segunda-feira, 10 de setembro de 2012

João Cavalo

O mistério da vida, o “crescei e multiplicai-vos”, ultrapassa todo o conhecimento científico que pouco explica desta luta pela vida eterna que é a reprodução.

Nos seres sexuados, a escolha dos parceiros tem pouco de aleatório e há tantas subtilezas, que se tornam imperiosidades, que é impossível qualquer sistematização científica.

No homem, os métodos anticoncepcionais modernos, ao permitirem separar com eficiência a actividade reprodutora de todas as outras onde o sexo tem funções, evitou muitos dos dramas que pontuaram as gerações anteriores, onde as múltiplas gestações e a patologia associada, aumentava significativamente a morbilidade e mortalidade das jovens.

Desde tempos imemoriais que os homens se matam em guerras e nunca houve um superavit de mulheres que justificasse a poligamia como solução, pois antes da descoberta da anti-sepsia e dos antibióticos, uma gravidez era um risco a que se acresciam os naturais desesperos com uma mortalidade infantil assustadora (21% em 1910). A gravidez indesejada dentro do casamento era já de si um grande problema, mas ser mãe solteira era ter de arcar com o opróbrio social, por ter posto o coração acima da razão e sacrificado o futuro ao calor de um momento.

A pílula (~1960) veio permitir que metade da população pudesse alterar o seu comportamento social, libertando as mulheres de restrições com que antes se tentava dar alguma garantia à paternidade.

As histórias dos nossos avós estão repletas de casos de abandono, abortos clandestinos, infanticídios e mortes associadas à gravidez quer pela patologia inerente a ela quer pelos dramas sociais que despertava. Histórias que se repetem, com menor frequência mas igual intensidade e que ainda marcam o nosso dia-a-dia.

O meu avô Gomes registou algumas das que lhe chegaram da tradição ou por conhecimento pessoal do quotidiano da vila de Constância, nos inícios do século XX.

Hoje reconto uma dessas suas histórias, com a ousadia de lhe alterar a forma, interpretando-a de acordo com o meu sentir.

João Cavalo…


O verão lembrara-se de levar nas suas asas para paragens mais altas e distantes as águas do Tejo e deixara no seu leito uma carapaça areenta, dardejante de mica. Recortavam-no apenas uns regatos onde os barcos imobilizados, cochilavam há três meses as suas carcaças vazias, e os barqueiros andavam de nariz no ar a ver a direcção das nuvens, fartos de rogar pragas ao tempo e à vida, saturados de tirar cotão dos bolsos e de ver o nariz franzido do tendeiro.
Mas nesse primeiro de Novembro um fuzilar de relâmpagos rasgara o negrume, quais girandolas de foguetes em dia da procissão da padroeira e, num instante, um reboliço agitou as ruas da pacata vila e o campo de concentração onde os barcos jaziam insulados.
- Que chovam raios e coriscos! – blasfemou o João da Barca, esticando os músculos faciais.
- Caramba! Até parece a noite da festa da Boa Viagem! Que venha chuva por uma pá velha! – respondeu o Zingalho, esfregando as mãos e fazendo tremelicar a barbicha branca à passa-piolho.

As tripulações formigavam entre as casas dos arrais e os barcos, arqueadas sob o peso dos oleados, fateixas, remos e varas, fazendo retinir nas calçadas as correntes de ferro, como se uma leva de grilhetas fosse a caminho das galés.
O arrais Jacinto Ferreira foi o primeiro a chegar à embarcação. Atirou com o saco da roupa para o convés, e estacou boquiaberto, de olhos arregalados sobre o embrulho pousado em cima da proa.
-Então querem lá ver a pouca vergonha!? – rouquejou, enquanto tomava a serapilheira nos antebraços e lhe dava um leve balanço, ao ver o enjeitado nu, embrulhado num farrapo.

A Tuleta, velha, que passava no meio das outras lavadeiras, aproximou- se e interrogou o céu, de mãos postas: -Mas quem seria a marvada?!, e a Luísa Godinho, pousou os lábios ressequidos na grande mancha roxa que aflorava, como um girassol, no peito do recém-nascido, e murmurou docemente: - Se Deus te assinalou, algum defeito te achou!”

