil tenha a ver com o meu medo de morrer. É claro que preferia que ela, a minha e a dos outros, chegasse, doce como um beijo, em vez de me/nos cair em cima como um raio, ou pior ainda... como uma ferida que alastra e não tem cura.

O Woody Allen, homem "perturbado" e talvez até algo "disfuncional" mas inteligente e a quem tendo a achar muita graça,tem uma citação curiosa que diz mais ou menos assim: "não é que eu não queira meso morrer... o que eu não queria era lá estar quando isso acontecesse"!

Quando há anos atrás alguém perguntou à nossa "querida tia" Lili Caneças o que é que ela achava da morte, a senhora respondeu, do alto da sua ingenuidade, "que estar morto era o contrário de estar vivo". Na altura aquilo soou-me mal, pareceu-me ridículo e de uma vacuidade confrangedora.

Mudei de ideias!

Realmente, de todos os mortos que passaram pela minha vida, o que mais me marcou foi a ausência total do que tinham sido.

Eles estavam lá. Firmes, hirtos e muito mais circunspectos do que tinham sido, mas já não eram eles. E se não eram eles, o que é que eu estava ali a fazer?

Nunca me atrevi a tocar num morto.

A simples hipótese de que isso tenha que acontecer, um dia, deixa-me num pânico que não consigo controlar.

A palidez da pele, a temperatura, que suspeito estar próxima da dos répteis e o desgraçado cheiro das flores... deixam-me em franjas!

Tudo seria mais bonito e mais poético se, findos os nossos préstimos e prazos de validade, nos desfizéssemos no ar como bolhas de sabão.

capitão disse...

Quando um dia perguntaram ao Almada Negreiros se ele tinha medo de morrer ele respondeu:
- Eu tenho é medo de não viver!

faz todo o sentido.!

Mas... quando a doença surge e é necessária a aceitação de um destino fatal, só poucos lidam serenamente com o facto.

É que a natureza não tem contemplações com os fracos e uma doença chama a outra para acelerar o inevitável e os médicos dilatam esse tempo, nem sempre com benefício para o doente.

Há poucos anos surgiu no calão médico a palavra: "encarniçamento terapêutico" que define os actos médicos que prolongam a vida e o sofrimento dos doentes.
Numa boa prática de "Cuidados Paliativos" o bem estar do doente é superior ao nº de dias que ele vive.

Dito de outra maneira:
Um bom médico tem de ser capaz de acompanhar o doente terminal garantindo-lhe qualidade na morte.

É que agora há medicamentos para a ansiedade, várias soluções para a dor e no limite para induzir alheamento em relação à realidade.

Por vezes, o mais difícil é a aceitação dos familiares