quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Conversas marginais


Se antes de casar era o que era, agora, que a mulher meteu baixa e “tem dias que nem sai da cama”, está pior.
Diz que ela anda no estomatologista por causa das mandíbulas, vai ao neurocirurgião por causa da coluna, ao ortopedista pelas dores nos ombros e joelhos e ao ginecologista porque queria ficar grávida e pelas dores de barriga. A ADSE facilita-lhe as andanças.

Entra e senta-se. Sempre distante, de poucas falas, com ar de quem não faz mal a uma mosca. Não falha às consultas e faz as análises pedidas mas, desde que chegou a hora do tratamento, nunca o cumpriu com regularidade.
O casamento, de há dois anos, ainda deu uma esperança, com as promessas do amor dela na doença e na morte, quando o acompanhava dengosa.
É a terceira vez que vem só, sempre desfocado, com o pensar perdido sabe-se lá em quê. A roupa, mais arrumada, é o único sinal da vida a dois.

-Sr. Domingos! As análises estão cada vez pior. Afinal como é que a sua mulher trata de si? Ela tem-lhe dado os medicamentos?
-Ela tem estado doente! Cozinha e passa-me as camisas! Eu, as mais das vezes, lavo-lhe a louça!
-E você não é capaz de tomar os remédios sozinho?
-Às vezes tomo, outras … não tomo!, diz, sem entender que joga com a vida, nem o esforço que a comunidade faz para o manter (o seu tratamento custa ~700€ /mês).
-Sr. Domingos! Não vale a pena este faz de conta. Não lhe vou passar mais medicamentos hospitalares! Está a entender?
Aumenta-lhe o pasmo, e diz:
-Também não precisa, porque eu ainda tenho alguns!
-Ainda tem alguns? Deve ter é muitos! Você não os toma!, exclamo incrédula com aquela resposta, mas ele não entende o meu desconforto e insiste, dando ênfase ao cabelo espetado e seco.
-Mas então? Levanto a receita que tenho lá em casa?!
-Mas levanta para quê, se não vai tomar?, contraponho, sem ajuizar que não vale a pena continuar a conversa.
- É que já tenho poucos comprimidos e ainda tenho uma receita por levantar!
- Se não os toma, deve lá ter a receita e os medicamentos!
- É que eu não os tomo, mas deito-os ao lixo. Não fico lá com eles!

Olho-o, como a medi-lo. Está mais gordo, mais bem vestido naquele pullover de lã castanha, por cima da camisa bem passada. Relembro os exames anteriores que excluem qualquer processo neurológico em evolução a justificar aquele estar, e digo-lhe, definitiva:
- Sr. Domingos! Vamos ficar assim! Eu não lhe passo mais medicação até que decida o que quer fazer da sua vida. Venha daqui a um mês e traga alguém consigo! E à saída, bata à porta em frente e fale com a assistente social. Está bem?

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