O falatório começou e o conta-gotas da calúnia pingou aqui e além, mas o frete viera de longe e a atestá-lo lá estavam bem visíveis as ferraduras do animal que o conduziu. Ninguém iria ali dar de beber daquela água lodosa, onde desaguava um esgoto.
Mas triste de quem der um ai, sem achar eco em ninguém. Quis o destino que a criança vingasse sugando as tetas famintas de uma pobre mulher. Aparecera na vida para ser cobaia da rapaziada do pião, bode expiatório de pecados alheios e todos o deixavam a coçar a grenha encarniçada, quando o pontapeavam ou lhe arranhavam a cara sardenta. Alcunharam-no de João Cavalo.
Não fui eu, foi o João Cavalo! Era o finca-pé de qualquer pícaro, apanhado quase em flagrante, perante um vidro partido ou coisa desse teor. E o filho das tristes ervas, hoje ou amanhã, ia receber os sopapos, sem saber a quem agradecer os benefícios.


Aos dez anos foi moço de leme do arrais Joaquim Russo, que o fez dançar as escovinhas com as cordas do leme e lhe pôs asas nos pés para a vida de moinante. Hoje à gandaia do rio, amanhã a servente de pedreiro, pastor de cabras ou moço de cavalariça, assim foi andando até lhe penderem das faces, como dois cachos de uvas, as suissas alaranjadas.

Todos os seus companheiros de infância recebiam das gerações mais novas o tratamento de senhor. Só ele era o João. João Cavalo, para aqui e para acolá. Um humilhante tu na boca de velhos e fedelhos, a causarem-lhe arrepios dolorosos. Reagia algumas vezes, mas riam-se-lhe nas barbas.


Um dia, o bonifrates do funileiro, recém-chegado à aldeia, com os seus pedantescos cabelos frisados e a boquilha de palmo, tratou-o depreciativamente por tu. O recalque não podia ser maior quando lhe saiu da boca a frase que lhe alteraria o futuro:
- Em que barca passou você comigo, seu papo-seco das panelas?
Palavra puxa palavra e em três tempos choveram tantas pedras, que a latoaria ficou transformada numa barraca de pim-pam-pum e a cabeça do artista num Santo Cristo.

Convencido de ter assassinado o latoeiro, meteu à deriva por montes e vales, sentindo chocalhar o coração ao ouvir o crocitar dum corvo, o triste pio de um mocho ou ao ver escorregar uma sombra, pensando sentir o mestre Cristóvão, ferreiro, o regedor, que não era bom de se assoar. Dois dias depois apareceu por um bambúrrio no monte do Paivó, no âmago da charneca. Ali só cigano poderia dar notícias dele. Diziam as más-línguas que em tempos remotos, ali houvera uma estalagem, valhacouto de quadrilhas do pinhal do Escarópim, e que, no sítio onde agora era o curral das cabras, saíam lumes pelas frestas, que mais não eram que as almas dos enterrados naquele solo depois de roubados e assassinados. Aquele monte fora um baldio sem nome, mas quando se começou a rosnar que a actual proprietária, uma sexagenária ainda fanchonaça, era fruto incestuoso do próprio pai, toda a gente começou a chamar-lhe o monte do Pai-Avô.

Já lá iam quatro anos que João ali caíra como sopa no mel. O abegão da casa, nascido e criado ali, estava um cangalho, cartacego e trôpego. O Sr. João, depois de guardador de porcos, ocupara-lhe o lugar, mas não ficou por aí. O Rodela, marido da velha, ex-guarda municipal, fanfarrão e zaringador de pau, apanhara uma tal coça na feira de Montargal que fora desta para melhor. E quem melhor para o substituir senão o Sr. João? Serviçal como ele nunca a lavradora tivera. Era pau para toda a obra e muito principalmente para fazer caldeirada à fragateira, bem apimentada, que aquecia e regalava a patroa. Estava como peixe na água e casar com ela, apesar da diferença de idades, foi a coisa mais natural.
Os dias corriam no meio de trabalhos e canseiras, com o Sr. João de patrão, até aquela maldita vaca, recentemente adquirida, deixar a cria e correr impetuosamente para lhe espezinhar o peito e furar os intestinos, ao vê-lo entrar no estábulo.
Aos gritos acorreram o abegão e velha senhora e, quando nos primeiros socorros, foi necessário rapar a floresta de cabelos ruivos que lhe barrava o peito e surgiu aquela mancha roxa, a lavradora ficou imóvel. Trocou um olhar com o abegão, que também não descravava os olhos da flor de girassol, e interrogou:
- Mas tu não atiraste com o menino ao rio?
E, enquanto as pálpebras do Sr. João Cavalo entremostravam os últimos sons da vida que se lhe filtravam em direcção ao céu, o abegão confessou:
- Não tive coragem para tanto! Deixei-o sobre a proa de um barco. Há um mês, por coisas que me contou, fiquei convencido de que era ele mesmo. É as ventas pintadas do Rodela, o mesmo cabelo ruivo, a mesma cara sardenta, o mesmo nariz de batata e até um pouco gago como pai!

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