sábado, 1 de outubro de 2016
Lembranças do Olimpo (19)
Hipólito teve uma noite descansada e acordou já o sol ia alto. Nada como ser domingo e não ter preocupações com missas ou qualquer outro evento social a cumprir, pensou. Gostava da comunidade onde residia, mas encontrá-la numa missa era um preço demasiado alto. O padre era um sujeito imbuído de uma mentalidade tacanha, um crente em que as sociedades só têm um modo de se organizar, o seu, incapaz de qualquer gesto de humor em público, daqueles que repete à exaustão "Graças a Deus muitas, Graças com Deus nenhumas!".
Tivera a má experiência de o ouvir em três funerais a repetir "ad nauseam" a mesma fórmula, sem anotar a mínima particularidade daqueles seres que definitivamente nos deixavam, e saiu revoltado.
Não entendia que alguém pudesse subir a um púlpito sem ser capaz de um elogio fúnebre. Da primeira vez ouvira-o na missa de corpo presente da mãe de um amigo seu. Uma analfabeta que ficara viúva ainda jovem e que conseguira dar um curso superior aos três filhos. Da segunda, vira-o chegar atrasado e "despachar" o morto em menos de três penadas e da terceira, agrupara numa cerimónia, missas por um montão de falecidos e um baptizado.
Também as histórias que contava, dos martírios dos Santos primordiais pareciam-lhe ficções da Marvel e, lembravam-lhe as dos fanáticos religiosos do Islão actual, à espera que uma qualquer surata lhes dê acesso a um Paraíso do tipo “Club Med”.
Depois deste pensamentos, foi ao quarto de banho e olhou-se ao espelho.
- Estás a ficar sábio de mais!, disse à sua imagem. - Já não consegues achar graça à incoerência humana!
Depois, lavou cara e reconsiderou: - Deixa-te dessas merdas, que "p´rá frente é que é o caminho!", mesmo que duvides do lado para que estás virado!
Ajeitou o pijama, preparou os sucos para o pequeno-almoço e quando passou pelo Nkisi e lhe deu os bons-dias, lembrou-se da pergunta que ficara pendente da noite anterior.
O Nkisi, que devia estar já à sua espera, respondeu prontamente.
- Bom dia! Gostava de te ajudar, mas sou um espírito que anda com os pés na terra. Ainda por cima, sempre por África. São os meus anos que me dão vantagem, por já ter visto muita injustiça e montes de boa gente a morrer por más causas. Os meus poderes são limitados. Ajudo com conselhos, mas sem aquela magia dos milagres, com que todo o ser humano parece estar a contar!
- Obrigado!, respondeu o médico. - Hoje a minha mulher foi trabalhar e estou sozinho em casa. Era uma óptima oportunidade para vires comigo e falarmos. Eu ando a ler umas coisas sobre a expansão do Homo sapiens por este planeta, e gostava de tirar umas dúvidas contigo. Como foi em África que ele nasceu, tu, por certo, sabes histórias da sua actividade primordial.
O Nkisi, como que ganhou um brilho diferente. Há anos que ninguém se dispunha a ouvi-lo sobre um assunto tão vasto e, o facto do médico se dispor a dar-lhe ouvidos, envaidecia-o.
- Como tens tempo, vou explicar-te. Não sei se sabes, mas os primatas raramente formam grupos com mais de 50 elementos e os primeiros humanos a que vocês chamam de Homo erectus, neanderthalensis, habilis, … estavam limitados a grupos em que todos se conheciam e, nessa circunstância não conseguiam ultrapassar os 150. Foi com o aparecimento dos mitos religiosos que foi possível ao Homo sapiens fazer com que cada vez mais indivíduos colaborassem no mesmo objectivo e começassem a dizimar as outras espécies.
Como todas as religiões colocaram o Homem como figura central, deram-lhe a oportunidade de ser vítima dos seus desejos.
- É um facto!, retorquiu o médico. – O homem convenceu-se de que era o único ser vivo portador de alma, mesmo que pareça que anda muito desalmado por aí!
O Nkisi concordou. - E não é por se ser rico ou ter um curso universitário!, continuou. - Há que ter respeito pelas outras formas de vida, pelas pedras, pelos rios e pelos mares. São os desalmados que há 30.000 anos andam a dar cabo da Terra. Antes de se ter inventado a roda já eles tinham acabado com mais de metade dos mamíferos terrestres com mais de 50 quilos.
Temo que os deuses tenham decidido pôr cobro aos seus desmandos!
Hipólito, sentiu a ameaça como real e perguntou assustado. - Mas se o executarem, vai tudo a eito, como fizeram os cruzados à população de Béziers em 1209, ou os que têm alma ficam para ocupar o espaço que sempre lhes foi devido?
- Lá isso, não sei! O mais provável é haver quem se safe!, respondeu o espírito.
– E será que eles esperam por 2030, para dar tempo a que a NASA chegue a Marte, ou achas que catorze anos é muito tempo!, insistiu Hipólito. – E se alguém influente no Vaticano, no Islão na administração Obama, na China, na Índia ou na Rússia, der uns passos no caminho certo e a Economia deixar de necessitar do crescimento que os actuais economistas desejam? Será que eles suspendem essa reprimenda?
- Não estou a par da política mundial para te responder!, admitiu o Nkisi. - Mas nestas coisas, um bater de asas de uma borboleta é muito importante!. E depois para lhe amenizar o dia, continuou: -Mas vejo que já acabaste a refeição. O melhor é arrumares-te e ires dar uma volta que, se não deixas de pensar nisso, ainda dás em doido! Para mais, depois de teres passado uma semana sem apanhares sol na moleirinha! O que for, se verá! E não é por muito madrugar, que amanhece mais cedo! Vês como também sei uns provérbios!
Hipólito, subiu com a estatueta, colocou-a no seu sítio e obedeceu-lhe. Minutos depois estava na praia a dar pontapés nas algas, que também é para isso que todas as semanas há domingos .
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