quarta-feira, 25 de junho de 2014

O Profano




A dona Gracinda contava histórias giríssimas. Quando a conheci ela deveria ter uns quarenta e cinco anos. Se fosse viva, teria agora 102 anos.
Era de Guardizela, filha de um carreteiro e com dez anos já participava nas viagens que se faziam em carro de bois, para levar o vinho, o milho ou outros cereais, o que fosse… ao Porto. Mais precisamente ao Zezinho da Areosa, onde ficavam, davam de comer aos animais e carregavam com outras coisas para a volta. Habitualmente juntavam-se vários grupos e eram os miúdos que iam a tangir bois. Eram três dias para ir e vir e grande parte do trajecto era feito à noite. Ora muitas dessas histórias tinham a ver com os medos que os sons e as luzes da noite despertavam. E aí o fantástico tinha todo o espaço. Nas encruzilhadas havia regras a ser respeitadas. Ir de olhos postos no chão, não olhar para o lado, e se por acaso vissem o diabo a saltar junto das rodas dos bois, não parar e benzer-se. Lembro-me de ela falar, numa das últimas viagens, de uma camioneta de rodas de ferro da “Fábrica Rio Vizela”. Era a novidade.

Também falava muito das almas que não subiam para o Céu porque tinham promessas por cumprir e que ficavam a transtornar a vida dos vivos. Contava aquilo com nomes e todos os pormenores, relacionando factos passados com episódios que de algum modo coincidiam com uma alteração de uma evolução. Lembro-me de uma vez ela contar que a sua irmã Olinda andava muito doente, a emagrecer de dia para dia, e que alguém se terá lembrado de fazer qualquer coisa que uma tal Joaquina, recém-falecida de pneumónica, poderia ter prometido e não cumprido e, num dia em que estava num grupo a ordenhar vacas, surgiu uma borboleta que bateu na cabeça de eles todos e subiu. Era o espírito da Joaquina a agradecer a libertação e a Olinda melhorou logo a seguir.

As almas do Purgatório eram uma preocupação, porque sozinhas nunca iriam conseguir ir para o Céu. Precisavam da nossa ajuda, e disso ela estava sempre atenta.

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